terça-feira, 4 de março de 2025

Comentando Anora (EUA/2024): Um filme independente mediano que levou os prêmios Oscar mais importantes do ano

Como Anora venceu o Oscar, levando prêmios em cinco das seis categorias as quais concorreu (*filme, diretor, atriz, roteiro original, edição*) e houve toda a confusão quando Mickey Madison levou melhor atriz, precisava assistir o filme, tanto que a resenha dele está passando na frente de Conclave, filme que eu amei.  A vitória no Oscar já vinha sendo cantada fazia algum tempo, porque o filme venceu vários prêmios, inclusive dos sindicatos, gente que vota no Oscar, gente da indústria.  Enfim, se eu tivesse que definir Anora em uma frase seria a seguinte, trata-se de uma dramédia (pseudo) romântica amarga, que tenta parecer realista, mas flerta o tempo inteiro com uma idealização dos homens e a objetificação dos corpos das mulheres.  Sim, é isso aí.  Trata-se de um filme bem mediano que, por vários motivos, caiu no gosto da indústria do cinema.  Mas vamos ao resumo.

Ani/Anora (Mikey Madison) é uma jovem stripper de Brighton Beach, um enclave russófono na cidade de Nova York. Como ela é um pouco fluente nessa língua, porque sua avó era russo e nunca aprendeu inglês, seu chefe normalmente a coloca com clientes de língua russa, que tem dificuldades para se comunicar. Por conta disso, Ani conhece Ivan "Vanya" Zakharov (Mark Eydelshteyn), o filho de um oligarca russo.  O rapaz, que parece muito mais jovem do que é, esbanja riqueza e acaba simpatizando com a moça, que é uma prostituta muito competente.  Como seus pais querem que ele volte para a Rússia e assuma um papel nos negócios da família, ele propõe casamento para Ani, ele teria o green card e ela viveria no luxo.  Para Ani, é como um sonho de cinderela e ela começa a planejar inclusive sua lua de mel na Disney, lugar que nunca pode visitar.  Seu casamento de conto de fadas começa a ruir, quando os pais de Vanya descobrem que ele se casou com uma prostituta e mandam capangas para resolver o "problema" e conseguirem a anulação do casamento.  Como a coisa não parece tão simples, os pais do rapaz vão para Nova York para conseguirem colocar fim ao casamento de Ani e Vanya e levarem o filho de volta para a Rússia.

Quem se aproximar de Anora esperando algo como Uma Linda Mulher vai se decepcionar.  Não teremos um final feliz, não é a proposta do diretor (Sean Baker), ele está se tornando um especialista em retratar a falência do sonho americano.  Ani mora em uma casinha até bonita, mas em um subúrbio empobrecido, com o trem ou metrô passando barulhento a poucos metros de sua janela.  Uma grande diferença em relação à mansão de Vanya e sua vista espetacular.  Ani trabalha em um clube de strip tease pé sujo.  Não deve ser dos piores, mas está muito longe de ser dos melhores.  Ao terminar o filme, ela parece estar no mesmo lugar.  Parece.

Algo curioso é que mesmo que a vida de Ani seja evidentemente triste e sórdida, o diretor acredita que está conscientizando a sociedade em relação ao que ele chama de trabalho sexual.  E cito a matéria da Bazaar“Não sei se um filme pode, sozinho, provocar uma grande mudança, mas pode ser um pequeno passo nessa direção. É o que tenho feito em todos os meus trabalhos: um passo por vez, tentando afastar o estigma. Sempre que posso me expressar, defendo a descriminalização do trabalho sexual, mas sem ser muito militante. Quero que o maior número possível de pessoas assista aos meus filmes. Vamos ver.”  A matéria segue, inclusive com falas de Madison, comentando como as performances sexuais de Ani são uma demonstração de competência e citando a biografia de uma famosa prostituta que via na profissão uma via de empoderamento.  

Não sei se o diretor não está a par, mas a prostituta de bom coração é uma personagem recorrente na ficção, a prostituta que se redime pelo amor ou pela religião, também, assim como a prostituta que esconde suas dores e parece poderosa (*não empoderada*), porque ela é livre para fazer sexo.  Normalmente, na ficção que explora o terceiro caso, nunca sabemos muito bem como essa mulher foi parar nessa vida, mas quando é dito, mesmo que de forma rápida, raramente a história é bonita.  Escolher a prostituição, escolher mesmo, tendo outras possibilidades, é para poucas.  Baker não nos conta o passado de Ani.  Sabemos pouco dela.  Ela tem/teve uma avó russa, uma irmã que parece não gostar dela e com quem divide a casa, uma mãe que mora "com seu homem" em Miami.  E é somente isso.   

Ani foi abandonada pela mãe?  E seu pai?  Qual a profissão de sua irmã?  Como se tornou prostituta?  Foi uma ESCOLHA?  A rapidez com que Ani desiste da sua vida de prostituta, mesmo pensando na quantidade de dinheiro que Vanya tem, me sugere que não havia muita paixão envolvida na atividade, havia necessidade.  Isso fica claro em conversas dela com Vanya antes dele casar com ela, pois a não ser que ele pague por exclusividade, ela tem contas a pagar.  Agora, se não sabemos quase nada sobre a protagonista, conhecemos todo o corpo de Mickey Madison desde a primeira cena, porque ela já começa o filme trabalhando.

Confesso que foi muito difícil atravessar a primeira meia hora de Anora.  O filme abre exibindo bundas de mulheres, peitos, corpos fragmentados, a perfeita objetificação do corpo feminino.  Somente depois, vemos as mulheres de corpo inteiro, seus rostos, porque, enfim, elas são somente isso, corpos, todos perfeitos, que fique claro.  Já os homens, os clientes, estão todos vestidos, porque eles não são objetos,  eles não estão ali para atrair o olhar cobiçoso da audiência.  Anora é um filme com um olhar tão objetificador sobre o corpo das mulheres, que me fez ver Pobres Criaturas quase como um filme feminista. Quase.

Meia hora depois do início do filme, finalmente, deixam a Mickey Madison ficar vestida o tempo todo.  Depois de muitas festas, sexo, drogas e viagens, o casamento de conto de fadas começa a ruir. Na verdade, Ani já estava entediada, afinal, descobre que seu príncipe é um moleque interessado somente em sexo, drogas, baladas e videogames, não existe conexão entre eles de verdade.  E eis que entram em cena os dois capangas do do padrinho de Vanya, Toros (Karren Karagulian), que, aparentemente, era responsável por manter o rapaz na linha.  Os capangas, Garnick (Vache Tovmasyan) e Igor (Yura Borisov), entram em luta corporal com Ani, que vira uma espécie de refém, enquanto Vanya foge sem olhar para trás.

A partir desse momento, o filme vira comédia (*até virar drama, já no final*), com momentos de pastelão, tipo Trapalhões mesmo, e com muita gritaria, como na sequência que destrói a sala da mansão. Consegui rir, mas foi de constrangimento.  Ani machuca os capangas, os xinga de tudo o que é nome, especialmente, atingindo a sua virilidade, e nenhum deles bate nela.  Imagino que capangas pagos por um oligarca russo, e esse tipo de ricaço normalmente enriqueceu com negócios escusos quando da derrocada da União Soviética, não sejam sujeitos desacostumados à violência e a intimidar mulheres.  Mas o diretor que (*supostamente*) foi tão realista em expor o corpo das prostitutas, cria capangas de mafiosos que são super cavalheiros com a mulher que deveriam intimidar.  Toros parece uma versão mais alta do Joe Pesci em Máquina Mortífera 2.

Anora acaba sendo obrigada a ajudá-los a procurar Vanya pelo enclave russo de Nova York.  Ela continua tratando mal os capangas, especialmente, Ivan, que se esforça para ser gentil com ela e olha para a moça com misto de devoção e pena.  No fim das contas, Vanya era somente um moleque ridículo, coisa  que qualquer um da audiência perceberia logo de olhar para ele, incapaz de assumir responsabilidades e que não se importava em nada com Ani.  A chegada dos pais dele, especialmente, da mãe (Darya Ekamasova), que parece vilã caricata de novela define a situação.  O casamento terá que ser anulado, Ani, depois de tentar resistir em vão, vai sair com uma mão na frente e outra atrás.  E, se os capangas de mafioso tratam Ani como se ela fosse um cristal prestes a se quebrar, a ameaçando muito pouco, a mãe de Vanya não tem pudores em dizer que, se ela não cooperar, vai destruir sua vida e a da todos os parentes dela.  E  o filme tem o desfecho que sinalizava desde o início.  O sonho de cinderela não dura muito.

Falando de Mikey Maddison, que até então tinha uma carreira modestíssima, ela está bem no papel,  fez exatamente o que tinha que fazer e ela tem uma beleza que foge do padrão, seus olhos em especial, são lindos.  Ela é boa de verdade e se entrega em todos os momentos do filme.  Como Anora virou o queridinho, Madison levar o Oscar era uma possibilidade. Espero que não prejudique a carreira dela, porque um Oscar sobe enormemente o grau de exigências. Desejo, também, que ela receba papéis que não explorem desnecessariamente o seu corpo nem a obriguem a ficar xingando dois palavrões por frase.  Sim, eu sei que Anora é lixo branco, mas a coisa é excessiva mesmo.  Estava sentada assistindo no computador e minha menina do outro lado da sala me perguntou por qual motivo eles estavam falando a mesma coisa (*fuck*) o tempo inteiro. "Porque o diretor acha que gente em situação miserável fala desse jeito o tempo todo."

O ator que faz o Igor, Yura Borisov, recebeu indicações de melhor ator coadjuvante no Globo de Ouro, Critics' Choice, SAG Awards, BAFTA e Oscar.  Não venceu nada, porque a temporada foi tora de Kieran Culkin, por A Verdadeira Dor.  Como no caso de Zoe Saldaña, em Emília Pérez, foi um caso evidente de fraude de categoria, na qual um coprotagonista é inscrito como coadjuvante para ter mais chances de prêmio.  E deu certo para ambos.  Houvesse alguma possibilidade de romper essa armação, Borisov talvez levasse o Oscar para casa.  Ele é muito expressivo, atua com os olhos, por assim dizer e é bonito, também. Agora, ele é quase um santo nesse filme e, bem, para fazer o trabalho que ele faz, santo não poderia ser. 

Claro, há um interesse romântico pela protagonista, mas no momento do quebra-quebra na sala, isso não existia ainda.  E na noite em que eles passam na mansão, depois da anulação do casamento, cria-se um clima de sedução entre os dois. Igor chega a procurar o significado do nome de Anora no Google, porque ele diz que é mais bonito do que Ani, o nome de guerra da moça.  Ela continua espezinhando o sujeito e lança ofensas ridículas contra ele, inclusive acusando-o de ser um estuprador (*e ele não fez nada*) e de desejar estuprá-la.  Não sei qual a função disso na narrativa do filme, mas o fato é que Igor  não se move para nada, não altera a voz, não defende sua virilidade, só afirma que não é estuprador e fica olhando para ela com a mesma expressão de adoração e pena que ele exibe durante o filme inteiro. A minha impressão é que a atitude de Anora em relação a ele tinha como objetivo estimulá-lo a tomar alguma ação para que os dois fizessem sexo.  Fantasia do diretor, talvez. Esta noite na mansão seria o momento para, talvez, conhecermos a protagonista e Igor, eles falarem do passado, de seus sonhos, mas o diretor não quis explorar isso.

Enfim, Anora é um filme triste. a protagonista é uma jovem sem perspectivas de vida, presa em uma ocupação na qual é explorada (*mesmo que o diretor tente glorificar a prostituição*), ela sonha com um príncipe encantado que a leve para fazer coisas que toda criança norte-americana deveria poder fazer, como ir a Disney. Só que ela pertence  lixo branco da América e, como parece que é a proposta do diretor em seus filmes, o sonho americano não é para ela.  E terminamos o filme tendo pena de Anora, porque ela foi usada e descartada e, talvez, a porta que parece aberta para ela, ela não saiba abrir.

De resto, voltando à fala do diretor sobre a prostituição, eu gostaria de ver mulheres tendo opções de carreira que não as obrigassem a se deitar com qualquer homem que lhes atirasse dinheiro, ou o colocasse na tira de suas diminutas tangas, como em Anora.  Aí, sim, poderíamos falar em "trabalho sexual" e em escolha.  Se o estigma, a perseguição, o desprezo é fruto do patriarcado, um mecanismo de controle sobre os corpos das mulheres, separando as boas das más, mesmo que as mulheres de ambos os tipos estejam no mundo para servir aos homens, a exploração foi agravada pelo capitalismo.  O filme não reflete sobre nada disso, nao aprofunda nenhuma discussão sobre a prostituição.  Aliás, o filme não reflete sobre nada, e meio que é um painel do mundo cão com três capangas da máfia idealizados.  

Aposto mesmo que Anora será um daqueles filmes sensação de Oscar para serem esquecidos.   E se um filme com a mesma qualidade, ou falta de qualidade, fosse dirigida por uma mulher, ou por um negro, ou que objetificasse homens, eu DUVIDO que fosse indicado para qualquer coisa.  Duvido mesmo.  a favor do filme deixo registrado que as cenas de sexo não são nada escandalosas, mesmo muita gente dizendo por aí que se tratava de soft porn, e a exploração excessiva do corpo da mocinha (*essa, sim, descarada*) e de outras mulheres da trama dura somente a primeira meia hora de um filme de mais de duas horas.  No resto do filme, Mickey Madison está vestida.

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