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domingo, 6 de outubro de 2024

Comentando Placa Mãe (Brasil/2024): Primeiro longa de animação mineiro é interessante, mas senti falta de ouvir o mineirês sendo falado.

Ontem, assisti com a Júlia o filme de animação brasileiro Placa Mãe (site oficial/IMDB).  Na verdade, ele é vendido como o primeiro sci-fi mineiro, ou do centro-oeste de Minas, porque o filme foi feito e se passa em Divinópolis. O diretor, Igor Bastos, é o mais jovem brasileiro a dirigir um longa de animação e está sendo chamado de "Walt Disney da Roça". Placa mãe mostra um Brasil do futuro, que mantém suas terríveis desigualdades sociais.  A história é a seguinte:

Nadi é uma androide que pertence a uma elite dentro dos robôs: ela tem cidadania.  Seu trabalho é conseguir adoções para robôs descartados e ultrapassados.  Ela e seu pai-criador, o cientista Theon, consertam os robôs e os vendem em uma feira que fica entre a área pobre da cidade e um imenso lixão.  Um dia, Nadi conhece duas crianças órfãs (*Lina e David*) e descobre que deseja adotar os dois, porque  as probabilidades de que a menina e o menino, que são irmãos, sejam acolhidos juntos é mínima.  

Nadi seria o primeiro androide a se tornar mãe-adotante e o caso chama a atenção de um candidato a reeleição para o Senado chamado Asafe.  Esse sujeito tem como sua plataforma a defesa da família e da humanidade.  Ele decide usar o caso de Nadi para aumentar suas chances de reeleição e, ao mesmo tempo, barrar o avanço dos direitos dos robôs que, para ele, deveriam ser meros escravos.  Nadi conseguirá adotar as duas crianças?  Se ela falhar como mãe, são seus próprios direitos de cidadania que estarão em jogo.

Muito bem, usando esse mundo futurista, o filme discute adoção tardia, porque as crianças, Lina, de 7 anos e David, de 11 anos, cada vez têm menos chances de serem adotados, ainda mais, juntos.  Há candidatos para adotarem Lina, mas David ficaria para trás.  Outro tema, é o das famílias não-tradicionais.  Nadi é um androide, mas poderia ser uma mulher trans.  Políticos como Asafe estão pouco se importando com o futuro de Lina e David, tampouco, tem uma agenda pró-família tradicional, eles querem manter seus privilégios e só.

O filme é bom?  Sim, é.  A história geral é coerente, as personagens são simpáticas.  Há a mistura de animação 2D com outros estilos como stop motion, quando Nadi conta histórias para as crianças.  O tema da família não é somente sangue, mas é quem a gente ama e escolhe é muito bem encaminhado.  Nadi, quando enfrenta crises com David, é levada a compreender que Theon, que nunca teve filhos biológicos, que, como ele mesmo diz, se dedicou à ciência, sempre a viu como uma filha, especial, entre todos os robôs que criou.

As discussões sobre exploração dos robôs, os limites da humanidade são bem encaminhados, também.  Quando David foge de casa, e isso está no trailer, ele encontra com duas crianças na rua que debocham da sua condição de filho de robô.  Robôs não podem ser mães, nem pais.  O menino diz algo como "Um robô não pode decidir ser algo diferente do que é, não pode ser mãe.  Mas, de repente, eu chego em casa e começo a chamar minha geladeira de mãe."  Escolher o que se é, trata-se de um argumento muito comum entre as pessoas que são contra os direitos dos LGBTQIAPN+.  Só que se trata de um robô.

Aliás, essa discussão, foi antecipada em Jornada nas Estrelas - A Nova Geração.  Data, o androide que era oficial de Enterprise D, tinha sido admitido na Frota Estelar, mas terá os seus direitos de cidadania questionados o tempo inteiro nas primeiras temporadas.  O primeiro a colocar isso em evidência foi o episódio The Measure Of A Man (S02/E09), quando a capacidade de consciência de Data é questionada por um cientista que deseja desmontá-lo e investigar seu sistema.  

O outro é The Offspring (S03/E13), no qual Data constrói um/a filho/a e lhe permite que escolha sua identidade de gênero (*antes disso ser uma discussão*).  Lal decide que quer ser uma menina, mas eis que volta o mesmo cientista para tentar se apossar da criança.  Data resiste, o Capitão Picard o apoia, mas Lal acaba desenvolvendo consciência e sentimentos de forma muito acelerada por causa da pressão e apresente defeitos que são incontornáveis.  Lal morre.  Se você nunca assistiu esses episódios, eu recomendo muito.  Não conheço os envolvidos na produção de Placa Mãe, mas desconfio que eles possam ter dialogado com STNG.  

A trilha sonora também é um destaque do filme.  Há músicas bem tradicionais, outras mais modernas e uma versão em inglês de Erva Venenosa, que eu, um zero à esquerda em música, achava que era da Rita Lee.  Mas Erva Venenosa é que é uma versão.  Enfim, a música Poison Ivy é o tema do vilão e cantada por um homem.  Aliás, o vilão é a cara do Marco Feliciano, mas não o atual com barbinha bem cortada, topete e demonização facial, mas aquele mais pobrinho, que alisava o cabelo de alguns anos atrás. 

Vamos aos problemas que vi em Placa Mãe e que não comprometem, quero ressaltar, a possibilidade de se gostar do filme.  O orfanato fica em um lixão, apontando o baixo status dos órfãos naquela sociedade do futuro.  A diretora do orfanato é uma megera.  Mas juntar lixão, órfãos e uma velha estranha é se remeter à Avenida Brasil, a novela de maior sucesso deste século da rede Globo.  Na novela, Mãe Lucinda não é má, só é ambígua, mas a menina protagonista é Nina, no filme, a menininha é Lina.   O orfanato é mal explicado, só são mostradas duas crianças. 

Lá no início um casal de americanos tenta levar Lina.  Eles pagam pela menina.  Muito provavelmente, a ideia era que ninguém sentiria falta da criança órfã, negra e pobre.  Mas quem eram aquelas pessoas?  Eles não pareciam querer uma filha.  Pensei em tráfico de órgãos.  Toda a participação desse casal ficou estranha, mas foi o detonador do encontro entre Nadi e as crianças.

Outro ponto, no filme se fala de Brasil, então, continuamos tendo uma unidade, não é Bacurau.  Agora, o que o Senado da República, que parece misturar Senado e STF, estaria fazendo em Divinópolis?  Não se explica.  E, bem, há uma questão importante, se fala pouco mineirês no filme.  Há um influenciador digital que defende Nadi e ataca Asafe que tem sotaque, mas não fala um "trem" sequer.  Já David parece não ter sotaque mineiro, mas do meio do filme para lá, ele passa a ter.  Só que ele só fala "trem" uma única vez.  Ora, os dubladores principais são vozes conhecidas.  Temos sotaques paulistas, cariocas, mas a propaganda do filme fala que usaram gente do local para dublar as crianças.  Só se forem os dois que atacam David na rua.

Outro ponto importante, o filme perdeu a chance de recompensar o minion do vilão.  Ele é um marginal, porque não teve opção, ele é chantageado pelo vilão, que ameaça mandá-lo para a cadeia, ele perdeu a família em um acidente de barragem (*Mariana e Brumadinho referenciados*).  No fim, ele acaba optando por ajudar David e, não, matá-lo como o vilão queria.  Ora, nada mais justo do que ajudar esse sujeito, mas o filme o larga só.  Ele começa e termina o filme no desespero.  Não foi justo.  E os robôs do cara, que ajudam David nem são mostrados no fim.  Pensei que seriam acolhidos por Nadi e Theon.

Por fim, o desfecho da história de Nadi, das crianças e Theon teve um apelo emocional muito grande, tudo termina bonitinho, mas acho que erraram ali.  Não posso comentar, porque é spoiler, mas acredito que a opção que juntou Asafe usando o Senado para confiscar a cidadania de Nadi foi mal encaminhado.  

Gostei do filme, sim, mas com essas ressalvas.  A meu ver, foi uma iniciativa muito boa.  E, importante, a discussão não é sobre MATERNIDADE, mas sobre FAMÍLIA mesmo.  E, ainda que menos central na trama, CIDADANIA, aquelas coisas básicas que abrem a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789): "Artigo I – Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ser fundadas no bem comum.".  Ou da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): "Artigo 1: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade."  

Só que valendo para robôs, androides e humanos que, em uma ordem capitalista, podem não ter valor algum.  Algo que Nadi chega a dizer em algum momento se referindo ao Brasil, especificamente.  Falei em capitalismo, claro, mas o filme nao aprofunda essa discussão, que fique claro.  É só algo que está no filme, caso a pessoa queira ver.

Terminando, assisti ao filme com a Júlia em uma sala vazia.  Somente nós duas.  Há outra animação brasileira em cartaz, além de Transformers.  Placa Mãe está em cartaz em vários cinemas de Brasília, em uma única sessão, a primeira, mas quem sabe que esse filme está passando?  Parece que, nos últimos tempos, a programação está super fragmentada.  Mesmo um arrasa-quarteirão como Coringa 2 não está monopolizando salas.  Não sei se isso é lucrativo.  Acredito que esse tipo de arrumação tenha que ser repensada pelo bem das salas de exibição.

Um comentário:

  1. Oi Valéria! tudo bem? Meu nome é Elisa e sou a diretora de arte do filme placa-mãe! Inicialmente eu queria dizer que estou muito feliz, eu acompanho o seu blog há anos e nunca imaginei que um haveria uma review do filme, muito obrigada pelo carinho e por dar uma chance ao cinema de animação brasileiro <3
    Com relação ao sotaque, vou explicar um pouco sobre a seleção de vozes: tem vozes do Rio (Marcio Simões), São Paulo e do Sul do país. Mas as crianças em si foram escolhidas a partir de uma seleção de mais de 840 crianças naturais do interior de Minas Gerais, mais precisamente de Divinópolis. A Ana Júlia e o Vitor fizeram um trabalho sensacional na voz original e falaram com o sotaque mesmo que eles já tinham da região, eles até falam palavras que são mais específicas do centro oeste de Minas. O youtuber é o Stevan Gaipo que na vida real faz stand up e o sotaque dele é mais carregado mesmo hahah Mas é o jeitinho dele. Fora ele tem algumas outras pontas no filme como o nosso produtor que faz um dos jogares de truco e também a professora Kell Silva (ambos de Divinópolis) que foi chamada para representar a Senadora que discursa no final. Então seria mais para contar esse detalhe da produção, eu mesma que sou goiana não percebo tanto o sotaque daqui de Minas, ao mesmo tempo pessoas que assistem de outras regiões reclamam que o filme tem sotaque demais hahaha É uma loucura realmente fazer filmes no Brasil. Costumamos brincar que é igual ter uma escola de samba na Noruega hahaahah Enfim, obrigada! Amei demais! Viva o cinema brasileiro e que venham mais e mais animações <3

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