domingo, 27 de outubro de 2024

Para quem não sabe o que são mangás TL (Teen Love), um longo post explicativo.

Fazia tempo que eu tinha vontade de fazer um post longo explicando o que é TL (Teen Love), uma das demografias de mangás femininos que mais cresce no Japão.  Aviso de saída que a gente está sempre aprendendo, então, o que está sendo escrito hoje, pode ser atualizado em data futura em outro post.  Na verdade, até alguns anos atrás, eu nem sabia o que era TL, achava que tudo era josei ou ladies comics ou shoujo com conteúdo sexual mais apimentado.  E, bem, em algum momento, lá na virada dos anos 1990 para o ano 2000, o TL surgiu.  As demografias (josei/TL) começaram a se estruturar em revistas físicas e digitais, selos e plataformas diferentes na internet.  Josei pode ter sexo, TL SEMPRE tem sexo e precisa ser explícito.  Explicação curta.  De resto, aviso que o post será longo e a introdução vai tomar um bom espaço dele, aviso logo.

Os mangás para mulheres adultas surgiram OFICIALMENTE no final dos anos 1970, isto é, antes dessa década, era possível encontrar materiais com temáticas muito pesadas e protagonistas adultas, ou que eram acompanhadas desde a infância até a maturidade em revistas que eram, oficialmente, para meninas.  Saiam na Ribon, na Margaret e, quando eram vistos como para meninas mais velhas, na revista Seventeen.  Vou citar como exemplo materiais fáceis de achar Designer (デザイナー) e Pride (プライド) de Yukari Ichijo, Claudine...! (クローディーヌ・・・!) e A Janela de Orpheus (オルフェウスの窓) de Riyoko Ikeda.  A primeira revista para mulheres adultas foi a Be Love (Kodansha/1979), que é onde foi publicado Chiahayafuru (ちはやふる) e está saindo Nina The Starry Bride (Hoshi Furu Oukoku no Nina/星降る王国のニナ).

Essas novas revistas femininas publicavam mangás com protagonistas que eram principalmente mulheres adultas.  Poderiam ser jovens, poderiam ser maduras, profissionais, casadas e mães de família.  E há um cardápio enorme de revistas josei.  Elas podem ter recorte etário, elas podem discutir mais a vida de mulheres trabalhadoras, podem ser focadas em terror/horror, na relação nora/sogra etc.  Tudo é possível.  E, sim, há romance e há sexo, que pode ser muito explícito e, a depender da revista, apelar para fetiches.  E, bem, fetiche cada um tem os seus e eles tem muito de cultural e social.  A primeira vez que eu li sobre esses quadrinhos para mulheres adultas foi no livro Dreamland Japan: Writings on Modern Manga (1996), do pioneiro dos estudos sobre mangá Frederick Schodt.

Há um capítulo chamado Comic Amour (1990-2017), que era uma revista para mulheres marcada pelo conteúdo sexual e fetiches barra pesada.  Houve uma vez que tentei importá-la do Japão e não consegui, porque ela era considerada material pornográfico e não era exportado.  Acabei deixando para lá.  Pois bem, pela leitura do capítulo, se minha memória não está me traindo, ficava parecendo que TODO mangá para mulheres adultas era violência e putaria, desculpem o termo, mas é esse mesmo que precisa ser usado.  

Mesmo nos anos 1980-1990, estava muito longe de ser isso, mas, sim, mulheres podem gostar de sexo, algumas mais, outras menos.  Mulheres têm fetiches.  E, o que é bom lembrar, os mangás femininos não são mangás feministas, não precisam ser, ainda que alguns sejam e que, na média, todos eles tenham uma grande percepção de que ser mulher é diferente de ser homem em uma dada sociedade, no caso a japonesa.  Eles podem reiterar essas diferenças que são expressas em desigualdade e assujeitamento, brincar com elas, ou questioná-las.  Mangá é bom, porque há para todos os gostos.

Lá nos primórdios, os mangás para mulheres adultas eram chmados de Ladies Comics (レディースコミック/redicomi), hoje, eles são mais reeferidos como Josei  (女性).   Qualquer loja japonesa de internet que mereça algum respeito, separa por demografia: shoujo, josei/redicomi, BL e TL.  As coisas não se misturam.  E, sim, redicomi continua sendo usado.  A Fujisan, empresa japonesa especializada em revistas e assinaturas,  ainda usa o termo redicomi como intercambiável com josei.

No entanto, a gente costuma utilizar mais josei mesmo.  As moças do ProShojo Spain, que entendem muito do assunto, fizeram um post recente no Twitter, apontando que o termo redicomi é utilizado em nossos dias principalmente para mangás adultos que tratam de “dramas humanos”, isto é, “(...) histórias cruas e reais que acontecem todos os dias ao nosso redor (sem que saibamos) e usam os instintos humanos mais baixos para narrar o pior de nossa espécie.”.  A Wikipedia japonesa aponta que esse tipo de mangá ainda chamado de redicomi tem como público predominante, em um levantamento feito em 2023, é de mulheres de meia idade e mais velhas.

Então, tenham isso em mente, os josei barra pesada que o Schodt tornou representantes absolutos da demografia, talvez, hoje, só se apliquem ao tipo de material que o ProShojo Spain destacou no post explicativo.  Entendam, porém, que não há demografia separada, josei para um lado, redicomi para outro.  Existem revistas que tem propostas diferentes.  Até onde percebi, o traço do que efetivamente é identificado como redicomi tende ao realismo e menos ao que a gente identificaria de cara como mangá, principalmente, shoujo mangá.  E esses mangás mais pesados não vão aparecer nas premiações, nas quais, ainda hoje, metem os josei e os shoujo no mesmo saco, coisa que não fazem com as demografias masculinas, como shounen e seinen.  E os TL também não vão aparecer.

E eu nem falei de TL, não é mesmo?  Pois é, porque os Teen Love não sairam do josei/redicomi, eles são o desdobramento dos mangás shoujo com conteúdo sexual muito explícito que eram frequentes nos anos 1990-2000 e que apareciam em revistas como a Sho-Comi e a Cheese, mas poderiam dar as caras em uma Margaret e mesmo na Nakayoshi.  A gente lá nos anos 2000 chamava de “steamy shoujo”, hoje, o termo que mais aparece nos sites é “smut”.  

Lá em meados dos anos 2000, começou uma pressão para que as editoras se ajustassem.  Sim, autocensura.  No caso da prefeitura de Osaka, ela deu em cima dessas antologias shoujo que tinham protagonistas adolescentes e eram vendidas em público.  Localizei três posts muito antigos do blog sobre isso: “Shoujo Manga é Perigoso!!! (2006)”, “Polícia no Japão Intensifica Perseguição à Mangás com Conteúdo Sexual "Excessivo" (2007)” e “Investigando os Shoujo Mangá "Perigosos" (2007)”.  Na época, era tudo shoujo mesmo.

Hoje, mangás com conteúdo sexual mais explícito e violência recreativa contra meninas raramente aparecem nas revistas físicas, esse tipo de conteúdo migrou para o formato on line.  Comentei sobre isso em um post grande que misturou-se com meus comentários sobre as novelas, “Vamos falar de Sexo?  Sobre as mudanças nas sensibilidades, o recato das novelas das seis e como os shoujo barra pesada sobrevivem digitalmente”.  Ele é de 2018.  Então, os ajustes foram, migrar para a internet (*boa parte das revistas de papel, muitas da editora Ohzora, desapareceram*) e oferecer protagonistas que são, em sua maioria, mulheres adultas, universitárias, ou no mercado de trabalho.  Ainda há adolescentes, mas elas são minoria em mangás TL.  

Os mangás TL são centrados na ideia de que o sexo é uma das expressões do amor e indissociável dele, suas protagonistas normalmente não têm vergonha de sua atividade sexual, tampouco tendem a ser valoradas pela sua inexperiência, ou virgindade. Nesse sentido, trata-se de uma transgressão dos papéis de gênero, pois dentro de sociedades patriarcais, as mulheres precisam ser puras, virginais e o sexo precisa estar preso dentro de relações monogâmicas, sejam com ou sem casamento.  A transgressão é, portanto, estruturante da própria demografia. 

Os mangás TL jogam por terra a ideia corrente no Ocidente de que as mulheres não se sentem visualmente estimuladas por materiais pornográficos. Dentro dos limites dados pela indústria de mangá,  os TL são muito detalhistas na representação das relações sexuais seguindo os padrões da estética shoujo e sempre com ênfase no prazer feminino. Há mangás que são somente sexo mesmo, sem aprofundamento, e outros que discutem pressão estética, violência contra as mulheres, etarismo, fetiches e prazer feminino.  Há material para todos os gostos, ou quase todos.  TL é heteronormativo.  

Trata-se de outra característica estruturante da demografia, mas, recentemente, encontrei material japonês (*em coreano já tinha tropeçado antes*), que trazia um trisal bem resolvido.  Dois homens e uma mulher, porque é ela o foco das atenções.  Agora, tudo o que eu vi é M/F/M (Male/Female/Male), os homens não se tocam, não há sugestão de bissexualidade, eles estão ali para dar prazer para a parceira.  A imagem da abertura é de um mangá da Omane Tsukino (Mahou No Biyaku to Yajuu Tachi), uma das minhas autoras favoritas de TL, e que parece ser um trisal, mas não achei para ler ou olhar.  


Quanto à identidade de gênero, encontrei um único mangá em que a protagonista era uma mulher trans, com redesignação genital e com passabilidade.  O mangá, que é muito bom, é curto e toda o drama girava em torno da aceitação por parte do parceiro do fato de ter se apaixonado por uma mulher trans e a moça se convencendo que, sim, tinha o direito de amar.  

A demografia conta com dezenas de revistas, a maioria delas digitais, selos que publicam séries encadernadas em formato físico e digital, além de plataformas e aplicativos que dão acesso pago aos mangás. As capas das revistas TL, dos mangás e dos livros, são sempre com ilustrações em estilo mangá, não se diferenciando em nada daquilo que temos nas revistas shoujo.  Elas representando, geralmente, um casal atraente, seja pertencente a alguma das histórias que estão dentro da antologia, ou feitas por uma capista convidada.  Podem ter algo de explícito, mas, normalmente, não é algo tão comum.

Fui atrás do post “Dicas para saber se um mangá é shounen ou shoujo: olhe o tamanho do busto das personagens femininas (2018)” para dizer que, no caso do TL, isso não se aplica.  Como algumas séries trabalham com fetiches e desejos, há vários mangás com mulheres peitudas.  Algumas autoras de TL vieram do hentai ou do BL.  As que vieram do hentai, ou que gostam de hentai, às vezes incorporam coisa comuns do material erótico/pornográfico feito para o público masculino em seus trabalhos.  Exemplo, e é algo que eu não gosto, aquela visão de raio X na hora da penetração.  Não aparece na maioria dos TL, mas em alguns, sim.  No caso do BL, as autoras que vieram da demografia costumam ter um domínio muito grande da anatomia e desenham sujeitos lindos.  

Aliás, desenhar homem bonito é algo central quando o assunto é TL.  Mais do que o corpo das mulheres, estejam atentas a como elas apresentam os homens.  Mangá erótico/pornográfico para homens não se importa com isso.  Não existe homem feio em TL, pode até ser normal, mas sempre há beleza nele.  As mulheres são igualmente bonitas, e o cuidado com a apresentação das roupas, as íntimas inclusive, algo típico das demografias femininas, também está lá.

Desde 2017, estão sendo produzidos mangás baseados em séries TL.  A primeira foi  Souryo to Majiwaru Shikiyoku no Yoru ni... (僧侶と交わる色欲の夜に…), que era bem ruinzinha.  De lá para cá, não sei quantas séries foram feitas, mas os animes tem episódios curtos, 5, 6 minutos, e são colocados no ar em horários diferentes, na TV e no streaming, e em versão com e sem censura.  Está no ar neste momento, a série Haramu Made Midare Ike ~Migawari Hanayome to Gunpuku no Mouai~ (孕むまで乱れいけ~身代わり花嫁と軍服の猛愛~), baseado no mangá de Yuzu Kanzaki, que é muito bom.  Fiz mais de uma resenha sobre a série, clique em TL.  

Aliás, mangás como esse me fazem ter a certeza de que algumas autoras fazem TL, porque é o emprego que tem, porque essa série tem grande qualidade e o sexo atrapalha o fluir da história, mas tem que estar lá, porque, enfim, é TL.  Talvez, eu resenhe, ou faça Shoujocast sobre o anime, ou a série, mas, até agora, só achei o anime sem legendas.

Terminando, assim como em toda demografia há material para todo mundo, neste caso, desde que você seja maior de idade.  Como em toda indústria de massa, a maioria do que se produz é mais do mesmo.  Há tesouros escondidos, mas você vai tropeçar principalmente no material mais comum, que é, normalmente, o que os grupos de scanlation trazem.  Quem não lê japonês, depende desses grupos.  Em alguns sites, como o que eu mais uso, o Bato.to, mangás TL aparecem, às vezes, como hentai.  Pode ser por confusão, pode ser por negligência.   Tendo o nome das autoras é possível buscar a informação em sites como o Bakaupdates e, normalmente, dá para se certificar.  Importante, a maioria das autoras está no Twitter.

Voltando para as scanlations, se quem traduz gosta de histórias com machos abusivos, vai traduzir várias em série.  Se gostam de séries com mocinhas tontas, vamos ter toneladas delas.  Se a pessoa tem fetiche por situações abusivas, elas vão aparecer com mais frequência.  Mas se resume a isso?  Não.  Volta e meia, no entanto, a gente tropeça em coisa muito boa.  Há um mundo de possibilidades e, claro, algumas podem, sim, ser perturbadoras.  Clique na tag TL e veja as resenhas que eu fiz.  Se me dei ao trabalho de escrever um texto, é porque vejo alguma coisa que valha a pena nelas.  Nem que seja para criticar, mas, na maioria dos casos, eu perco tempo com aquilo que considero legal mesmo.

P.S.1: O ProShojo Spain tem uma thread no Twitter explicando o que é TL.  Se você quiser ler, está aqui.  Há imagens explícitas por lá.
P.S.2: A Deborah Shamoon tem um artigo chamado "
Office Sluts and Rebel Flowers: The Pleasures of Japanese Pornographic Comics for Women", que aprece ser muito interessante.  Ele está parcialmente no Googlebooks, não tive acesso a ele completo.  Se você está em uma universidade, ou projeto de pesquisa, talvez consiga baixar.  Se conseguir, ficaria muito grata se você me passasse o arquivo.

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