Fazia tempo que eu queria escrever algumas palavrinhas sobre essa onda das tradwives. Ainda não será o texto que eu gostaria, mas vou deixar o vídeo mais ou menos da Deutsche Welle sobre o tema e os comentários que eu fiz no Facebook. Assistam o vídeo abaixo, por favor!
Esse vídeo tem vários problemas, é bem fraco mesmo, apesar do viés pretensamente acadêmico que possui. Começando pelo fato de não deixar claro o óbvio, ser tradwife é um negócio, a dona de casa tradicional erotizada e infantilizada (*vide a Estee Williams, foto abaixo*) muitas vezes é quem sustenta parte do estilo de vida da família, o marido é sócio nesse negócio, e ainda posa de provedor nos vídeos que vendem o estilo de vida (pseudo) conservador. Mas o vídeo ganhou um ponto comigo por não ter citado a Nara Smith, que não usa a tag tradwife e, a meu ver, está em outra caixinha. Mas vamos lá:
Primeiro, o vídeo parte sempre da realidade de um grupo limitado de mulheres, ou de uma idealização mesmo, como se fosse universal. Mulheres POBRES (*normalmente, não brancas*) sempre trabalharam dentro e fora de casa para complementar a renda familiar. Desde sempre havia mulheres trabalhando em casas de família, como marisqueiras, na lavoura e nas fábricas. Minha avó materna, a mãe dela, minha bisavó, foram boia frias e operárias. Minha avó paterna foi operária. Estamos falando dos anos 1940-1970. Essa mulher dona de casa exclusiva foi e continua sendo privilégio de poucas.
Mas, sim, havia a mulher pobre e de classe média baixa que não tinha um emprego e, no caso do Brasil, uma carteira assinada, talvez até por não ter a PERMISSÃO do marido. Ela era uma mãe e dona de casa exemplar, mas, às vezes, era lavadeira, costureira, doceira, tomava conta das crianças da vizinhança, em alguns casos, tinha uma escolinha doméstica. Tudo ocorria dentro do lar, sem interferir nas tarefas domésticas e no cuidado com os filhos, que eram acumulados com esses extras. Ela não saia do espaço doméstico, não expunha de forma evidente o fato do chefe da família não ser o único provedor, não convivia com outros homens, em alguns casos, quem recebia seu pagamento era o próprio marido. Enfim, essa história de tradwife é puro revisionismo histórico branco, mesmo que existam mulheres não-brancas abraçando esse estilo de vida.
Segundo, tradwife, as verdadeiras mesmo, como a Estee Williams que aparece no vídeo, estão em um NEGÓCIO. Elas e seus maridos supostamente provedores fazem muito dinheiro apresentando seu estilo de vida, eles são patrocinadas por marcas famosas. Houve até uma excelente matéria brasileira pegando exatamente essa ideia, Donas de casa que lucram: jovens dedicadas ao lar atraem marcas nas redes. A moça, que é a principal do artigo e já viveu de forma muito pouco conservadora (*de verdade, neste caso*), é muito sincera sobre seus patrocínios e como ela chega a ganhar mais que o marido professor que deveria ser o ÚNICO provedor, segundo essa fantasia chamada tradwife.
Mas há as tradwives que não encaram como negócio, ou que não se casaram com homens que são muito bem de vida, elas, muito provavelmente, estão fadadas ao fracasso ou à frustração. E houve matéria sobre isso, também, afinal, tudo vai parar na internet. O artigo se chama Former Tradwife With 6-Year Resume Gap Shares Struggle Returning to Work (Ex-tradwife com lacuna de currículo de 6 anos compartilha luta para retornar ao trabalho). Acabou o casamento? Agora, é uma mão na frente e outra atrás. Traduzi um trechinho:
"Desde seu recente divórcio, Bender, 25 anos, não depende mais do ex-marido para obter apoio monetário. Mas com uma lacuna colossal em seu currículo, ela está lutando para voltar à carreira em um mercado cada vez mais competitivo. “Eu nunca encorajaria qualquer mulher a fazer o que fiz”, disse Bender, que mora em Phoenix, à Newsweek. “Tenho uma lacuna de seis anos em meu currículo. Só tenho um diploma de associada, apesar de ter tido a oportunidade de concluir um curso de quatro anos gratuitamente, mas desisti quando me casei."
Terceiro, não é somente no Brasil que uma pessoa não sustenta família com uma renda, isso é realidade de muitos lugares, inclusive dos Estados Unidos e faz tempo. A parcela que pode dispensar, veja bem, dispensar, que uma das partes do casal tenha renda que possa ajudar no sustento da casa é bem limitada, especialmente, dentro das camadas médias. Não raro, algumas das mais bem sucedidas tradwives é casada com um homem rico, caso da Ballerina Farm. Agora, a julgar por algumas matérias, ela não parece ser tão feliz assim, aliás, nem escolher se pode tomar anestesia em seus partos lhe é permitido.
Quarto, esposa troféu, que aparece no vídeo e não tem relação com as tradwife, pode ser trend no TikTok, mas é coisa que tem muito mais de século. E uma esposa troféu deve estar sempre linda e sexualmente disponível, ela existe para isso. Com a modernidade, o marido provedor tem que investir dinheiro nela e esposa troféu gastar muito tempo em rotinas de exercícios com personal e em intervenções estéticas, mas isso é parte do emprego, porque, em nossos tempos, é emprego, também. Trata-se de outro negócio que pode ser bem sucedido, mas eu aconselharia um bom contrato pré-nupcial, pois vai que o marido decide trocar a esposa troféu por outra mais jovem, bonita, ou sexualmente competente? Nesse ponto, esposa troféu e tradwife podem, sim, se conectar.
Quinto, em dado momento, uma das pesquisadoras fala em revolução incompleta de gênero e que ela aumentou as taxas de divórcio. Olha, mulher de classe média branca, porque é dessa mulher que as duas pesquisadoras BRANCAS estão falando, sem renda própria realmente não podia se divorciar, a depender da época não podia se divorciar porque não havia lei de divórcio mesmo, a nossa, por exemplo, é de 1977. Nos Estados Unidos, até 1974, um banco poderia negar-se a abrir uma conta para uma mulher, seja ela solteira, ou casada. O mesmo valia para cartões de crédito.
Em alguns casos, poderia haver lei de desquite ou divórcio, mas, em caso de separação, os filhos ficavam com o pai. Havia mulheres que deixavam os filhos para trás para fugir de um casamento infeliz, às vezes, com um marido violento? Claro! A maioria, no entanto, acabava ficando e se sacrificando pelas crianças. Sabe quando o casamento podia ser uma prisão dourada, pois é. A depender da lei, até os bens que ela tivesse trazido para o casamento poderiam ficar com o marido. Realmente, deixar essas mulheres de classe média entrarem no mercado de trabalho, terem renda, lutarem por direitos civis, deve ter sido um mau negócio para certo tipo de homem.
Agora, e as mulheres pobres, especialmente, as não brancas? Elas SEMPRE estiveram no mercado de trabalho. Elas SEMPRE receberam salários minguados. Elas no geral não estavam disputando empregos qualificados com os homens. Aliás, as mulheres continuam recebendo menores salários, saiu pesquisa no Brasil esta semana e os resultados foram ruins, mas se você for uma mulher negra? Você ganha ainda pior. E elas são mais abandonadas, também. Seus filhos e filhas tem mais risco de não terem o nome do pai em suas certidões de nascimento. E isso, cara leitora, caro leitor, muito antes de qualquer "revolução incompleta de gênero", só que, bem, aí a gente teria que discutir patriarcado e, para tempos mais recentes, capitalismo. Alguém quer? Então, a reflexão completa deveria estar no vídeo e, não, esse blá-blá-blá de revolução incompleta de gênero.
Essa onda reacionária, e tivemos um coach que sofreu forte backlash esta semana por expressar seu medo/desprezo/raiva contra mulheres em cargos executivos em grandes empresas é, no geral, problema de gente branca ou bem posicionada na sociedade. E essa onda de tradwife, que começa nos Estados Unidos e se alastra pelo mundo, é revisionismo histórico branco misturado com certos fetiches sexuais que ficam evidentes na forma como essas mulheres influencers constroem ou tem sua imagem pública construída.
Sexto, e termino aqui, tradwife que não entende que esse trend é negócio, está condenada a envelhecer mais rápido, se frustrar e ser trocada por uma mais nova pelo marido provedor que vai tentar projetar na nova esposa o mesmo fetiche erótico que viveu com ela, ou não, vai saber qual será a próxima moda. Outra coisa, queria que esses sujeitos apontassem na Bíblia, porque supostamente trata-se de um modelo bíblico de família, onde está a tradwife. Não vão encontrar, mas acharão, entre as poucas mulheres bíblicas, um monte delas em várias funções, culminando com o capítulo da Mulher Virtuosa (Provérbios 31:10-31), que, aliás, era uma mulher rica. 😛 É isso. Se voltar a tocar nesse assunto, escreverei melhor sobre o tema.
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