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terça-feira, 30 de julho de 2024

Ginástica Feminina consegue medalha histórica e é preciso deixar esse momento registrado aqui!

Não assisti a final da ginástica artística por equipes.  Estava tão nervosa que acreditei que não iria suportar.  Olhei o Twitter e os trend topics falavam em injustiças da arbitragem.  Normal, normalíssimo, para que os brasileiros cheguem ao topo em determinados esportes em que a avaliação pode ser um tanto subjetiva (*ginástica artística e rítmica, nado sincronizado etc.*) é preciso trabalhar dobrado. O erro conta mais do que o cometido por atletas de países com tradição nesse tipo de esporte.

 Enfim, por essas e outras, eu não tive coragem de olhar até que veio a notícia da medalha.  Bronze que vale ouro, porque acompanho faz tempo as lutas da ginástica brasileira.   Acredito que foi em Seul (1988), eu era criança, e me lembro de uma reportagem com Luisa Parente, única representante do Brasil, caminhando com sua mochila rumo ao estádio.  Sozinha, parecia não ter nem técnico.  

Faz algum tempo que temos uma equipe de competentes ginastas.  Sim, EQUIPE.  Jovens que podem contar umas com as outras, que tem técnicos, algumas conhecidas do grande público, e inspirando novas gerações a ingressarem no esporte.  Não somente meninas brancas parecidas com as soviéticas, romenas e norte-americanas da minha infância e adolescência, mas garotas com todas as cores do Brasil, algumas delas vindas das periferias do país.

Fui buscar o que publiquei sobre a ginástica, aqui, no blog e achei vários posts.  Lá de 2008, um que falava da dissolução do centro de treinamento da seleção de Curitiba por pressão dos clubes, afinal, não houve medalhas em Pequim.   Outro, de 2009, falava de quando o Flamengo cortou verba da ginástica deixando Jade Barbosa e Diego Hypólito sem salário.  Em 2012, comentando a crueldade da torcida brasileira com os atletas que não conseguiram medalha em Atenas, dentre eles, Daiane dos Santos e Diego Hypólito.  Em 2016, fiz um post sobre a prata de Diego Hypólito e lembro de não ter tido coragem de assistir, estava nervosa, também.  E, em 2021, dois posts sobre Rebeca Andrade, afinal, ela ganhou prata e ouro.  Sim, eu acompanho a ginástica e comento por aqui.  Até deixei uns dois posts de fora do parágrafo, porque esses resumem bem a história da modalidade aqui.

Torcia pelas nossas atletas, que, como alguém pontuou, representavam três gerações Jade Barbosa era iniciante quando Daiane e Daniele Hypólito estavam no auge e é a ginasta mais velha das Olimpíadas; Rebeca Andrade, talvez a segunda melhor ginasta do mundo hoje (*Simone Biles não está em discussão*), Lorrane Oliveira e Flávia Saraiva estão no auge, enquanto Júlia Soares, que já tem um movimento da ginástica registrado com seu nome, está começando.  Fosse na época em que eu era jovem, aos 18 anos, a chamariam de velha.  Muito bom terem colocado limite na idade de participação e estendido a carreira das ginastas mulheres, que dependeu, também, de mudanças nas formas de preparação das atletas.  Algo importante, pelo menos no caso do Brasil, parece ter sido o suporte psicológico dado às atletas.  

O que definiu o bronze foi o salto de Rebeca.  Já havia gente que não acreditava na virada, mas ela veio.  E eu não chorei, mas fiquei com a voz embargada ao recontar para a minha filha o quanto foi difícil a caminhada até aqui.  Ela parece ter entendido, mas não sentido, ela não se liga muito em esportes, talvez, no futuro, ela consiga compreender a grandeza daquilo que essas meninas fizeram.  Que a Rebeca já tinha feito, que Daiane tinha desbravado e Daniele Hypólito tinha sofrido para alcançar, da coragem solitária de Luísa Parente e tantos outros e outras.  Venceram em um esporte subfinanciado, contra (pre)conceitos que foram derrubados.  

Hoje, a melhor ginasta do mundo é uma mulher negra.  Nossa equipe é majoritariamente negra.  Vocês, jovens, talvez não consigam imaginar o quanto isso é incrível.  Agora, basta que o governo deixe de investir nas bolsas de patrocínio, que poderiam ser maiores, mas para um atleta de ponta são boas, que os clubes deixem de se interessar e, rapidamente, podemos retroceder uma década.  Estou muito feliz por nossas atletas, orgulhosa delas, e ainda teremos mais, porque a disputa individual ainda está por vir.  Torçamos por Rebeca e por suas companheiras, porque será duríssima a final por aparelhos.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Vamos falar de coisa muito séria: Canto racista da Seleção Argentina merece punição.

Este é um dos posts políticos que não faço faz tempo.  Se não quiser continuar, basta pular.  Há muitos outros posts no Shoujo Café que podem lhe interessar.  Sigamos!

A Copa América terminou no domingo, 14 de julho, data da Revolução Francesa.  A Argentina venceu a Colômbia.  Até ontem, sabia somente da confusão e do quebra-quebra que atrasou e muito a final.  Nada que quem acompanhe futebol não tenha visto acontecer em algum momento, mas nos Estados Unidos, nunca tinah rolado uma selvageria assim no futebol, eu imagino.  OK.

Ontem, porém, fiquei sabendo que o o subsecretário Julio Garro afirmou em entrevista que canto colocava país em 'situação ruim' e pediu que a seleção se retratasse.  O resultado foi a demissão de Garro com a seguinte mensagem partida do gabinete do presidente Javier Milei: "A Presidência informa que nenhum governo pode dizer o que comentar, o que pensar ou o que fazer à Seleção Argentina, Campeã Mundial e Bicampeã Americana, ou a qualquer outro cidadão. Por isso, Julio Garro deixa de ser Subsecretário de Esportes da Nação.".  Mas o que havia na música que foi puxada e divulgada pelo jogador Enzo Fernández, contratado pelo Chelsea na Inglaterra?

"Eles jogam pela França, mas são de Angola. Que bom que eles vão correr, se relacionam com transexuais. A mãe deles é nigeriana, o pai deles cambojano, mas no passaporte: francês"

Vocês conseguem entender o quanto esses versinhos são horrendos, repulsivos, absurdos?  Eu fiquei enojada mesmo, como é possível gravar isso e colocar com orgulho na internet? Racismo, aliás, é coisa antiga no futebol argentino, os brasileiros volta e meia são chamados de monos (*macacos*), mas deveria ter ficado no passado. Segundo o UOL, ela tinha sido cantada por torcedores argentinos na copa do Catar em 2022 (*citando Mbappé, inclusive*), a letra está até amenizada.   Mas qual o motivo disso tudo?  Não foi a Colômbia o adversário derrotado?  

Muito bem, para você que mora em outro planeta, assim, tipo meu marido que não liga para futebol e evita o noticiário político por motivos de saúde, a extrema-direita na França, cuja bandeira mais visível é o discurso racista contra imigrantes e seus filhos e filhas, sofreu um revés espetacular, porque tinha vencido o primeiro turno, nas eleições legislativas francesas.  Para a extrema-direita local, a seleção de futebol do país não representa a França adequadamente, porque é majoritariamente negra e formada por filhos de imigrantes.  Aliás, o líder maior da extrema-direita francesa, Jordan Bardella, também é, porque é de ascendência italiana e argelina, mas quem se importa, não é mesmo?  Ele tem a cor de pele adequada e a religião certa.

Durante o segundo turno, vários jogadores da seleção francesa tiveram um papel importantíssimo na campanha contra a extrema-direita, em especial, Kylian Mbappé, estrela do time.  Ele fez campanha contra a extrema-direita, assim como nosso craque Raí, que mora na França e vai carregar a tocha olímpica.  Vou colocar o vídeo dele no final do post, porque raramente via alguém sintetizar tão bem os ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo.  

Muito bem, Mbappé já foi apontado como tendo namorado uma mulher trans.  A França perdeu a final da Euro para a Espanha, cuja principal estrela é um adolescente filho de imigrantes, mas a extrema-direita mundial se sentiu representada, porque, sim, os neofascistas estão em um eixo internacional, na vitória espanhola.  Para quem não sabe, algo que incomoda muito os racistas é o fato de na França, nos Estados Unidos, no Brasil, também, enfim, funcionar o jus soli (lei do solo), quem nasce no país é seu cidadão por lei e direito.  Fora isso, países colonialistas, caso da França, estão ligados de alguma forma as suas ex-colônias, no caso da França, de forma muito efetiva até hoje.  A imigração tem a ver com esses laços e uma dívida histórica, por assim dizer. 

Acredito que o tal Enzo Fernández se sentiu estimulado a fazer a gracinha, afinal, ainda era a data da Queda da Bastilha, e o resto da seleção acompanhou e Messi, grande estrela do time, está em silêncio.  Foi horrendo.  O subsecretário se pronunciou e foi punido.  Por fim, a vice-presidenta, Victoria Villarruel, que é ligada à grupos que defendem a ditadura militar argentina, saiu defendendo a seleção de seu país, seu racismo e sua transfobia e cito o UOL, mas o artigo traz o post da autoridade: 

"Victoria Villarruel se manifestou no X (antigo Twitter), nesta quarta-feira (17). A vice-presidente afirmou que "nenhum país colonialista vai intimidar" a Argentina.  Ela também chamou os franceses de "hipócritas" e pediu que as pessoas "parem de fingir indignação".  Por fim, Victoria afirmou que "banca" Enzo Fernández, jogador que gravou o momento do cântico racista e transfóbico e agradeceu a Messi."

Enfim, a vice argentina instrumentalizou o imperialismo da forma mais livre possível para justificar o direito ao racismo.  O próprio presidente argentino postou em sua conta no Twitter que criticava a cobrança de "desculpas a alguns europeus colonizadores por uma música que também diz a verdade".  Absurdo, enfim.  O Chelsea, time de Fernández se pronunciou em nota oficial, após o pedido de desculpas do jogador:  

"O Chelsea Football Club acredita que todas os comportamentos discriminatórios são completamente inaceitáveis. Nós nos orgulhamos de ser um clube diverso e inclusivo, em que pessoas de todas as culturas, comunidades e identidades se sentem bem-vindas. Tomamos conhecimento e valorizamos o pedido público de desculpas do nosso jogador e usaremos essa oportunidade para educar. O clube instaurou um processo disciplinar interno.", comunicou a equipe inglesa.

Pode dar ruim para o engraçadinho, não é?  O salário de Enzo Fernández não é pago por Milei.  E como foi o pedido de desculpas de Fernández e cito da BBC:  

""Quero pedir desculpas sinceras por um vídeo postado no meu canal do Instagram durante as comemorações da seleção. A música inclui uma linguagem muito ofensiva e não há absolutamente nenhuma justificativa para essas palavras", disse o atleta"  "Oponho-me à discriminação em todas as suas formas e peço desculpas pela euforia das comemorações na Copa América. O vídeo, aquele momento e essas palavras não refletem as minhas crenças ou o meu caráter”, acrescentou."

Se arrepende NADA, só vai colocar a mão na consciência se pesar no bolso.  Mas bobo ele não é, porque, na Inglaterra, onde ele trabalha, a coisa não pegou nada bem.  Como teremos Olimpíadas na França, o técnico da seleção argentina veio à público tentar colocar panos quentes, mas piorou as coisas, eu diria:

"Se existe algo que nós argentinos não somos é racista, longe disso. Acho que tudo foi tirado de contexto", disse o ex-Barcelona, à agência AFP." " Eu conheço o Enzo, é um bom garoto e não tem nenhum tipo de problema com isso. O que acontece é que muitas vezes, dentro de uma comemoração, pegam uma parte de um vídeo e tiram de contexto – insistiu Mascherano."  "Muitas vezes é preciso entender a cultura de cada país e muitas vezes o que entendemos como uma brincadeira pode ser mal interpretado em outro lugar", disse o treinador."

Argentinos não são racistas, mas é preciso compreender a cultura do país.  Aham... Daí, vem e diz que a coisa foi tirada de contexto e isso quando o próprio autor da façanha, Enzo Fernández, já tinha se desculpado.  O fato é que a Federação Francesa de Futebol se pronunciou com dureza, não esperava menos, e pediu punição à FIFA, alguns jogadores também se posicionaram, e a FIFA abriu investigação.  E, claro, podemos ter violência nas Olimpíadas.

Depois desse posicionamento do governo argentino, do silêncio (*se alguém se posicionou, me passem o link, por favor!*) do Messi e outros membros da seleção, e a tentativa de naturalizar como "parte da cultura do pais" essa nojeira, a FIFA e o Comitê Olímpico fariam bem em punir a Argentina.  Multa e uma bela suspensão de eventos internacionais.  E espero que o tal Enzo Fernández passe um aperto na Inglaterra, que ande certinho daí para frente, ou volte para casa, onde, ao que parece, passou a ser admissível ser aberta e orgulhosamente racista e escroto por conta de um governo de extrema-direita.  E, como disse que faria, abaixo está o vídeo do Raí.  Isso, sim, faz a gente se orgulhar:

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Mangá josei que se passa no Império Mongol do século XIII é anunciado na França e na Espanha

Depois de ser licenciado na França (*está previsto para setembro*), o mangá Tenmaku no Jaadugar (天幕のジャードゥーガル), de Tomato Soup, foi anunciado também na Espanha.  Você pode não se lembrar, mas a série, que tem um traço bem diferente do que se espera, ficou em primeiro lugar no guia Kono Manga ga Sugoi! de 2023 e em 11º lugar no deste ano.  A série está indicada para o 17º Mangá Taisho Award, que é o deste ano.  

O ponto de partida inicial da série é o seguinte: No século XIII, Fátima foi feita prisioneira no Império Mongol, o império mais poderoso do planeta,  e designada para servir no palácio imperial. Originária da Pérsia (atual Irã), ela conhece muito de medicina e ciência, a jovem só precisava de um lugar onde pudesse mostrar os seus talentos. Essa oportunidade vem quando a protagonista conhece Töregene, a sexta esposa do segundo imperador, Ögedei, que tem sentimentos confusos sobre o Império Mongol.  A série irá contar a história dessas duas mulheres, de sua amizade, enquanto navegam pelos meandros do Império Mongol.

O Império Mongol existiu entre os séculos XIII e XIV e foi o maior império de terras contíguas da história e o segundo maior império em área, perdendo apenas para o Império Britânico.  O Império Mongol surgiu da unificação de várias tribos nômades sob a liderança de Genghis Khan (c. 1162-1227), que se tornou seu único governante em 1206. Apesar de muito poderoso, o império foi presa das disputas entre os muitos filhos de Genghis Khan e da necessidade de se institucionalizar (*se tornar um estado de fato*), ou manter uma estrutura nômade.  Ögedei é um dos tais filhos de Genghis Khan e seu herdeiro inicial.

Na França, o mangá será lançado pela poderosa Glénat, já na Espanha, a série foi anunciada pela ECC Ediciones.  Na França, o título será Jaadugar, la légende de Fatima, na Espanha, Una bruja en el Imperio Mongol.  Este seria um mangá que, se fosse anunciado no Brasil.  Para quem quiser, tem scanlations.

domingo, 10 de março de 2024

Comentando Anatomia de uma Queda (França/2023): parece um filme policial, mas é muito mais do que isso.

Terminei de assistir Anatomia de uma Queda (Anatomie d'une chute), foram três dias vendo fragmentos do filme que, em linhas gerais, segue a mesma ideia de um dos meus contos favoritos de Sherlock Holmes, A Ponte de Thor.  Se você conhece a história, e achei o conto on line aqui, você já sabe como termina Anatomia de uma Queda.  O fato é que a morte em si, causada pela tal queda, que pode ser vista como metafórica, também, é o de menos.  O filme conseguiu se destacar pelo seu roteiro, muito bem construído e que deve levar o Oscar hoje, e por discutir de forma muito contundente questões de gênero e sexualidade.  Vamos ao resumo do ponto de partida para o filme?  A resenha será curta, porque preciso tentar assistir ainda mais um, ou dois, dos indicados.  Não devo conseguir, claro, mas vale a intenção.  

Sandra (Sandra Hüller) mora com o marido, Samuel (Samuel Theis), e o filho de onze anos, Daniel (Milo Machado Graner), em um "modestíssimo" chalé de três andares nos Alpes franceses.  A casa é isolada, a estrada para chegar até lá é estreita.  Abrimos o filme com Sandra, que é uma escritora de sucesso, dando uma entrevista para uma universitária interessada por seu trabalho.  A conversa, no entanto, não vai longe, porque Samuel coloca uma música altíssima (*e muito irritante*) para tocar no terceiro andar.  "Ele está trabalhando", diz uma constrangida Sandra e termina marcando nova entrevista com a jovem em Grenoble, dias depois.  

A cena muda e temos Daniel, que ficou cego aos quatro anos por causa de um acidente de trânsito, saindo para passear com Snoop, o cachorro da família.  Quando os dois retornam, encontram Samuel morto na neve em uma poça de sangue.  O menino grita pela mãe, que se torna, automaticamente, a única suspeita da morte do marido.  Mas seria mesmo um assassinato?  Não poderia ser um acidente ou suicídio?  Somente uma investigação cuidadosa pode levar a uma conclusão, ainda assim, outros fatores também serão levados em consideração no tribunal, onde a conduta doméstica e sexual de Sandra será colocada em questão.

Anatomia de uma Queda venceu o festival de Cannes e chega ao Oscar com muitas premiações, uma delas o de melhor roteiro no Globo de Ouro.  Como fiz com Pobres Criaturas, assisti em casa e não o assisti de uma vez só.  Isso acaba comprometendo a minha percepção do todo.  Imagino que, no cinema,  a angústia diante do desenrolar dos acontecimentos fosse muito mais intensa.  Eu identifiquei três atos muito claros no filme.  O primeiro ato é meio arrastado e angustiante, cobrindo a morte de Samuel e o início da investigação, assim como as primeiras orientações da defesa e uma questão dolorosa, pois Daniel poderia ser influenciado pela mãe, então, a Justiça cogita em tirá-lo de casa.  

No fim das contas, o menino fica em casa, evitando novo trauma, mas uma policial (Jenny Beth) estaria presente ao lado dele o tempo inteiro. Sandra fica proibida de falar em inglês com o menino.  Vincent (Swann Arlaud), um dos advogados e que parece ser amigo de Sandra, recomenda que ela fale em francês no tribunal o tempo inteiro, também.  Se já é suspeita, imagine ter seu status de estrangeira lembrado o tempo inteiro?  O fato é que a língua era usada para a comunicação geral na família.  Sandra não é fluente em francês, sua língua materna é o alemão, e conheceu o marido em Londres.  Já o menino parece dominar inglês e francês com fluência, mas ninguém é visto falando alemão no filme.  Aliás, a minha única crítica à Anatomia de uma Queda é que eu imagino que uma pessoa nervosa, angustiada, com raiva, tenda a reverter para a língua materna, nem que seja para xingar.  Sandra nunca faz isso.

O segundo ato do filme é o julgamento.  Sandra precisa enfrentar a corte e sua vida doméstica e sexual é devassada.  Uma gravação feita por Samuel na véspera de sua morte de uma briga entre os dois é exposta na corte.  Temos parte flashback, parte só o áudio.  Assim, temos o recurso de ver os rostos e olhares na corte, inclusive do menino Daniel, que insistiu com a juíza para que o deixasse assistir ao julgamento.  Na gravação,  Samuel a culpa por suas desgraças, o livro que nunca escreveu, a falta de apoio quando do acidente do filho, o fato de cuidar do menino integralmente, assim como dos afazeres domésticos.  Ele exige que Sandra interrompa sua carreira para que ele possa escrever. 

Sandra se recusa a ceder e aponta que o marido abandonou o emprego por escolha, assim como foi uma imposição dele que fossem morar na França e que o filho fosse educado em casa.  Ela também aponta que o tal livro já estava sendo escrito quando se casaram, ela não é responsável pela insegurança dele, ou seu sentimento de fracasso.  Por fim, o marido a acusa então de adultério e de se impor mesmo na cama, assim como de obrigá-lo a falar em inglês.

O fato é que a gravação é redondinha para servir de peça de acusação.  Sandra parece aos olhos da corte e, em especial, dos profissionais homens que estão presentes (perito, promotor, o psiquiatra de Samuel) uma mulher-monstro.  E com um agravante, ela traiu o marido com outras mulheres.  Pouco importa que Sandra diga que ele estava ciente das primeiras traições e que não se importou, que foram no ano do trágico acidente do menino, ou que a última, que foi meramente sexual, ele só descobrira por ter invadido o seu celular.  O que importa é que ela é uma mulher sem compaixão e que foi procurar sexo por não ter em casa.  Uma mulher que não se deixou arrastar para o fundo do poço junto com o marido e que não abriu mão da carreira, ainda que tenha cedido em outras coisas.

Samuel se sentia emasculado por uma situação na qual ele mesmo se colocou e que não é diferente da ocupada por muitas mulheres.  A inversão de papéis parece aumentar a fúria do promotor (Antoine Reinartz) contra Sandra.  Se é inegável o fato dele ser depressivo, é fato, também, que ele nunca conseguiu superar uma culpa pelo acidente de Daniel.  Ele não foi buscar o menino na escola, era responsabilidade dele, delegou a função e o pior aconteceu.  Uma das partes mais emocionantes desse segundo ato, e que nada tem a ver com questões de gênero ou de sexualidade, ou misoginia, é quando Sandra fala da deficiência do filho dizendo que queria que ele tivesse uma vida plena e que as limitações fossem compreendidas como o que são, fatos que estão lá, mas que não podem determinar o destino do menino.  Ao que parece, o pai discordava também nisso.  O homeschooling é sintomático disso.

O terceiro ato mostra o desfecho do caso.  Aqui, são peças chave Daniel, e o jovem ator Milo Machado Graner é muito competente, e o cachorro.  Messi é o nome do cachorro que interpreta Snoop e o doguinho é o ator mais competente do elenco.  a cena em que ele "morre" foi muito desafiadora para o animal e ele teve que treinar dois meses para executá-la com precisão.  Infelizmente, sua presença foi vetada na cerimônia do Oscar quando, na verdade, deveria receber um prêmio especial.  Injusto, muito injusto mesmo.  Como se a presença do cachorro fosse mudar votos que já estão contados.

Não vou explicitar o destino de Sandra.  O que importa, no fim das contas, é o percurso feito pelo filme.  Como o crime, porque é um crime, sim, é dissecado, a anatomia da queda em si.  Só que a queda não é somente do corpo de Samuel, mas de um homem que não conseguiu superar o acidente do filho e foi ladeira abaixo, inclusive tentando arrastar sua companheira com ele.  Sandra, por outro lado, não abandonou o marido, nem o filho, mas não queria abandonar a si mesma.  O arranjo matrimonial dos dois certamente não era justo, mas para ambas as partes.  No final do filme, algo que me pareceu frustrante foi ver o clima entre Vincent e Sandra se adensar e não termos nem um beijo entre os dois.  Não falo de romance ocupando tempo de um filme que já é enorme, nem de sexo, mas de uma troca de afeto que me parecia bem-vinda.

Anatomia de uma Queda está indicado a vários prêmios no Oscar que ocorrerá hoje:  Melhor Direção, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original, Melhor Edição e Melhor Filme.  Justine Triet é a única mulher indicada em direção, ela merece, mas certamente está lá para cumprir cotas.  Ficou feio não indicar nenhuma mulher, mas, este ano, havia pelo menos três merecedoras, escolheram uma e temos quatro homens.  Para a Academia deve ser suficiente.  Eu sempre acho muito estranho indicarem um filme e deixarem de fora seu diretor ou diretora.  Ela não vai ganhar, na verdade, acredito que levará roteiro original.  Melhor atriz, mesmo com o desempenho brilhante de Sandra Hüller, deve ir para outras mãos.

Triet assina o roteiro com o marido, Arthur Harari.  Ambos militam na causa da igualdade de gênero no cinema e ela é muito crítica as reformas da previdência e a política cultural do governo francês.  Há quem defenda que Anatomia de uma Queda não está indicado a Filme Internacional, onde seria favorito, por perseguição politica mesmo.  Enfim, a gente sabe como essas coisas funcionam, vide o ano em que deixaram de indicar Aquarius como candidato brasileiro ao Oscar.  Bem, bem, isso não impede que a gente assista ao filme e recomende.

domingo, 28 de janeiro de 2024

Mais Notícias do Festival de Angoulême: Hagio Moto recebe uma justa homenagem

Termina hoje, o 51º Festival de Quadrinhos de Angoulême (Festival international de la bande dessinée d'Angoulême).  No dia 24, véspera da abertura, fiz um post comentando que  a britânica Posy Simmonds recebeu o Grand Prix e que a mostra em homenagem à Hagio Moto tinha sido aberta com a presença da mangá-ka.

De lá para cá, se você jogar no nome da autora no Twitter, irá encontrar muitas matérias sobre a mangá-ka e muitas fotos sobre a exposição Moto Hagio, au-delà des genres.  Hagio Moto deu uma palestra (Master Class), falou da importância do mangá Shinsengumi e de Osamu Tezuka para sua carreira e recebeu o Le Fauve D'Or de honra, que é a estátua do mascotinho do evento, um gato selvagem.  Há anos em que mais de um autor recebe esta Le Fauve D'Or, mas, este ano, somente Hagio Moto foi contemplada.

A página do evento ressalta que Hagio Moto recebeu o prêmio por ser uma autora "(...) multipremiada cuja longa carreira é marcada pela diversidade – de temas, gêneros – e por uma sede absoluta de liberdade.".  E acrescenta que ela revolucionou o shoujo nos anos 1970.  E saiu uma matéria sobre Hagio Moto no Le Figaro, um dos mais importantes jornais franceses.  Infelizmente, é paga, então, deixo aqui somente o que está aberto para todo.  Se alguém conhece um paywall que resolva isso, favor me passar o link.  Segue o artigo traduzido:

Moto Hagio, a rainha do mangá, finalmente celebrada na França
Por Arthur Bayon

Moto Hagio e uma das 163 pranchas originais (trecho de O Clã dos Poe) da exposição “Além dos Gêneros”, até 17 de março no Museu de Angoulême. Assessoria de Imprensa/Shogakukan

RETRATO - A mangá-ka japonesa de 74 anos é a convidada especial do 51º Festival de Angoulême, que lhe dedica uma exposição retrospectiva. Há muito ignorada pelas editoras francesas, esta apaixonada pela cultura europeia e pela ficção científica norte-americana regressa este mês às livrarias.

Enviado especial a Angoulême

Os aplausos parecem não querer parar. No palco do teatro de Angoulême, Moto Hagio, uma elegante septuagenária japonesa, faz uma reverência a um público antecipadamente conquistado. A conferência pode começar. “Mesmo no Japão nunca tive oportunidade de assistir a uma de suas entrevistas”, garante Julie, tradutora, sentada nas primeiras filas.

“Moto Hagio é um monumento na história dos quadrinhos japoneses. Acho que não há autor mais importante no século XX na manga”, explicou-nos algumas semanas antes Xavier Guilbert, um dos dois curadores da exposição atualmente dedicada a ela no Museu de Angoulême, até 17 de Março. Estas 163 pranchas originais com composições ousadas retratam com ardor uma carreira muito eclética. “Não esperava menos da França!”, sorri a mangá-ka, recebida pelo Le Figaro no âmbito do festival de quadrinhos, que lhe atribuiu um Fauve honorário no sábado.

“Escondia-me para ler e desenhar”

Há entrevistas traduzidas da autora, aqui, no blog.  Segue os links: 2010 (1/2), 2010 (1/2/3), 2018 (1/2) e 2019 (1/2/3).  As duas últimas foram presente do Luiz, ele tem um blog que, no ano passado, começou a publicar regularmente entrevistas de mangá-kas.  Me pergunto quando Hagio Moto será descoberta pelas editoras brasileiras.  De repente, será uma editora como a Comix Zone que terminará fazendo o serviço, enquanto as grandes da área se fingem de mortas.


P.S.: O Luiz conseguiu quebrar o paywall. O link para o artigo completo é este aqui. Vou traduzir depois.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Notícias do Festival de Angoulême

Começa amanhã, dia 25, o Festival de Quadrinhos de Angoulême (Festival international de la bande dessinée d'Angoulême), o maior do mundo e que está em sua 51ª edição.  Hoje, saiu o nome da vencedora do Grand Prix, a maior condecoração dada pelo festival. A britânica Posy Simmonds, conhecida no Brasil pelo seu álbum Gemma Bovery, foi a vencedora deste ano, juntando-se a um grupo restrito de mulheres contempladas, ela é somente a quarta, as demais são Florence Cestac, Rumiko Takahashi e Julie Doucet.  Posy Simmonds é quadrinista e autora de livros infantis.  Ela escreve e ilustra suas obras e começou sua carreira em 1972, desenhando para o The Guardian.

Sobre sua premiação, Posy disse o seguinte: “Sempre pensei que, em um mundo perfeito, o gênero do vencedor do prêmio não deveria ser notável (...)Mas é um mundo imperfeito e o mundo dos comics e da bande désinée sempre foi um meio masculino, uma espécie de clube de meninos. Mas, pouco a pouco, especialmente na última década, as mulheres infiltraram-se, por isso tenho o prazer de ser uma delas, claro.”  Ela está corretíssima e o "clube" são os próprios homens que criam e estabelecem as regras, excluindo as mulheres por serem mulheres.  Achei uma entrevista interessante dela do ano passado, para quem quiser.  Se desejarem que eu traduza, deixem o pedido nos comentários.

E, no caso de Angoulême, sempre é preciso lembrar que, em 2016, um dos organizadores do evento justificou a não premiação de mulheres em virtude da sua irrelevância na história dos quadrinhos.  Foi um escândalo, mas, de lá para cá, tivemos mais mulheres indicadas, este ano eram duas e um homem, mas não, de premiadas.

A outra notinha é que foi aberta a exposição da obra de Hagio Moto e apareceu no Twitter a foto da mangá-ka em Angoulême.  O nome da exposição da autora é Hagio Moto, au-delàs des genres, em português, "Hagio Moto, além dos gêneros".  Para mim, é óbvio que se trata de um jogo tanto com gêneros de mangá, porque Hagio Moto já fez de tudo, como com gênero, no sentido de papéis desempenhados por homens e mulheres em uma dada sociedade.  Como ela fez ficção científica, a coisa vai além do masculino e feminino mesmo.  

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

A Nova Edição Francesa de Nodame Cantabile sairá em fevereiro

Eu só quero deixar registrada a minha profunda inveja por dois motivos, em primeiro lugar, trata-se de uma REEDIÇÃO, isso quer dizer que os franceses já puderam ler a série em sua língua em outro momento; em segundo lugar, trata-se de uma edição completa em formato maior, em menos volumes, e com as capas novas, além de todos os gaiden e bônus que você pode desejar.  A editora é a Pika.

O anime de Nodame Cantabile (のだめカンタービレ) foi exibido em canais de assinatura no Brasil com legenda e tudo mais, mas o mangá nunca sequer foi aventado por aqui, imagino eu.  E nem será, salvo se tivermos um revival da série no Japão.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Hagio Moto é uma dos convidados do Festival de Angoulême

Hagio Moto é uma das mangá-kas mais importantes do Japão e uma das artistas que revolucionaram o shoujo mangá nos anos 1970.  Inédita no Brasil, por razões que são um mistério para mim, sua obra vem sendo celebrada em vários países, como Itália, França e Estados Unidos.  Hagio Moto é um dos grandes nomes que se farão presentes no próximo Festival de Quadrinhos de Angoulême, o maior do gênero no  mundo.

A 51ª edição de Angoulême, que ocorrerá entre  25 a 28 de janeiro,  será memorável. Segundo o site francês Animeland, além de Moto Hagio, são convidados e Hiroaki Samura (Blade of the Immortal) e Shin’ichi Sakamoto (Innocent). Como será ano de Olimpíadas de Paris, haverá uma parceria entre o evento esportivo e o festival.  Deve ser algo memorável.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Comentando "L'évasion de Louis XVI" (A Fuga de Luís XVI): Parece que a tentativa midiática de reconstruir a imagem e Luís XVI é mais antiga do que eu pensava

Abri o Youtube mis de duas semanas atrás (*para vocês verem quanto tempo estou com este texto parado por aqui*) e ele me sugeriu um docudrama chamado "L'évasion de Louis XVI" (A Fuga de Luís XVI), curiosamente, estava com título em português, aquelas traduções automáticas que a plataforma faz, e legendas geradas em nossa língua.  Como estava já no embalo, afinal, tinha assistido ao especial da Rosa de Versalhes (*que pretendia resenhar e não sei mais se o farei*) e estou falando exatamente de Revolução Francesa com as minhas turmas no trabalho (*agora, já cheguei em Napoleão*), acabei assistindo.  

O que me pegou foi, logo no início, o tal docudrama propor mostrar o Luís XVI para além da "legenda negra", do homem indolente, lento de raciocínio e GORDO, mostrando um rei comprometido com seu povo, culto, inteligente e que amava sua família.  "Vem bomba por aí!"  E veio, claro!  Não tinha como um negócio como esse dar certo.  🤗  Mas comecemos com o resumo oficial do filme:  "Para salvar seus filhos  do terror e sua esposa, Maria Antonieta, da condenação popular, o rei Luís XVI, disfarçado de bom burguês, foge incógnito do Palácio das Tulherias, onde é prisioneiro. Mas nada sairá como planejado. O fracasso de sua fuga terminará um ano depois com a decapitação do rei e da rainha da França."  

"L'évasion de Louis XVI" faz parte de uma série histórica do canal France 2 chamada "Ce jour là, tout a changé" (Naquele dia, tudo mudou) e que tinha como objetivo enfocar pontos de virada na história da França.  Aparentemente, foram somente cinco episódios, todos exibidos em horário nobre, entre 2009 e 2010.  Sim, achei que era coisa nova, mas não era.  O foco dos episódios é sempre nos "grandes homens" (Henrique IV, Napoleão, De Gaulle, Carlos Magnos etc.) e, ao que parece, deixando um rastro de controvérsias, especialmente, este episódio sobre Luís XVI.  Quando comecei a escrever este texto terminei tropeçando em uma carta aberta de historiadores e historiadoras apontando os erros (*ou falsificações*) do episódio e, o que é mais importantes, condenando a autoridade educacional parisiense à época por endossar o material e promover sessões especiais para o público escolar.

Mas o que foi a Fuga para Varennes?  A Revolução Francesa começou (*oficialmente*) em 14 de julho e a partir de outubro de 1789, a família real foi obrigada a residir no Palácio das Tulherias, bem no centro de Paris, e estava sujeita a todo tipo de pressão por parte do povo da cidade e da Assembleia.  O rei mantinha os poderes executivos em um sistema tripartite (*Executivo-Legislativo-Judiciário*), mas não tinha condições de vetar nenhuma lei.  Em 12 de julho de 1790, a Constituição Civil do Clero obrigou os sacerdotes a jurarem obediência às leis do Estado francês; o papa reagiu ameaçando os que se submetessem de excomunhão.  Ao não vetar a lei, o rei perdeu o apoio de muitos membros da nobreza, vários de seus parentes deixaram a França, e Luís XVI se viu pressionado pelos revolucionários a não aceitar os serviços religiosos de sacerdotes não-jurados.  

O rei e sua família eram vigiados de perto, seus papéis revistados e se encontraram indícios de que eles tocavam cartas com inimigos da França (*emigrados, líderes estrangeiros*).  Diante dessas pressões, o rei finalmente aceita um plano de fuga planejado pelo Conde Fersen (*amante, platônico, ou não, de Maria Antonieta*) e do General Bouillé, única pessoa citada por nome na Marselhesa e que resistia à Revolução na região de Montmédy.  A fuga durou pouco, 20 a 21 de junho de 1791, e, depois de vários erros, o rei foi reconhecido em Varennes, a família capturada e trazida de volta para Paris.  A partir daí, a monarquia estava com os dias contados, pois o rei seria acusado de traição por tentar sair da França e de se aliar à tropas estrangeiras.  Na verdade, a rota fora planejada para evitar que a fronteira fosse cruzada, mas já era tarde e o furor revolucionário estava a todo vapor.

"L'évasion de Louis XVI" conta a história da Fuga para Varennes pelo olhar de Luís XVI, interpretado por Antoine Gouy, um ator bonitão e magro.  Aliás, um dos pontos de partida do filme seria negar a obesidade do rei, afirmando ser difamação.  Só que o monarca era chamado pelo povo revoltado de "Luís, o gordo", em determinado momento do docudrama, o Duque de Orleans (Erick Deshors), um dos vilões dessa história, chama o primo de "gordo", também, o que é ridículo, porque o ator em questão não é gordo.  Foi como no filme A Revolução em Paris, aliás, há muito em comum entre os dois filmes, que estão em espectros políticos diferentes, mas buscam reconstruir a imagem de Luís XVI.  

Olha, vamos começar por essa gordofobia mal disfarçada?  Falando dos irmãos do rei, a tomar por seus retratos de antes da Revolução Francesa, Madame Elisabeth e o Conde de Artois (*futuro Carlos X*) não eram gordos para os padrões da época, já o Conde de Provence (*futuro Luís XVIII*) e Madame Clotilde eram, assim como Luís XVI.  Gordos eram discriminados?  Sim, isso já ocorria, mesmo que não da forma doentia do século XX e XXI.  Há um livro inteiro o Georges Vigarello discutindo como a obesidade foi tratada no Ocidente, e, bem,  ela  não era impeditivo para que um sujeito fosse um bom rei.  Daí, é curiosa essa preocupação do docudrama em negar a obesidade do rei, ou tomá-la como ofensa, ou algo que o diminuísse como governante e, muito provavelmente, homem.

O Luís desse filme não é gordo, é magro e elegante, charmoso, bonito, decidido, um homem cheio de virtudes e pacifista.  O filme repete, sabe-se lá quantas vezes, que ele jamais lançaria tropas contra o seu povo, nunca se aliaria à potências estrangeiras contra os franceses, além de sonhar com uma monarquia constitucional, mas não com aquela constituição já aprovada.    O problema, e a carta dos professores reclamando do episódio foi enfática nisso, é que o filme ignora a cronologia da Revolução Francesa.  Não havia constituição ainda, ela só viria em setembro de 1791, da mesma forma que não havia Terror, ele só começaria em meados de 1793.  

Atropelaram tudo e foi de propósito, segundo a carta dos professores, trata-se de um projeto da extrema-direita católica monarquista (*ficou meio redundante isso aqui*) do país de demonizar a Revolução Francesa desde as suas origens.  Por exemplo, há o flashback, uma das várias recordações de Luís XVI, da Marcha das Mulheres sobre Versalhes (5 de outubro de 1789).  O rei está caçando como se nada estivesse acontecendo, tal e qual o rei na Rosa de Versalhes (ベルサイユのばら), mas não com um ar cômico, porque esse rei é uma figura séria, e chega alguém comentando que as mulheres estariam marchando sobre Versalhes para exigir que ele vá para Paris.  Luís XVI diz que se recusa a abandonar a residência de seus ancestrais e ri do fato de serem mulheres.

O cara que vem avisar se apressa em informar que a maioria eram homens vestidos de mulher.  Mentira, havia homens vestidos com roupas femininas, ou não, mas a maioria eram mulheres mesmo e armadas.  E o próprio filme mostra que havia muito mais mulheres do que homens, mas colocam os representantes do sexo masculino como muito violentos, parecendo aqueles saídos de delírios transfóbicos sobre sujeitos que se vestem de mulheres para cometerem crimes.  Já as mulheres, várias tem cabelos desgrenhados, olhar esbugalhado, parecidas com as saídas de ilustrações difamatórias sobre bruxas.  E elas vociferam insultos contra a rainha, o que realmente aconteceu.  Uma delas chega a cortar o braço, lamber o sangue e dizer que faria o mesmo com Maria Antonieta.  O filme não mostra a intervenção de Lafayette (*porque no filme, ele é vilão*) para salvar a família real, nem a rainha se curvando no balcão, a ênfase é no retorno de Luís XVI, o pai e marido protetor, para acalmar todo mundo e acabamos não sabemos como a turba é contida.  Corta a cena para a carruagem levando a família real para Paris com cabeças enfiadas em pedaços de pau e o povo cantando Ça Irá.  

No docudrama, o rei é um democrata exemplar, ainda que acredite (*eles não conseguem fugir disso*) ser rei por direito divino.  Durante a sua fuga, é sempre enfatizado que os ideais revolucionários são compartilhados por poucos, que o rei é amado e respeitado, que a monarquia é sólida e inquestionável.  Em um dado momento, um camponês reconhece o monarca , que não nega quem é, beija-lhe as mãos, recomenda que tenha cuidado e lamenta os tempos sombrios nos quais vivem e que "todo mundo se sente explorado".  Sim, pessoal, esta fala é colocada na boca de um camponês, é como o escravizado em Força de um Desejo defendendo o senhor e sua necessidade de ter escravos.

Que o rei era menos odiado que muitos membros da nobreza e da família real, é fato, demorou muito para que o ódio popular, ou parte dele, se voltasse contra o monarca.  Luís era visto mais como um fraco, alguém inadequado para ocupar o lugar de rei, do que alguém que deliberadamente prejudicasse o seu povo.  Enfim, ele seria um sujeito que, se não tivesse nascido na família real ou da alta nobreza, talvez pudesse ter sido um bom padre, um excelente mestre escola, um cientista ou intelectual de respeito.  O problema é que ele era rei, não foi devidamente preparado e fugiu de suas obrigações mínimas.  Sim, estou falando de sexo aqui e terei que comentar como o episódio foi vil com Maria Antonieta.

O Luís XVI do filme é apaixonadíssimo por sua rainha, as imagens que escolhi apontam para isso, mas faz questão de enfatizar que ela não cumpriu com suas funções de rainha e esposa.  Em um flashback, Antonieta mostra ao marido os panfletos difamatórios; ele comenta que o chamam de corno com um olhar significativo para ela, depois, pontua que aquele tipo de material não representa nada, mas que eles não existiriam se ela se comportasse melhor, gastasse menos (*todos na corte gastavam muito*) e fosse caridosa (*Antonieta era caridosa  dentro dos padrões da sua época*). Ela diz que abandonará o Petit Trianon, seu palácio particular onde a etiqueta não era seguida.  Neste momento, o narrador diz que Antonieta cometeu um erro ao alijar a alta nobreza ao se isolar no Trianon, e que era alvo de toda a atenção negativa do povo, porque seu marido não tinha amantes. Duas pequenas verdades.  

A seguir, o rei pontua que o povo a veria como uma mãe se ela agisse como uma rainha de verdade.  Assim como na Rosa de Versalhes, o rei estava entregue ao seu hobby, fazer chaves, enquanto o mundo desabava ao seu redor, só que o rei desse docudrama se dá ao direito de dar lições de moral em todo mundo, porque ele era um modelo de virtude e cumprimento do dever.  Mais tarde, durante a fuga, ele a acusa mais de uma vez de odiar o povo francês, logo, o ódio que sentiam contra Maria Antonieta seria justificado.  Bem, Maria Antonieta fez o possível para ser francesa e ser amada por seu povo, mas, desde o início, foi chamada de L'Autrichienne, a austríaca, mas, também, um trocadilho para autri-chienne, cadela austríaca.  Acusá-la e não amar os franceses é endossar a difamação feita contra a rainha, ou seja, para elevar Luís XVI, se deve vilanizar, ou rebaixar, sua esposa.

Em outro flashback, não se sabe por qual motivo, o rei, que está no meio de uma caçada, recebe uma carta e amor de Fersen para a rainha por engano (!!!).  Ele quase desmaia, é segurado pelos seus acompanhantes.  Em seguida, entra em um frenesi sanguinário, um negócio estranhíssimo, atiça seus cães contra um cervo abatido e se delicia em vê-los dilacerarem o animal.  Depois, coberto de sangue, invade a tenda onde a rainha joga cartas.  Expulsa todo mundo, a acusa de não ser caridosa com os pobres.  Ela tenta fazer piada e ele fica violento, pensei que iria bater nela.  Fala de Fersen, ela nega o romance.  Ele diz que faz tempo que sua cama é usada somente para dormir.

Ora, quem deve ser ativo nesse caso?  O rei.  Há papéis de gênero a seguir e a produção faz questão de dizer que Luís cumpre todos, curiosamente, neste caso, joga a culpa na esposa.  Uma rainha não deveria ir bater na porta do marido em busca de sexo, fora isso, apesar do filme dar a entender que só há uma cama, cada um tinha seus próprios aposentos, mesmo nas Tulherias, isso é mostrado.  Luís XVI não tinha lá tanto interesse por atividades sexuais, aparentemente, nunca teve uma amante, mas deveria ter como prioridade gerar descendência.  O casamento demorou cerca de sete anos para ser consumado e a culpa recaiu sobre Antonieta.  Quando vieram os filhos, ela foi acusada em panfletos e cochichos de adultério, ou de tentar matar seus próprios filhos. O filme tenta fazer crer que ela se negava ao marido, que seria um homem amoroso e apaixonado.  Não há evidência disso em fonte alguma.

O que Antonieta faz diante da acusação do marido?  Tira a saia do vestido e se coloca diante do marido, se oferecendo a ele.  Não sei se quem subiu o vídeo no Youtube jogou blur, ou se é do original, mas não vemos a nudez da atriz, porque o filme é fiel e ela está sem roupa de baixo.  Aparentemente, eles fazem sexo.  Ele todo sujo de sangue.  Deve ser uma forma da película afirmar a virilidade do rei, mas eu sempre acho essas cenas de sexo com gente ensanguentada um negócio meio doentio; não tenho fetiche por essas coisas, não, mas cada um com seu cada um.

Durante a fuga, conhecemos Fersen (*fotos abaixo*) e ele tem uma cara de menininho, parece um adolescente mesmo. O ator que o interpreta, Martin Douaire,  deveria ser bem novinho na época do filme e não tem biografia nem no IMDB, nem na Wikipedia.  Tive que parar os créditos para localizá-lo. A ideia é clara, fazer o contraponto entre o rei, um homem adulto, e um menino, quando, na realidade, eles tinham mais ou menos a mesma idade. 😄 Aliás, assim como em Maria Antonieta de 1938, a atriz que faz a rainha, a lindíssima Estelle Skornik, é bem mais velha que o ator que faz o rei e o que faz Fersen.  Fora isso, o conde sueco parece tímido e inseguro e está no filme para ser esculhambado por Luís XVI, o homem perfeito, um macho alfa, que o olha de cima e com ódio e desprezo. Durante suas poucas cenas, Fersen troca olhares apaixonados e amedrontados com Antonieta, que se encolhe diante do marido.  

Sim, o Luís XVI do filme deve bater nela, a pegou pelo braço de forma rude, teve a cena violenta dele ensanguentado, a gente só não viu a agressão se concretizando em tela.  Maria Antonieta, segundo fontes da época atribulada que eles estavam vivendo, se comportava como o homem da família.  Sim, é um elogio machista para ilustrar que o rei estava apático e chocado e ela, a rainha, é que tinha que tomar a frente das coisas. O filme inverte essa relação e reforça hierarquias tradicionais de gênero, na Fuga, ela se atrasa e o rei vai sozinho buscá-la, porque, segundo ele, ela vive se perdendo e se atrasando.  Uma desastrada que precisa de uma mão masculina forte.  Aliás, Antonieta não sabe de nada da fuga, o rei esconde tudo dela, porque, claro, não confia na esposa, afinal, ela não ama a França (*segundo ele*) e é uma absolutista e, não, um democrata como o rei. 😏

Enfim, o bonitinho do Fersen é dispensado logo no início da fuga, o que é historicamente correto, porque o rei, neste filme, não aguenta mais olhar para ele e, claro, tudo termina muito mal.  Aliás, o rei vai parando com a carruagem pelo caminho para testar sua popularidade com as lavadeiras e os camponeses e mostrar para a gente que a Revolução Francesa era mania de parisiense e que somente Maria Antonieta era odiada.  Como digo para meus alunos e alunas, com mais de 80% de camponeses na população, não havia como fazer revolução sem o apoio dos camponeses, ou de parte considerável deles.  Ah!  Mas vamos falar dos vilões?  Porque tem vilão de montão nesse filme e as caricaturas ficaram até bem divertidas.

Na leitura dessa produção, todos os que defendiam a revolução eram malvados, alguns, mais ridicularizados que outros, claro.  O primeiro vilão a dar as caras é o Marquês de LaFayette (Patrice Juiff).  Ele lutou na guerra de independência dos EUA (*e o rei se arrepende de tê-lo mandado para a América*), ele foi o principal redator da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ele garantiu a vida da família real quando da marcha das mulheres, mas no docudrama, ele é o sujeito mau, porém inteligente e calculista.  Ele ameaça Léonard (Xavier Aubert), o cabelereiro de Maria Antonieta, e tenta obrigá-lo a espioná-la.  O afetado Léonard pergunta assustado "O senhor está me ameaçando de morte.", no que Lafayette se chega mais para perto e diz sem mover um músculo "É óbvio que estou.".  É o tipo de vilão sincero que eu aprecio.

Léonard, aliás, é colocado no filme como um estereótipo de afeminado em oposição a modelos de virilidade militar (*e muito mais modernos do que típicos do século XVIII*), quando, se muito, ele era um fop.  Fops eram homens com grande senso estético, que se vestia de forma muito apurada e que faziam um enorme sucesso com as mulheres, alguns tinham várias amantes.  E o fato de serem fashionistas não os impedia de serem muito competentes nas artes da guerra, uma coisa não obstruía a outra.  O Léonard histórico era casado e tinha vários filhos.  Enfim, Léonard não trai Antonieta e a família real e cumpre um papel importante na fuga, mesmo sendo tratado com desprezo pelos soldados, que não querem um ser abjeto (*esta é a construção do filme*) e irritante ao seu lado.  

O outro vilão, e este eu considero mesmo, era o Duque de Orleans, primo do rei, que acredita que irá tomar o trono para si.  Há uma conversa ótima entre ele, deslumbradíssimo, outro fop, e Lafayette, na qual o marquês expõem toda a fragilidade do plano do duque.  Por qual motivo a Assembleia faria do Duque de Orleans regente, ou mesmo rei?  Com a queda de Luís XVI, viria a república, esclarece Lafayette.  Outra cena ótima do Duque de Orleans, sempre fazendo dobradinha com Lafayette, é quando ele se transforma em "Philippe Egalité" (Filipe Igualdade), cidadão modelo.  Ele está com uma capa super espalhafatosa e sai de dentro dela vestido com um pretinho básico e discreto (*para os padrões dele*) e ostentando a cocarde (*a símbolo tricolor*) no peito.  Sim, Orleans, que iria parar na guilhotina, é um vilão bem bandeiroso.  

Como no filme das origens dos Kingsman, o docudrama nos oferece uma sequência deliciosa em que vários ícones da  revolução todos juntos tramando contra Luís XVI.  Robespierre (Renaud Garnier-Fourniquet), Marat (Franck de la Personne), Camille Desmoulins (Franck Victor), Danton (Frédéric Cuif), Orleans.  Para mostrar diversidade, incluem a esposa de Demoulins, Lucille (Lucile Desmoulins), e Madame Roland (Alexandra London). 

A interação entre os vilões é divertida, porque havia gente naquela sala que nunca iria conversar, como diz o Reinaldo Azevedo, eles não eram da mesma enfermaria, mas estão todos lá tramando juntos o futuro da França pós eliminação de Luís XVI.  Camille Desmoulins, o que eu demorei mais a identificar, parece ou gago, ou semianalfabeto, porque trava o tempo inteiro lendo uma mísera carta.  Marat vociferando enlouquecido, Danton sendo já sugerido como traidor.  E as mulheres, ambas com um ar malicioso, nunca seriam chamadas pelos homens daquele grupo para discutir um tema tão importante em pé de igualdade.  E o destaque, como não poderia deixar de ser, é para o ator que faz Robespierre.  

O ator entendeu muito bem a ideia do docudrama e dá um ar bem traikçoeiro e cruel para a personagem. Ele tem olhinhos pequenos, olha todo mundo de baixo para cima, parece impassível e sugere que Orleans não estava entendendo os acontecimentos.  Ele é inteligente, calculista, cruel e quer o poder.  Eu adoraria um filme sobre esse Robespierre com este enfoque distorcido e em um embate com LaFayette, como seu antagonista na luta pelo poder durante a Revolução.  Seria super interessante. 

Outras personagens com algum destaque são Madame Elisabeth (Adélaïde Bon), a irmã caçula do rei, e alguém que o ama e compreende, está em sintonia com ele.  Ela era assim mesmo.  No filme, colocam Luís ajudando a empurrar a carruagem atolada e ela descendo para empurrar junto.   É uma cena um tanto surreal.  O menininho que faz Luís Carlos (Morgane Rouault), o filho caçula do rei, e que teve que se vestir de menina na fuga, é bem fofo.  O docudrama também mostra a morte de Luís José (Timothy Sebag), o filho mais velho, e a tristeza de seus pais, ainda que o foco seja maior no rei.  E temos Madame Royale (Sophie Nounouhi), a princesa Maria Teresa, e mesmo que a conversa tenha sido o blá-blá-blá de que o rei era um democrata, foi legal colocarem Luís XVI chamando a filha de Musseline, seu apelido em família.

E o filme termina com a morte do rei e qual seria o destino dos malvados que o levaram à morte.  Deles todos, o único que sobreviveu à revolução (1789-1799) foi LaFayette, o mais calculista e pragmático dos vilões do filme.  E o docudrama termina  com um grande elogio ao pobre rei, que poderia ter sido grandioso, mas acabou sendo um mártir.  É mais grandioso ser mártir??  Não sei.  

O fato é que este filme, que tem um figurino muito bom, pelo menos acho que tem, me surpreendeu negativamente e me mostrou que Revolução em Paris está longe de ser a primeira tentativa de mudar a imagem que os franceses tem de Luís XVI e de como esses esforços terminam, pelo menos na minha percepção, por serem ridículas e até ofensivas, fora, claro, que terminam por vilipendiar Maria Antonieta como se para compreendermos melhor seu marido, tivéssemos que apequená-la e difamá-la de novo.  É um filme muito enviesado no seu esforço de exaltar o rei e abordar a Revolução Francesa como um grande mal que não tinha apoio popular, mas era coisa de gente perversa e ambiciosa.  É isso, finalmente, terminei esta resenha.  O filme está aí embaixo: