domingo, 22 de setembro de 2024

Problemas demográficos no imaginário de um país. Para que servem os idosos? A obsessão do Japão com a idade. (Artigo Traduzido)

Estou fazendo um trabalho sobre os idosos nos mangás e acabei tropeçando nesse artigo escrito pela jornalista e professora universitária italiana Laura Imai Messina.  Ela trabalha no Japão e o texto fala de como os idosos são empurrados para a morte, por deixarem de ser úteis à sociedade, na literatura, folclore, cinema e mangás.  Isso tudo agravado pelo pensamento capitalista que vê os velhos, cada vez mais presentes na população japonesa, são um peso.  

Sabe quando o discurso neoliberal no Brasil conseguiu fazer a troca da palavra aposentado, algo que se remetia à ideia de que você contribuiu para a sociedade e, agora, pode descansar, por inativo, algo que tem o sentido de peso morto?  Pois é, parece que no Japão, a coisa está indo nesse caminho, também, o que joga por terra aquela coisa do idoso como venerável.  Agora, o importante no texto é que Messina mostra que isso vem de longe.  Ela cita dois mangás no texto, nenhum deles estava no meu radar até tropeçar nesse artigo.  O original está aqui.  Mantive a estrutura do artigo e só acrescentei links para maiores informações sobre os mangás citados no texto e o autor das Baladas de Narayama.  

Problemas demográficos no imaginário de um país
Para que servem os idosos? A obsessão do Japão com a idade

Laura Imai Messina

Filmes, novelas e mangás: em toda obra que trata do envelhecimento há homens e mulheres complacentes e tristes. A maioria deles foi convencida pela retórica de que deixar de viver é patriótico, altruísta, generoso, justo.

Num dos momentos mais críticos da história moderna do país, o antropólogo Yanagita Kunio (1875-1962), considerado o pai do folclore japonês, procurou uma resposta à pergunta “O que é um japonês?”. Ele fez isso explorando contos populares, lendas, a vida nas montanhas, contos de fadas. Ele demonstrou como aquele Japão que, no seu encontro com o Ocidente, se lançava com uma leveza imprudente e um entusiasmo superficial numa transformação que mais parecia uma autodestruição, precisava do folclore, do conhecimento das tradições antigas. Em suma, para se manter firme no futuro do país, era necessária a história do seu passado.

Os clássicos

Lendo o clássico da literatura japonesa As Baladas de Narayama [1] de Fukazawa Shichirō, publicado pela primeira vez em sua terra natal em 1956, e que gira em torno do costume de levar pais idosos para morrer na montanha para fazer frente à escassez de recursos e a fome, lembrei-me do ensaio de Yanagita Kunio dedicado justamente ao tema do ubasute 姥捨て (literalmente “jogar fora os idosos”)[2], escrito originalmente em 1945 para atender à curiosidade de meninas da quinta e sexta séries que tiveram que se mudar para o campo por causa da guerra.

Foi um teste: será que a necessidade, a fome teriam vencido a moralidade, a gratidão que os filhos deviam aos pais? Entre as muitas declinações da história, em parte autóctones, em parte vindas da Índia e da China, a minha preferida é sem dúvida aquela que mostra a mãe idosa quebrando galhos enquanto o filho sobe a montanha onde a abandonará para morrer; quando questionada por que fez isso, a mulher responde que é para criar pistas para que seu filho encontre facilmente o caminho de volta para casa.

A bela história de Fukazawa, como bem escreve Giorgio Amitrano que a traduziu pela primeira vez para o italiano para Adelphi, "ocupa um espaço surpreendentemente vasto em relação à brevidade do texto", de modo que apesar das poucas páginas, a "força narrativa, o a riqueza dos temas e a gama de sentimentos neles descritos têm... o sopro de um grande romance." É um clássico de referência da literatura japonesa, cuja importância é demonstrada pelas inúmeras adaptações e referências mais ou menos diretas em obras culturais e literárias posteriores.

A questão demográfica

O grave problema demográfico e social que o Japão enfrenta há mais de cinquenta anos está há muito tempo no centro de um debate político e cultural, tema de talk shows, documentários, romances, mangá e filmes. Sempre fui animada pela ideia de que o folclore não está muito distante da ficção científica, com a única diferença de que o olhar não está voltado para frente, mas para trás, apesar de apresentar variações da realidade que (ainda) não foram concretizadas.  Ambos são excelentes exercícios de imaginação.

Assim, já em 1973, Fujiko F. Fujio, pai de Doraemon e Superkid, assinou um mangá one-shot intitulado Food Retirement (Teinen-taishoku)[3] que falava de um futuro próximo em que o país, lutando contra uma escassez excepcional de recursos naturais e abastecimento de alimentos, estabeleceu um rígido sistema de racionamento, especialmente em detrimento dos idosos. Semelhante em tema, mas muito mais sombrio e com atmosfera mais apocalíptica, é a história em quadrinhos TEMPEST (2018) de Asano Inio, que prevê uma sociedade devotada ao princípio de "Keep Young", que por um lado fornece incentivos extraordinários para a taxa de natalidade, por o outro pressiona pela eliminação forçada dos idosos.

Com um toque hiper-realista, traça a ideologia anti-idoso que inicialmente se espalhou pela Internet, mas que, aos poucos, foi contagiando os meios de comunicação de massa até que todos os meios de informação se envolveram no movimento de discriminação ("O sistema previdenciário foi um engano criado pelas gerações anteriores com o único propósito de se protegerem!"). Agora apenas viver, sem um propósito útil e concreto para a sociedade, não é mais aceitável.

O limite

Plano 75, estreia na direção de Chie Hayakawa (2022), filme que traça uma sociedade para lidar com o envelhecimento da população e a queda nas taxas de natalidade, incentiva os maiores de setenta e cinco anos à eutanásia em massa, também abre com a notícia de uma onda de violência contra os idosos e com indícios de um sofrimento partilhado por todas as gerações.

A idade a partir da qual não é mais permitido viver flutua: se em As Baladas de Narayama os filhos têm que levar os pais para morrer na montanha aos 70 anos, no mangá de Fujiko F. Fujio o limiar além do qual os direitos são 75 anos (renováveis ​​apenas através de uma loteria utópica); no TEMPEST aos 85 anos você pode aceitar a eutanásia ou tentar um exame de certificação muito difícil (um único erro ao responder às 500 questões exigidas é suficiente para perder o mero direito de existir).

A descrição de uma idade

Qualquer que seja o período histórico ou a forma artística, em todas as obras que abordam a temática do envelhecimento da população face a um mundo cada vez menos rico em recursos e com uma crise demográfica sem precedentes, os idosos são majoritariamente descritos como complacentes, derrotados; sentem-se inúteis, tolos e sobretudo muito tristes, razão pela qual a maioria deles escolhe a solução final sem protestar, convencidos por uma retórica que faz do suicídio assistido ou da morte voluntária uma "prática patriótica, altruísta para com as novas gerações, generosa e justa."

Em todas as histórias, de As Baladas de Narayama ao mangá de Fujiko F. Fujio e Asano Inio, de Plano 75 a outros filmes no estilo de Logan's Run (1976), as vantagens racionais de suprimir os idosos são evidentes e somam-se a benefícios convidativos como fim de vida sem dor, refeições gratuitas, quantias de dinheiro para gastar com o quiser antes do dia X, isenção fiscal completa para que você possa entregar todos os seus bens aos seus herdeiros. Em suma, do ponto de vista econômico, promete-se que a morte será enfrentada com alívio.

Contudo, toda narrativa é assombrada pela constante questão do que é um ser humano, do significado da dignidade de uma existência. Na verdade, basta que um filho se lembre do amor que recebeu de uma mãe ao escalar a montanha Narayama ou que um sobrinho imagine concretamente a eliminação do cadáver de seu tio antes de concluir o programa Plano 75 no qual se inscreveu por tristeza, em que a regra geral se torna particular, esse sentimento e raciocínio pessoal se manifestam e, portanto, o monstruoso absurdo do assassinato fica claro.

Mas então para que servem os idosos? A questão está justamente no verbo servir. Não é por acaso que uma das versões tradicionais do conto de fadas com tema ubasute recolhido por Yanagita Kunio terminou com o regresso da velha mãe a casa depois de, refletindo em voz alta, o filho da mulher, acompanhado do sobrinho, ter afirmado que o cesto em que a velha que transportava teve que ser trazida para casa, pois ainda poderia ser útil.

Aquela frase, em que o verbo “usar/servir” fazia o objeto conquistar a pessoa, despertou a consciência do homem que finalmente se arrependeu de sua crueldade.

A resposta à pergunta "Para que servem os idosos?" antes, encontrei-o na troca entre um homem e uma enfermeira, num dos romances de ficção científica do escritor Kilgore Trout (nascido, por sua vez, da imaginação de Kurt Vonnegut). Os dois se encontram em uma das Salas do Suicídio Ético onde, por meio de quatorze métodos indolores, as pessoas vão morrer com calma.

O homem, pronto para ir para o outro mundo, "perguntou a uma anfitriã da morte se ele iria para o céu, e ela respondeu que ele certamente iria. Ele perguntou se ele veria Deus, e ela disse: “Claro, querido”. E ele disse: “Espero que sim. Quero perguntar-lhe algo que nunca consegui descobrir aqui." "O que?" ela disse, amarrando-o na cadeira. “Para que diabos servem as pessoas?”

Aqui, a pergunta, se feita com verdadeira convicção, não pode mais ser “Para que servem os idosos”, mas sim “Para que servem as pessoas?” De uma perspectiva orientada para o lucro, nada mais serve realmente a qualquer propósito.


1: Não achei nenhuma edição em português das Baladas de Narayama, o que é bem absurdo, só as versões cinematográficas, e são muitas, aparecem no Amazon.
2: O ubasute das Baladas de Narayama aparece em um dos volumes de Ōoku (大奥). Se a função dos homens é procriar e ele não consegue mais cumprir essa função por causa da idade, ele é somente um peso para a sociedade.
3: Não achei o mangá listado no Mangaupdates e fiquei com preguiça de passar o pente fino na Wikipedia Japones.

2 pessoas comentaram:

Artigo excelente! Seria ótimo se você pudesse trazer mais conteúdos sobre esse tema aqui no blog, Valéria!

Nathália, se eu encontrar, com certeza trarei para cá.

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