sábado, 14 de dezembro de 2024

Cultura do Ódio às Mulheres é Negócio rentável no Youtube

Ontem, saiu o relatório ""Aprenda A Evitar ‘Esse Tipo’ De Mulher": Estratégias Discursivas E Monetização Da Misoginia No Youtube" do NetLab/UFRJ. Nada que eu não soubesse, mas é um estudo sistematizado e muito importante.  Muita gente ficou chocada, mas quem circula pela internet, observa as caixas de comentários de grandes portais, sabe o quanto a misoginia é comum.  Só para se ter uma ideia, quando eu criei uma lista de discussão sobre shoujo no Yahoo, isso mais de vinte anos atrás, eu o fiz porque os fãs de shoujo, em especial, mulheres, sofriam com agressões, desprezo e toda sorte de intimidação em fóruns e listas de discussão de anime e mangá.  Este blog aqui é fruto direto dessa resistência.

Aliás, um dos trechos em destaque no relatório é o seguinte: "Mulheres têm 27 vezes mais chances de serem assediadas ou atacadas em ambientes digitais do que os homens." (ONU Mulheres, 2020)  Ao longo do relatório, há muitos destaques tanto de estudos acadêmicos, quanto de falas que aparecem nos vídeos analisados.  O Youtube tem uma influência muito grande no Brasil, "(...) com audiência estimada de 147 milhões e corresponde a 15% dos vídeos assistidos, atrás apenas da TV Globo (18%)."  Ainda que muita gente diga que os jovens preferem o Tik Tok, eu não acredito que sejam somente adultos e velhos que sustentem o Youtube.

Muito bem, o NetLab é um laboratório de pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO - UFRJ). Ele estuda a internet desde 2013 e, nos últimos anos, se dedicas a diagnosticar o fenômeno da desinformação digital e suas consequências no Brasil. ​  O grupo é multidisciplinar, tem gente de áreas como Ciência da Informação, Comunicação, Sociologia, Ciências Políticas, Engenharia, Ciência de Dados e Computação, além de contar com colaboradores que são graduandos, mestrandos, doutorandos, pós-doutorandos e professores.  

Segundo a própria descrição da página do NetLab, seu objetivo é "produzir evidências empíricas com impacto social, a fim de ampliar o conhecimento científico, qualificar o debate público, além de embasar o desenvolvimento e a governança de novas tecnologias diante das estratégias contemporâneas de manipulação da mídia no Brasil. Nossos projetos de pesquisa, ensino e extensão são fortalecidos pela formação e diversidade cultural de nossa equipe e por nossos esforços para dialogar com a sociedade civil, formuladores de políticas e comunidade acadêmica."  Sem evidências empíricas, não há como criar políticas públicas, por exemplo, não em governos sérios.

Para quem não sabe, já que está no trecho: "MGTOW é a sigla da frase em inglês que pode ser traduzida como “homens seguindo seu próprio caminho”. São homens que acreditam que o feminismo tornou o mundo um lugar dominado pelas mulheres e prejudicial para os homens.  Por isso, defendem que os homens devem adotar uma postura de autopreservação, priorizando seu próprio desenvolvimento pessoal."  Outros grupos da machosfera que aparecem no relatório são os  Celibatários Involuntários (Incel), os Pick Up Artists (PUA, ou “artistas da pegação”, em tradução livre) e do grupo Red Pill.  "Este último consiste numa espécie de pseudofilosofia (...) derivada do filme “Matrix”, que simboliza o ato de despertar de uma realidade oculta."  

No fim das contas, todos esses grupos se alimentam de frustrações de várias ordens e de uma visão idealizada  reacionária do passado.  As frustrações são principalmente resultado do atual estado do capitalismo, isto é, a está renda cada vez mais concentrada nas mãos de poucos (*homens, normalmente*), os salários cada vez menores, os empregos mais precarizados, as condições terrivelmente estressantes, mas como todos esses grupos fazem parte do ecossistema do próprio capitalismo, eles não vão propor nem sua reforma, nem sua superação, a culpa tem que estar em outro lugar.  É preciso criar um inimigo que não os obrigue a repensar as estruturas de exploração econômica.


Como eles criaram um passado idealizado, são as minorias políticas, mulheres, negros, homossexuais etc. os responsabilizados por uma vida que esses homens veem como cada vez mais difícil.  Afinal, seria a competição dessas pessoas subalternar, segundo eles beneficiadas pelo "sistema", que tornaria sua vida miserável, que lhes tiraria o que deveria ser seu por direito.  Daí, discurso contra cotas raciais, contra os direitos das mulheres, pela normalização da diversidade sexual e de gênero etc.  Se o mundo retornasse ao que nunca foi salvo talvez para um grupo muito restrito de pessoas, haveria harmonia e felicidade... Para quem?  Para quem?    

Retornando, ao longo do relatório, que eu li nesta madrugada, é possível ter uma dimensão do quanto de violência contra as mulheres cis é disseminada no Youtube.  Imagino que estudos semelhantes sobre pessoas trans, em especial, mulheres trans, iria encontrar muito material, também.  Uma das bandeiras levantadas por esses produtores misóginos de conteúdo é a luta contra as leis que protegem as mulheres da violência, em especial, a Maria da Penha, e as políticas que promovem igualdade de gênero.


Os temas mais recorrentes mapeados nos vídeos foram: “Desprezo às mulheres e estímulo à insurgência masculina”, “Sedução e relacionamentos”, “Defesa dos papéis tradicionais de gênero”, “Antifeminismo”, “Desenvolvimento masculino”, “Questões jurídicas” e  “Conteúdo político”. Os vídeos analisados "(...) adotam uma linguagem majoritariamente combativa ou ofensiva contra as mulheres. Em sua maioria, expressam elementos que dialogam com a machosfera, em especial com a perspectiva Red Pill, e, por vezes, assumem discursos abertamente misóginos ao defenderem a desumanização e a inferiorização das mulheres e ao reafirmar papéis tradicionais de gênero que promovem a submissão das mulheres."

Recomendo que leiam o relatório, ele pode ser baixado aqui.  E deixo o link de matérias relacionadas ao relatório que foram publicadas na mídia: Conteúdos misóginos têm alta em plataforma de vídeos, aponta relatório, Pesquisa identifica 137 canais com conteúdo misógino no YouTube no Brasil, Ministra das Mulheres sobre monetização da misoginia: “Não é natural” (*não há nada de natural no social, é tudo uma construção mediada por relações de poder*) e 'Machosfera' lucra com ódio, aversão e desprezo às mulheres no YouTube Brasil.  

Infelizmente, os canais abertamente feministas, ou simplesmente autointitulados de progressistas, não têm 1/3 do alcance que esse pessoal tem.  E mais preocupante é como, e isso não é analisado no estudo, vários canais de cultura pop estão nessa trincheira do ódio às mulheres.  Agora, é fato que eles são amplamente financiados por empresários e grupos de mídia de extrema-direita.  Ódio às mulheres faz parte de um projeto de poder.  E eu deixo abaixo o vídeo da Carol Sardá analisando a comemoração de Nick Fuentes (*o Nikolas Ferreira dos Estados Unidos*) quando da vitória do Trump.  Assistam, por favor.

@carollinesarda

Não, não é uma paródia.

♬ som original - Carol

1 pessoas comentaram:

Me lembrei de um amigo antigo que eu tinha, rompemos contato esse ano. Ele trabalha de vigilante, tem muito tempo livre e graças a isso, enfia a cara no celular, vendo you tube e conteúdos questionável. Não gosta de ler no geral, abandonou até leitura de quadrinhos, que era o que nos unia. Conversar com ele era uma tristeza. Escutava muito absurdo dos áudios dele. Tentava explicar contextos, não adiantava. Em algum momento cansei e o bloqueei. Uma amizade de mais de 20 anos jogada fora por causa de "lacração" que enfiaram na cachola dele. Ok, ele nunca foi exemplo de inteligência, mas meu Deus do Céu!

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