Esse artigo da Variety é meio que um "a ficha caiu" e caiu rude, por assim dizer. O autor começa a refletir sobre o futuro (talvez) sombrio da democracia norte-americana depois de assistir Ainda Estou Aqui. Quando li o texto, decidi que tinha que traduzir e colocar no blog, porque, sim, é bom ver que alguns norte-americanos estão percebendo que o buraco em que se meteram é fundo de verdade. Pior, é assustador como a extrema-direita avança no mundo e como muita gente ainda não compreendeu que é não somente a existência da democracia burguesa que está em risco, mas a nossa própria existência, especialmente, se você não é homem, branco, cis, rico e (nominalmente) cristão. E, sim, há uma fila para ser massacrado e o fato de você não ser o primeiro grupo a estar nela, nesse caso, as pessoas trans, ou a depender do lugar, os imigrantes, sua vez vai chegar. É só dar corda para eles nos enforcarem.
Enfim, mantive a mesma estrutura do artigo original, só inseri o nome em português dos filmes e documentário citados. Para quem quiser ler o original, ele está aqui (Yes, It Can Happen Here. And the Movies Warned Us). É muito bom ver o cinema suscitando discussões e reflexões tão importantes.
Alguns meses atrás, tive uma experiência cinematográfica que realmente me abalou. Era o início de dezembro, e eu estava no meio da minha maratona de fim de ano, atualizando-me com os grandes filmes de premiação de prestígio que perdi. Um deles foi "Ainda Estou Aqui", o aclamado drama da vida real de Walter Salles, ambientado no Brasil em 1970, sobre uma família cuja existência exuberante e amorosa cai de um penhasco quando o pai, Rubens Paiva (Selton Mello), é levado para interrogatório policial pela ditadura militar do país. Sua esposa, Eunice (Fernanda Torres), é informada de que é um interrogatório de rotina e que ele estará de volta em questão de horas. Mas isso não acontece. As horas se estendem para dias, depois semanas e depois meses. Nunca mais se ouve falar dele.
Tenho assistido a filmes sobre opressão política e cenários como este durante a maior parte da minha vida. Mas em todo esse tempo, posso dizer honestamente que raramente experimentei uma reação tão arrepiante quanto a que tive assistindo a "Ainda Estou Aqui". O filme em si, especialmente a primeira hora, é poderoso. Mas não foi isso; já vi muitos filmes políticos poderosos. O que parecia novo para mim — e intensamente inquietante — era absorver uma saga de repressão como esta e me perguntar se agora tinha potencial para acontecer na América. Senti como se fosse uma pergunta que nunca tive que me fazer antes.
Não é como se não houvesse uma opressão impressionante dentro dos limites dos Estados Unidos. Quando você assiste a um filme dramático sobre racismo, de "To Kill a Mockingbird" (O Sol É para Todos) a "Malcolm X" a "Fruitvale Station" (Fruitvale Station: A Última Parada), você está vendo a realidade escaldante da injustiça sistematizada. Mas estou falando de algo diferente: o espectro da ditadura. Em 249 anos, isso nunca definiu a América. E enquanto todos nós lutamos para entender a questão do que o segundo mandato de Trump significará, até onde ele irá, o quanto o estado de direito está ameaçado e quanta liberdade será perdida — a questão de se, de fato, isso pode acontecer aqui — está claro para mim agora mais do que nunca que os filmes têm nos ensinado sobre tudo isso por décadas.
Se você é um aficionado por cinema, um cinéfilo, ou como você queira chamar, você se empanturrou de todo tipo de filme: antigo e novo, Hollywood e independente, americano e internacional, comédia e romance e faroeste e musical e noir, dramas de guerra e ação e vingança. Mas dramas políticos que exploram o poder do fascismo ocupam um lugar especial. Filmes como "The Conformist" (O Conformista) de Bernardo Bertolucci expuseram a conexão entre patologia pessoal e opressão política. Espetáculos documentais como "The Battle of Chile" (A Batalha do Chile) revelaram as mãos ocultas de governos excessivamente controladores. E houve, é claro, milhares de dramas que contaram a história da Alemanha nazista de dentro. Todos esses filmes foram fatias de experiência sinistra. Todos eles foram avisos.
Nos anos 70, o cinema americano se tornou muito político — mas a conspiração e a corrupção que os filmes da Nova Hollywood abordavam com tanta frequência, derivando de Watergate e Vietnã, contavam uma história não de fascismo (por mais que certas vozes contraculturais possam ter chamado assim), não de autocracia crescente, mas de um establishment político americano que havia se tornado pesado com poder. Claro, a outra metade dessa história era que o sistema foi capaz de se corrigir. Não nos livramos da corrupção. Mas a América, e os filmes que dramatizaram um de seus períodos mais sombrios, demonstraram o quão resiliente nossa democracia falha realmente era.
O fim da democracia é o que vimos em filmes ambientados na Europa, ou em países como a Argentina (como "The Official Story" [A História Oficial], "Ainda Estou Aqui" dos anos 80), ou a China de Mao. Em algum nível, confesso, sempre absorvi esses filmes sentindo como se estivesse assistindo ao que acontece com "eles". As pessoas que vivem nos lugares onde o totalitarismo pode criar raízes. Acho que um dos maiores filmes do nosso tempo é "The Unbearable Lightness of Being" (A Insustentável Leveza do Ser), de Philip Kaufman, porque é um drama de pessoas comuns apaixonadas presas em um pesadelo político. Sempre assisti a esse filme com uma sensação de dois gumes: que os personagens são como eu... mas como estão lidando com a repressão comunista de 1968 na Tchecoslováquia, eles também não são como eu. Porque é onde acontece. Lá.
Quando vi “Ainda Estou Aqui”, pensei: Quão certo estou de que isso ainda é verdade? Quão assustador é pensar que lá, pela primeira vez, pode se tornar aqui?
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