Hoje, assisti Ainda Estou Aqui, filme dirigido por Walter Salles baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a luta de sua mãe, Eunice. Já assisti vários filmes do diretor (Terra Estrangeira, Central do Brasil, Abril Despedaçado, Diários de Motocicleta), então, conheço a forma como ele faz cinema, Ainda Estou Aqui não virou meu filme favorito dele, mas é inegável que a película é a mais madura e rica em recursos narrativos, o uso da memória, a importância dada a ela, é, talvez, a parte mais importante. Enfim, vamos ao resumo do filme.
Brasil, 1971, auge da repressão da Ditadura Militar. A vida de Eunice Paiva (Fernanda Torres/Fernanda Montenegro) e seus cinco filhos muda abruptamente após o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello). Eunice terá que lutar para manter a memória do marido viva, lutar para que o Estado reconheça o crime cometido por seus agentes, enquanto se desdobra para manter sua família unida e terminar de criar seus filhos.
Ainda Estou Aqui é um filme dividido em quatro partes, a primeira e a segunda são muito bem trabalhadas e ocupam boa parte do filme, não imaginava que Selton Mello ficaria tanto tempo em tela; a terceira e a quarta são mais rápidas, vem depois de saltos temporais grandes, e dependem das duas primeiras. O que dá liga ao filme é Eunice, a mãe e esposa incansável, Fernanda Torres leva o filme nas costas, mas está muito bem acompanhada. O elenco é muito bom e há participações de luxo, por assim dizer, gente que aparece em duas ou três ceninha, como Marjorie Estiano.
A reconstituição do Brasil da passagem dos anos 1960 para 1970, claro, um Brasil da Zona Sul e classe média média/alta intelectualizada foi muito boa. Rolou até a coca cola usada como bronzeador. Mesmo com os recortes de classe evidentes, o que se buscou criar foi a imagem de uma família feliz. Um pai presente, uma mãe atenciosa, ambos apaixonados mesmo depois de um longo casamento, filho e filhas carinhosos e ajustados. Uma família unida, que produzia memórias de sua felicidade em fotos e filmetes. Há também cenas muito bonitinhas envolvendo pai e filhos: o dente da caçula (Cora Mora) enterrado em segredo na praia, o cachorro de rua acolhido por Marcelo (Guilherme Silveira), a filha Nalu (Barbara Luz) usando a camisa do pai.
São esses objetos preciosos que ajudam a manter a família unida apesar de tanto sofrimento, porque, um dia, os agentes da ditadura invadem a privacidade burguesa dessa família perfeita. Pelas descrições de como foi a entrada dos agentes na casa dos Paiva, a sequência foi bem atenuada. Não havia metralhadoras, nem gritos, isso, no entanto, não diminui a violência e o terror. O pai é levado e tenta fazer parecer que voltaria logo. Nunca voltou. A mãe se esforça para manter seu filho e suas filhas, mesmo as adolescentes, alheias ao que já havia acontecido. Não é por Eunice, que persiste na busca pelo marido, que as crianças irão saber que o pai nunca mais voltará.
A sequência da prisão de Eunice, que é levada junto com Eliana (Luiza Kosovski), uma menina de 15 anos, é um dos momentos auge da interpretação de Fernanda Torres. Eunice não foi torturada no filme, quer dizer, não da forma mais comum, mas o entorno era de horror, além disso, ela foi privada de saber o que fora feito de sua filha. Imagine uma mãe em uma situação como essa? Quando ela é libertada, doze dias depois, usando ainda a mesma roupa da prisão, há a cena clichê do banho com o intuito de limpar sujeiras que não são somente físicas, são marcas na alma.
Sim, essa cena já foi vista, especialmente, em filmes nos quais há estupro, mas a diferença é a carga dramática, a entrega de Fernanda Torres, que oferece seu corpo nu como marcado pela dor ao expectador. Nada há de erótico nessa nudez, só há tristeza, desespero e algum alívio. O elenco jovem não fez feio em nenhum momento. Gosto muito de Valentina Herszage, que faz a filha mais velha, Vera, acho lamentável que ela não seja a Maria de Fátima da nova Vale Tudo. Vera, que tornou-se professora do curso de psicologia da USP, era a filha mais esquentada. Quando o pai desaparece, ela estava em Londres.
A família a mandara para fora do Brasil como forma de preservá-la. Lá, ela tem acesso a informações que não estavam nos jornais do Brasil, a censura não permitia. Ela tem a notícia da morte do pai antes do irmão e das irmãs no Brasil. No seu afã de preservar a memória do marido e sua presença na vida dos filhos, Eunice se recusa a falar com eles do assunto. É muito duro, especialmente, para Eliana, não sabemos o que ela passou de verdade na prisão, mas Eunice não é uma mulher perfeita, e suas falhas vem à tona na relação com esta filha, que era tão próxima do pai e tão interessada em política.
Falando em política, o clima opressor da Ditadura está presente na película: a censura, a vigilância sobre os cidadãos, as arbitrariedades, a sensação de impotência. O grupo de Rubens Paiva, que era engenheiro, mas fora deputado federal cassado em 1964, é de homens e mulheres que ajudam gente que está na militância direta da forma que conseguem, entregando cartas, mandando notícias, abrigando quando possível, dando figa etc. Aos olhos do governo eram criminosos, mas tratava-se de um governo que se instalara pela força e que permanecia usando da violência.
Eunice sem confirmação da morte do marido, ou de seu paradeiro, fica privada de meios para manter o status da família. A conta de banco está em nome dele. Por qual motivo não estaria? Eunice era "somente" dona de casa, não precisava de uma conta no banco, bastava pedir ao marido. As limitações econômicas impostas pelo desaparecimento de Rubens Paiva são bem retratadas na película. Vai-se a empregada, bens que ela consegue vender e, por fim, a família vai voltar para São Paulo para desespero dos filhos. Eunice comunica que irá voltar a estudar.
O fim da segunda parte do filme é marcado por letreiramentos. Detesto esse tipo de recurso, ele é preguiçoso, a passagem de tempo poderia ser marcada de outra forma, talvez através de fotos ou filmagens. Agora, Eunice, que se formou em 1977 e começou a carreira aos 48 anos, é uma renomada advogada, especializada em direito dos indígenas e vê sua luta coroada de êxito. Ela recebe a certidão de óbito de Rubens Paiva, mas ninguém é punido, trata-se de uma vitória amarga. É nesse ano de 1996 que uma cena pequena e sutil já aponta para o esquecimento, para o Alzheimer que iria dominar o final da vida de Eunice.
A protagonista fala da importância da memória, de não esquecer os crimes da ditadura para que não se repetissem, mas ela mesma esquece e a gente sofre com ela. Sai Fernanda Torres, entra sua mãe, Fernanda Montenegro. Ela está inexpressiva, não fala nada, falam dela. A mulher forte agora parece reduzida à lampejos como seus olhos se movimentando quando ela assiste uma notícia sobre a Comissão da Verdade e vê a imagem de seu marido e outros desaparecidos e vítimas da ditadura, como Stuart Angel e Vladimir Herzog.
É preciso falar do passado, manter viva a memória dos acontecimentos e dos grupos que atuaram contra e a favor do regime. Esse esquecimento, que foi lembrado em várias das entrevistas de Fernanda Torres, é que permite que, hoje, gente seja saudosa da ditadura, inclusive quem nem era nascido à época. O silêncio, e, este ano, Lula não permitir eventos marcando os sessenta anos do golpe de 1964, só abrem espaço para delírios e desinformação. O perdão pode ser concedido individualmente, não o deveria ser pelo Estado, mas não o esquecimento, ele abre caminho para novas tragédias.
Não sei se o filme seria melhor cortando no recebimento da certidão de óbito. Ali, ele terminaria em triunfo. Trazer uma Eunice fragilizada e esquecida deu um amargor que aponta que a vitória não existe, o que fica é a saudade e a ausência. Não há nada pior do que não poder enterrar um parente, trata-se de um direito humano básico, algo que está lá Antígona, uma das minhas peças gregas favoritas. Negar um corpo é impedir que o luto seja vivido adequadamente, é deixar falsas esperanças, em alguns casos. Enfim, é uma tortura infindável. E, só para constar, o caso de Rubens Paiva não está concluído ainda, é preciso lembrar.
Concluo dizendo que a reconstituição das fotos foi uma das melhores partes do filme. Trabalho muito bem feito mesmo. Como fui à primeira sessão, ela estava meio cheia, mas não lotada. Espero que as outras sessões estejam completamente tomadas, porque o filme merece. Espero que Ainda Estou Aqui seja indicado ao Globo de Ouro e ao Oscar. A indicação é um reconhecimento, a vitória, no entanto, é sempre algo remoto. Se eu tivesse que apostar hoje, diria que Fernanda Torres e o filme serão lembrados, mas é somente uma aposta mesmo.
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