Terça-feira, 5 de novembro, os norte-americanos irão votar para presidente na mais importante eleição do século, talvez mais até dado os riscos que a democracia está correndo no país. Há quem fique reclamando da excessiva atenção dada ao pleito nos Estados Unidos, o que é uma bobagem, porque trata-se da nação mais importante do mundo e com a capacidade de tornar a vida no planeta muito pior, porque se ficar do jeito que está, já será muito ruim.
Não vou falar de Gaza, nem de Ucrânia, nem de China, há uma boa matéria na Agência Pública sobre isso, ou das possibilidades reais de nova tentativa de golpe da extrema-direita em nosso país. Estamos em um blog feminista, o assunto é direito das mulheres e de outras minorias (políticas). Muito bem, a charge lá em cima se remete ao Conto da Aia, livro (*que virou seriado*) publicado em 1985 por Margaret Atwood sobre um futuro próximo distópico, no qual a fertilidade das mulheres (*e dos homens?*) tinha despencado e havia o crescimento de grupos fundamentalistas. Essas facções iniciaram uma guerra civil nos Estados Unidos.
O país fragmentado deu origem à pequenas nações, uma delas Gilead, onde se passa a história, na qual as mulheres perderam TODOS os direitos de cidadania, são proibidas de ler e escrever, e passaram a ser propriedade dos homens. As aias do título são mulheres férteis entregues a homens poderosos e que devem ter filhos no lugar de suas esposas inférteis. As aias são regularmente violentadas e sua sobrevivência depende da sua capacidade de parir filhos e filhas. Curiosamente, várias das coisas absurdas do conto da aia vem se tornando cada vez mais plausíveis. Quem em 1985 imaginaria que a Roe vs. Wade seria derrubada, isso depois de alguns estados já terem limitado o procedimento em quase todos os casos, e o número de mulheres morrendo de complicações na gravidez e parto explodiria em alguns estados norte-americanos?
Muito bem, a chapa Trump-Vance vem estimulando os grupos masculinistas, porque esse tipo de homem são seus eleitores em potencial. E é na internet que o ecossistema do ódio contra as mulheres se expande, cooptando homens jovens e adultos, estimulando suas frustrações, mas, também, se materializa nos discursos dos candidatos republicanos e em atos de violência contra as mulheres. Recentemente, Trump disse que iria proteger as mulheres, quer elas gostem disso, ou não. (*1 - 2 - 3*). Parece mais uma ameaça e a coisa só reforça o paternalismo de Trump em relação às mulheres, mas, também, um temor que elas possam virar a eleição a favor de Kamala Harris. Aliás, dia, sim, outro, também, algum print do AskAubry é de um hominho dizendo que as mulheres devem ser impedidas de votar. Eu imagino quantas efetivamente serão impedidas de ir às urnas por maridos, pais, patrões, líderes religiosos na terça-feira. Há republicanos que defendem abertamente a derrubada da 19ª Emenda, aquela que deu o direito de voto às mulheres nacionalmente.
E isso vem lá de trás, em 2022, um homem do Colorado votou pela mulher desaparecida (!!!) e se declarou culpado sob o argumento de que Trump poderia precisar do voto dela (*para ganhar*). Segundo ele, a pequena fraude cometida não era nada se comparado com as muitas fraudes que levaram Biden a vencer a eleição. De onde esses sujeitos tiram essas informações absurdas? Da internet, principalmente. Seria este um caso isolado? Um? Saiu matéria recente no The Guardian mostrando que muitas mulheres estão escondendo em quem vão votar. Por qual motivo tanto medo?
Já o vice de Trump, JD Vance, acumula falas complicadas sobre as mulheres, desde sugerir que elas permaneçam em casamentos abusivos até aquelas nas quais sugere, afirma e deseja retirar qualquer autonomia das mulheres sobre seus corpos. Em 2021, ele disse: “Não é se uma mulher deve ser forçada a levar uma criança a termo, é se uma criança deve ter permissão para viver, mesmo que as circunstâncias do nascimento dessa criança sejam de alguma forma inconvenientes ou um problema para a sociedade (...) A questão, na verdade, para mim, é sobre o bebê.” (“It’s not whether a woman should be forced to bring a child to term, it’s whether a child should be allowed to live, even though the circumstances of that child’s birth are somehow inconvenient or a problem to the society,” Vance said. “The question really, to me, is about the baby.”)
Vou fingir que não considero que seja direito das mulheres interromper uma gravidez porque assim desejam e seguir para outras motivações. Enfim, se uma mulher estiver doente, se a gravidez for de altíssimo risco, se o feto for inviável, se for um caso de estupro (*com o agravante de ser uma criança*), ela deve ser OBRIGADA a levar adiante a gravidez? Aqui, em Brasília, uma mulher com duas crianças pequenas e um câncer teve a interrupção de uma gravidez de 8 semanas negada pelos médicos, a justiça tinha autorizado e o procedimento foi feito em outro lugar.
Vieram à tona, também, outros casos em que o direito é negado pelos GDF. O mesmo vem acontecendo em São Paulo. Prefeitos e governadores não legislam sobre o direito de aborto no Brasil, mas podem, sim, obstruir o acesso ao aborto legal usando de subterfúgios diversos. Isso acontece em nosso país o tempo inteiro. Esses discursos que colocam em risco a vida e os direitos humanos das mulheres vieram importados dos Estados Unidos e a coisa pode piorar, vide o PL do Estupro. Não pensem que eles não irão tentar de novo, especialmente, com uma vitória de Trump nos EUA.
E há o discurso anti-ciência, também. Dia desses, uma tradwife norte-americana colocou para circular a história de que estava com uma gravidez ectópica, que é sempre inviável, de tipo raríssimo, mas que não iria matar sua filha. A mulher tem SETE outras crianças, seis delas pequenas em escadinha, mas desconsiderou a palavra dos médicos de que não somente não haveria bebê, mas que, provavelmente, ela morreria no processo. Ela simplesmente acredita no milagre e em "histórias" de casos como o dela que deram certo. Nenhum link para esses casos, ou referência em bibliografia médica, claro. E eu fui até o perfil dela no Instagram para investigar. É loucura? É. Pode ser má fé? Pode. Mas ela está escolhendo esse caminho em um estado que permitiria a interrupção. Os pró-vida que se chamam de abolicionistas são contra qualquer interrupção de gravidez e afirmam que os médicos não se esforçam o suficiente em casos de gravidezes ectópicas.
Enfim, faz um tempinho que não posto sobre coisas realmente sérias, mas acredito que era necessário. Terça-feira não teremos resultado, mas a vitória de um lado, ou outro, pode estar desenhada. Infelizmente, acredito que Trump vá levar. Como ele tem a Suprema Corte nas mãos, e isso é projeto antigo de grupos fundamentalistas religiosos por lá, podemos esperar o pior. E não será somente para as mulheres, o casamento igualitário, os limites ao trabalho infantil e a legislação contra a discriminação racial serão alvo de ataque tão logo o resultado eleitoral seja confirmado.
A maioria das pessoas só percebe o risco que estão correndo, quando é tarde demais, vide o caso das mulheres que apoiaram a Roe vs. Wade e que estão tendo suas fertilizações in vitro proibidas nos Estados e sendo criminalizadas por suas perdas gestacionais, acusadas inclusive de vilipêndio de cadáver, e não receberem atendimento médico nesses casos (*Ex.: 1 - 2 - 3*). Médicos têm medo de prestarem o devido atendimento e serem criminalizados, mulheres que estão abortando (*miscarriage*) por causas naturais tem seu atendimento retardado, ou negado, mesmo em casos nos quais o feto pode ser salvo. A guerra é contra todas as mulheres, não somente contra aquelas que você acredita que não se comporta como deveria.
Concluindo, e só para ilustrar, traduzi uma matéria do Daily Mail sobre um caso horroroso ocorrido no Texas. Um marido radicalizado por esses discursos misóginos matou a mulher e tentou fazer crer que era suicídio. Sim, eu sei que o Daily Mail é um jornal que pende para o sensacionalista, mas a matéria está bem equilibrada. Praticamente, só mesmo a descrição dos fatos e a ligação possível entre o crime e a internet. Como costumo fazer em traduções de artigos, mantive a estrutura do original. Só retirei o mugshot do sujeito, porque não fazia diferença mesmo. Para quem quiser ter acesso ao original, está aqui.
Panorama aterrorizante nas redes sociais sobre o marido que "estrangulou a esposa grávida até a morte e depois tentou enquadrar o caso como suicídio"
Por Germania Rodriguez Poleo, Repórter Chefe dos EUA
Um desenvolvedor de software acusado de estrangular sua esposa grávida tinha um histórico de atividade preocupante nas redes sociais que levaram ao suposto assassinato.
Lee Gilley, 38, supostamente estrangulou sua esposa Christa, 38, em 7 de outubro antes de contar à polícia que a mãe de duas crianças havia tentado se matar com uma overdose em sua casa em Houston, Texas.
>Uma fonte que conhece Lee desde a infância disse ao DailyMail.com que nos últimos anos ele ficou obcecado com o discurso político de direita e a ideia de que as mulheres deveriam ficar em casa para cuidar de suas famílias - embora Christa fosse uma fisioterapeuta e professora de sucesso.
"Isso obviamente parece estar em desacordo com ser casado com uma mulher com doutorado, duas crianças e um emprego de tempo integral", disse a fonte.
A conta de Lee no LinkedIn mostra que ele curtiu repetidamente postagens dizendo que as mulheres deveriam ter um papel tradicional em casa em vez de desenvolver carreiras profissionais.
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