sábado, 30 de novembro de 2024

Protagonismo negro nas telenovelas para fechar o mês da Consciência Negra

Comecei a escrever esse texto no Dia da Consciência Negra (20 de novembro), mas, como ainda é novembro, dá tempo para concluí-lo.  O objetivo era comemorar a criação de um feriado nacional, reconhecendo que  negros e negras contribuíram para a construção desse país.  Claro, não foi, pelo menos durante os primeiros séculos, uma contribuição por vontade.  A maioria dos negros foram trazidos para o Brasil à força, escravizados, mesmo depois da proibição do tráfico, com a Lei Feijó (1831), agentes do governo imperial, isto é, do Estado, do poder público, continuaram facilitando a entrada ilegal e a regularização de pessoas que deveriam ser livres, condenando seus filhos e netos à condição de escravidão.  

Quando se fala em medidas compensatórias, o motivo mais forte é este, mesmo que várias pessoas, como uma desembargadora socialmente branca da Bahia finja, ou realmente não entenda, porque elas são necessárias e justas.  No caso desta senhora, ela também não compreende a importância dos feminismos, então, acredito que o problema seja com ela mesmo.  De qualquer forma, a análise sobre os resultados das cotas raciais tem sido positiva, mas deve incomodar muito para quem sempre teve o seu lugar garantido, ver uma universidade pública cada vez mais negra.  Meritocracia é uma grande falácia, basta observar como determinados sobrenomes se perpetuam em certas instituições de prestígio de nosso país.

Mesmo com a abolição da escravidão, que foi feita sem o oferecimento de qualquer apoio para os ex-escravizados (*e havia projetos que previam isso*), o legado da escravidão permanece.  Pessoas identificadas como negras são ainda hoje discriminadas, recebem piores salários, residem nas áreas mais precarizadas das grandes cidades e as que mais morrem vítimas da violência, inclusive policial.  Há dados consolidados sobre isso e, antes que alguém venha escrever bobagem, não que eu vá publicar, claro, pergunte-se se algum dia um branco foi estigmatizado nesse país por ser branco, se deixou de ter acesso a algum espaço, se foi discriminado nos serviços de saúde por ser branco, se foi morto/a por causa de sua cor de pele, se recebe menos por ser branco, enfim, se existiu navio branqueiro.  

Quando brancos são escravizados, e já foram, estamos em um contexto no qual a escravidão não tem cor, ou em que o capitalismo sem freios ou alguma conjuntura louca de fundamentalismo religioso (*vide o ISIS*) domina. Fora isso, mesmo negros ricos e/ou bem sucedidos são alvo de racismo.

Enfim, vamos falar de novela, pois o texto é para isso.  Volta e meia assisto novelas antigas no Viva.  No momento, estou assistindo Corpo à Corpo (1985).  Não é novela de época, mas contemporânea, Gilberto Braga no seu melhor, ele ousou colocar um casal interracial quase no centro da trama, com uma mulher mais velha (*com uma boa profissão, de classe média, formada na universidade*) e um homem mais novo (*sem muito rumo na vida*) e pagou caro por isso.  Houve rejeição e eu lembro de falas de gente da minha família, criticando o romance de Zezé Motta com Marcos Paulo.   Falas como esta aqui.

Preciso escrever um texto exclusivo sobre Corpo à Corpo, mas queria pontuar aqui que ela tem mais personagens negros que a média da época e das novelas de até não muito tempo atrás.  Ao todo são cinco, dois núcleos familiares, o que foi raro durante muito tempo, porque as personagens negras tendiam a ser entes isolados, atrelados a alguma personagem branca importante da novela (*para ver mais da discussão, assistam o documentário A Negação do Brasil*).  Agora, ambas as famílias não tem a presença do pai.  Em um dos núcleos, o de Sônia (Zezé Motta), da mãe, Jurema (Ruth de Souza), e da irmã, Laurinha (Eliane Neves), o pai morreu em um acidente no início da trama.  No outro, o dos empregados da mansão dos Fraga Dantas, formado por Wanderley (Cosme dos Santos) e Odete (Zeni Pereira), nada se falou sobre o pai ainda.  

Agora, Wanderley é tratado de forma muito abusiva e ambos são tão subalternizados, que chega a dar revolta.  Ainda assim, mesmo em nossos dias, esses abusos ainda podem acontecer sem que muita gente se dê conta.  Odete não somente aceita seu lugar, ela é uma mammy (mãe preta) que é meio que um patrimônio da família, mas rejeita Sônia como possível membro da família.  Ela é uma caricatura da negra racista, na medida que ela aceita o espaço que lhe deram, que, no caso dela, envolve algum poder delegado, e acredita que a sociedade tem estruturas que não podem ser mudadas. Já Wanderley, questiona o racismo estrutural, e teve um diálogo com a mãe que foi muito melhor do que os da novela A Força de um Desejo (1999), que é do mesmo autor. Só que Wanderley é uma personagem menor, a novela não é sobre ele o que nos leva ao assunto central do post.

Estamos em 2024 e as três novelas da Globo que estão no ar são protagonizadas por atrizes negras e nenhuma delas é sobre escravidão.  A primeira protagonista negra da Globo foi Thaís Araújo, em 2004, na novela Da Cor do Pecado (*Esse nome...*). Mais do que isso, elas têm famílias, e o elenco negro não se reduz a um punhadinho de gente.  Qualquer uma das tramas no ar parece representar de forma muito mais coerente a configuração da população brasileira.  Por outro lado, algumas coisas pouco mudaram.  A única mocinha que tem um par romântico também negro é a da trama das sete, Volta por CimaJéssica Ellen e Fabrício Boliveira formam o casal principal.  

Já nas tramas das seis e das nove, temos mocinha negra e um par branco.  Isso em si, não é ruim, mas historicamente, mulheres negras e indígenas são apropriadas por homens brancos, então, romper com esse padrão, como foi feito na novela Vai na Fé (2023), é muito importante. Enfim, não vou falar de Mania de Você, porque além de não assisti-la, sei que ela está passando por uma série de mudanças.  O último vídeo do Coisas de TV é sobre isso.  Recomendo.  Posso, no entanto, falar de Garota do Momento, a trama das seis.  Já fiz texto sobre ela, inclusive.

Não há rejeição em, relação a certos casais interraciais, eles, inclusive, são mais aceitos em nossos dias do que no passado, vide Corpo à Corpo.  No entanto, minha teoria é a de que eles precisam atender a determinadas exigências para serem assimilados pela audiência.  Quais seriam?  Homem branco, mulher negra.  Homem rico, mulher pobre.  Homem mais velho, mulher mais nova.  E estamos, claro, falando dos protagonistas, não de núcleos de humor.  Foi assim em Da Cor do Pecado, por exemplo, e a fórmula segue parecida até hoje.  E eu realmente acredito que Sônia e Cláudio seriam bem aceitos se tivessem sido atendidas tais exigências.  Agora, se essa equação for diferente...

Homem negro rico e mulher branca pobre.  Quantos casais de novela temos nesses moldes?  Um?  Quando Lázaro Ramos fez um sujeito bem sucedido, mulherengo e dúbio, ele, que nem era o protagonista, foi rejeitado.  Curiosamente, era outra novela de Gilberto Braga, Insensato Coração.  Se fosse um ator branco, talvez, um José Mayer da vida, talvez tivesse dado certo.  Escrevi sobre isso em 2011.  Não tivemos nenhum autor se arriscando colocando um casal interracial que não reproduza de alguma forma as tradicionais hierarquias sociais, sejam do patriarcado, sejam do capitalismo.

Em uma matéria para o Jornal Extra comemorando o Dia da Consciência Negra, Jéssica Ellen disse algo muito importante: "Meninas brancas que começaram comigo não demoraram a protagonizar novelas e séries. Eu levei 12 anos. Estou muito feliz que as próximas gerações já não vão viver tantos atravessamentos — diz Jéssica, de 32 anos."  Para atores e atrizes negros o percurso até o protagonismo tende a ser muito mais longo do que para os colegas brancos.  E o julgamento sempre será mais pesado, porque, para muitos telespectadores e mesmo críticos, eles não deveriam estar ali, porque não seriam capazes de representar aquilo que o público quer.  Eu me preocupo muito com o que pode acontecer com Bella Campos como Maria de Fátima no remake de Vale Tudo.  Parece que Gabz, a protagonista negra junto com outros três brancos de Mania de Você, é quem está sofrendo maior rejeição, quando, ao que parece, é a trama da novela que não vai bem das pernas.

Mesmo com essas três protagonistas e um elenco negro mais robusto, as novelas brasileiras ainda têm muito mais personagens e protagonistas brancos.  Na novela das seis, entre os protagonistas, somente Duda Santos é negra, em Mania de Você, dos quatro protagonistas, somente Gabz é negra.  Ainda assim, e eu guardei as matérias para este texto, Thiago Fragoso, que já tem 43 anos, e deveria ter noção das coisas, reclamou de racismo reverso e heterofobia.  Ele disse o seguinte:

"Em cada novela ou série, eu tenho a chance de fazer um personagem. Ou sou eu, ou o Jonas Bloch, ou o Herson Capri, ou o namorado da Larissa Manoela, que também é loiro de olhos azuis. Entrou um não pode mais ter homem hétero, branco. Estamos vendo esse questionamento pela mudança do status quo. Eu tenho uma chance por novela" Primeiro, isso não é verdade, ele vem de uma sequência de papéis na Globo, o último foi em Travessia (2022), ou seja, bem recente.  Fora, claro, que a maioria das personagens das telenovelas continua sendo branca e hetero, além de cis.  Segundo, aos 43 anos, ele precisa compreender que, em situação normal, ele não será o mocinho jovem da novela.  

Ele está quase no ponto de ser o pai do mocinho. Aliás, ele colocou no mesmo saco atores de gerações diferentes.  Certamente, Thiago Fragoso não disputa papéis com Herson Capri (73 anos), nem com André Frambach (27 anos), que foi reduzido por Fragoso a namorado de Larissa Manoela.  Não faz sentido nenhum o que ele disse, parece somente recalque em ver que homens negros estão conseguindo mais papéis e ele menos. Terceiro, mesmo antes de ser um ator competente, ele já tinha o privilégio de protagonizar novelas, vide o caso de O Profeta (2006), ou ter papéis de destaque em obras como A Casa das Sete Mulheres (2003).  Esses argumentos são coisa dos reacionários de extrema-direita, só faltou falar em cultura woke ou lacrolândia para fechar o pacote.

Houve várias reações às falas de Fragoso, mas cabe citar o que disse Fabrício Boliveira, protagonista da novela das sete: "Ele não mora no Brasil, né? Ele não olhou para a história dele nem para a história desse país. Só pode ser isso. Não dá para lidar com tanta ignorância hoje, em 2024" (...)  "Boliveira foi além e disse que apenas alguém com o perfil “cis, hétero e branco” teria essa perspectiva "ou gente que ainda está grudada ali no passado e não entendeu que estamos caminhando para um outro lugar", afirmou. "É realmente um lugar [posicionamento] de mimado, de quem sempre teve tudo e não quer de jeito nenhum compartilhar esse espaço".  

A graça é que o único comentário da matéria é de um cara concordando com Thiago Fragoso e dizendo que a Globo perdeu 70% do público de suas novelas por colocar negros e gays no elenco.  Há quem fique de mi-mi-mi, caso de Thiago Fragoso e quem veja guerra cultural em tudo.  Mas veja que é o que eu escrevi sobre Gabz, se a novela vai mal, não é culpa de uma trama problemática e/ou pouco atraente, ou das intervenções cada vez mais arbitrárias de quem comanda a produção das novelas, competição do streaming etc. é dos negros, dos gays, das trans etc.  Aposto, aliás, que esse mesmo comentarista deve ter xingado Niko e Félix, só está concordando com Thiago Fragoso, porque o que ele disse vem de encontro às suas crenças pessoais.  Aliás, que papelão do Thiago Fragoso vir reclamar de personagens gays... 

Uma matéria da CNN comentando o protagonismo negro trouxe o seguinte dado: "Segundo estudos da UERJ, entre 1994 e 2014, apenas 10% dos personagens principais eram interpretados por atores negros. Mesmo nos anos 1990, grandes novelas como “Rei do Gado” (1996) não contavam com atores negros no elenco principal."  Ainda assim, somente este ano tivemos esse marco inédito de três protagonistas negras.  Para meninas e meninos negros é importante que eles se vejam nas produções de TV, cinema e outras.  Só não vê importância nesse tipo de coisa, quem sempre foi representado.

O fato é que o Brasil sempre pareceu mais branco em nossas telenovelas.  Agora, as coisas começaram a entrar em sintonia com o que vem os na realidade social.  E cabe observar quem se sente incomodado e por qual motivo.  E a quem esses incomodados culpam quando as novelas não vão bem.  Concluindo, eu estou preocupada com Vale Tudo, mexer com uma novela monumento, com uma obra que, para muitos, beira a perfeição é chamar para si a atenção.  Espero estar errada, mas imagino que teremos muito racismo destilado nas redes no ano que vem.

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