sábado, 25 de janeiro de 2025

Garota do Momento tem a personagem mais feminista que eu já vi em uma telenovela

Preciso fazer um pequeno post sobre a novela Garota do Momento, houve um primeiro texto de análise dos primeiros capítulos, ele está aqui.  Haveria mais coisas a comentar, gosto da novela, tenho críticas, também, mas vou ficar somente com uma personagem, que não é protagonista, mas é, pelo menos para mim, a mais revolucionária da trama, Lígia Sobral.

Interpretada por Paloma Duarte, Lígia é mãe de um dos protagonistas, Beto (Pedro Novaes), casada com Raimundo (Danton Mello), o mais velho de seus filhos, os outros dois são Celeste (Débora Ozório) e Ronaldo (João Vítor Silva).  Quando o filho mais jovem do casal tinha 10 anos de idade, ela foi embora de casa.   Ela não partiu por causa de um amante, ou por não amar o marido, mas porque queria ser LIVRE.  E enfatizei a palavra, porque mais do que ter abandonado o lar para ser cantora, nesta semana, a autora, Alessandra Poggi, colocou pequenas cenas que ajudaram a explicar os comportamentos da personagem.

Qual mãe abandona os filhos?  Celeste é a que mais odeia a mãe, porque ela era tão jovem que mal se lembrava dela.  Em uma cena mais lá atrás, Verinha (Tatiana Tiburcio), a governanta da casa, mulher negra, confrontou Lígia com uma verdade: ela foi a mãe dos filhos da patroa (*e amiga*), deixando seu próprio filho com menos atenção do que poderia receber.  Empregadas que são mães substitutas são uma constante na História do Brasil e na nossa dramaturgia e não falo somente de TV, Que horas ela volta?  é sobre isso, também.  

Esta cena daria outro post, mas é preciso marcar que o vazio deixado por Lígia não ficou vazio, havia alguém lá.  Esse mesmo vazio poderia não ter sido produzido por uma ação tão radical, o abandono do lar, mas por morte, ou mesmo uma agenda social intensa e muito mais importante (*para o marido*).  Mães burguesas delegavam a maternagem (*o cuidar, o estar junto*) para outras mulheres, as da nobreza já o faziam antes.  Nem sempre por escolha consciente, ou de boa vontade, mas não era incomum.  O problema, ou a inovação, no caso de Lígia é que ela se ausentou do lar por vontade própria.

Se Verinha preencheu o vazio materno de alguma forma, ainda que não tenha evitado o trauma, que é forte, ainda que diferente, nos três filhos, o pai, Raimundo, tratou de plantar uma imagem negativa da mãe.  Lígia não amava os filhos, não amava a família, não era uma mulher "de verdade".  Ao longo dos capítulos, ficamos sabendo que Lígia sempre tentou manter contato com os filhos, mas foi bloqueada pelo marido, especialmente, se a aproximação era com a filha.

Raimundo queria fazer de Celeste uma "moça de família" perfeita e destinada a um casamento que não fosse destruído por ambições e comportamentos pouco femininos.  Conforme os capítulos avançam, entendemos que há amor entre Raimundo e Lígia, mas que um dos motivos da esposa ir embora foi o ciúme e o comportamento do marido que, sim, é um homem típico de sua época.  Danton Mello está excelente, e digo sem problema que nunca fui fã do ator, como esse marido e pai normal, ele poderia ser transferido para os anos 1950 e se perder lá sem problema.  Digo mais, nos anos 1950, ele seria um sujeito normal e positivo, ele estaria na média para cima.  O problema é que Lígia é uma mulher muito fora da média.

Em todos os meus anos vendo novela, nunca vi uma personagem como Lígia em tela, não uma que fosse positiva, porque através dela a autora vem externando pautas feministas que já existiam desde muitos séculos, mas que são muito impopulares.  Lígia nunca sonhou em casar, em ter filhos, em estar ligada a um marido.  E, no caso dessa última ligação, isso significava perdia AUTORIZAÇÃO POR ESCRITO para votar, trabalhar fora de casa, viajar.  O marido também poderia receber o salário pela esposa, ou obrigá-la a voltar para casa sob a ameaça de prisão (*abandono do lar*). Se a matasse em caso de adultério, ele provavelmente terminaria livre. Se a agredisse fisicamente, talvez o caso nem fosse acolhido em uma delegacia. 

Não havia igualdade, os feminismos foram e são necessários e a luta das mulheres que não se identificavam como feministas, também.  Por isso, defendo que o Raimundo está um pouco acima da média.  Lígia disse para a filha em uma conversa esta semana, quando confrontada pela garota sobre o motivo de ter se casado e tido filhos, que foi ensinada a acreditar desde pequena que esse era seu destino, seu único destino possível (*de mulher branca e burguesa, que fique claro*) e que tentou se acomodar, mas não conseguiu. 

Diante da questão dos filhos, ela disse que amava os filhos, que tê-los não foi um erro, mas que amava mais a si mesma.  A uma mulher não é permitido nem viver um dos mandamentos bíblicos mais primordiais “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39).  A mulher deve amar os outros para ser amada, deve acreditar que ao amar e se sacrificar, ela está cumprindo sua função nesse mundo.  Eu cresci ouvindo da minha mãe um adágio atribuído a Gandhi "Quem não vive para servir, não serve para viver.".  É bonito e justo, mas como se pode servir de forma apropriada se você não se ama?  se está genuinamente infeliz?  Além de amar os filhos, Lígia ama o marido, mas não o arranjo que a sociedade lhe impõe.  

Quando Poggi entrega um papel tão difícil nas mãos de uma grande atriz, ela garante que a gente possa sentir simpatia por uma personagem que pode levantar bandeiras pouco populares.  Porque, sim, para ser feliz, plena, para conseguir se construir como ser humano, Lígia abandonou os filhos, ela não se sacrificou.  Que mulher é essa?  É uma mulher que quer ser dona de si e que sabe que não poderá amar se não se amar.  No caso do marido, e eu torço para que Lígia e Raimundo se entendam, ela não conseguia viver em uma gaiola de ouro, adorada, verdade, mas uma propriedade.  Em outro mundo, com um arranjo diferente, poderia não ser assim, talvez, eles nunca se tivesse separado.


Agora, nesse momento, temos o drama do desquite.  Lígia prometera que nunca pediria a separação, mas ela quer autonomia legal e acesso aos bens que lhe pertencem por direito.  O estopim foi uma crise de ciúmes do (ex)marido, que chegou a rasgar o seu passaporte para que ela não pudesse viajar, já que ele não daria sua assinatura novamente.  A Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977) foi sancionada somente 26 de dezembro de 1977, antes disso, ainda que o Estado admitisse a separação, os laços eram indissolúveis e geravam estigma para os envolvidos, especialmente, se tentassem constituir uma nova família. 

Espero que a autora não lide com o tema de forma tão ligeira, e nem falo tanto no caso da família Sobral, mas de outros casamentos que estão se desfazendo (*Alfredo/Teresa, Anita/Nelson*).  A questão não era leve, no caso das mulheres, e estou pensando em Teresa (Maria Eduarda de Carvalho), irmã de Lígia, que é dona de casa, mãe, esposa e ama esse papel, poderia representar trauma e grande rebaixamento econômico.  No caso de Teresa, ela ainda sofre de um transtorno mental, vamos ver como a autora desenvolve as coisas aqui, mas este é um dos pontos da novela que não parece caminhar muito bem.

Antes que eu me esqueça, mesmo com a obstrução do marido, Lígia exerceu algum papel na vida dos filhos.  Ronaldo, o filho do meio, é quem ativamente procurou a mãe, mesmo que mantendo com ela uma relação conturbada, ele considera aquilo que Lígia lhe diz e, sentindo-se menos amado pelo pai, aceita seu afeto.  Já o mais velho, a rejeitava categoricamente até que começou a perceber que, talvez, somente talvez, ela não fosse tão ruim quanto ele imaginava, ou o pai lhe pintara.  Já com a filha, neste momento da trama, ela está abrigada na boate da mãe, a quem chama pelo nome, como todos os filhos, já que é uma forma de lhe negar a maternidade.  

A relação com a menina está melhorando e rendendo ótimas cenas e reflexão sobre os papéis femininos de ontem e hoje.  Não sei quando e se Celeste irá retornar para a casa do pai.  Antes disso, mesmo que rechaçada, Lígia atuou para acabar com a relação abusiva entre Mauro (João Vithor Oliveira) e Celeste, apoiando a menina, quando ela se acreditava culpada pelo comportamento violento do "namorado" e suja.  Deveria escrever um texto sobre isso, também, mas não será agora.

Enfim, concluindo, porque já me estiquei demais, eu realmente nunca vi uma personagem feminista tão corajosa em assumir bandeiras impopulares, mas necessárias.  Porque ninguém pede a um homem que ele se anule, ele sempre terá uma mulher para lhe apoiar, seja esposa, mãe, irmã, mas uma mulher, dentro daquilo que é esperado socialmente, ela deve se construir a partir dessa subordinação às necessidades dos outros.  Vamos ver como a autora conduz a trama e espero muito que a Lígia não se descaracterize, mesmo que ela e Raimundo se entendam no final.

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