sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Algumas palavras tardias e, talvez, desnecessárias sobre o caso Sílvio Almeida

Desde o fim da semana passada estou devendo algumas palavras sobre o caso do (ex) ministro dos Direitos Humanos Sílvio Almeida, as acusações de importunação e/ou assédio sexual, inclusive contra sua colega da pasta de Igualdade Racial, Anielle Franco. Começo afirmando, como vários analistas bem apontaram, que não importa quem está falando a verdade, pois todo mundo vai sair perdendo.  Se Almeida for inocente, como ele mesmo afirma, trata-se de uma torrente de acusações falsas de assédio feitas por mulheres através da ONG Me Too Brasil.  Se verdade for, o maior intelectual brasileiro negro de nosso tempo (e isso ninguém poderá tirar dele) confirma nas suas práticas que, assim como é estrutural o racismo, o machismo também é estrutural.  E há um possível agravante, se as denúncias são antigas e os responsáveis por investigar dentro do governo federal não o fizeram, fica claro que se colocou a política antes da proteção das (supostas) vítimas.

Vou fazer o histórico da minha reação quando vieram as denúncias, algo que explica a minha demora em comentar, ainda que não a justifique.  Primeiro, fiquei perplexa.  Sílvio Almeida, que se afirmou inocente e se recusou a pedir demissão, não me parecia ter um perfil de assediador.  Segundo, quando o nome de Anielle Franco apareceu na história e, antes disso, a foto com Janja começou a circular, fiquei irritada com a atitude da ministra.  Ora, ela não está em posição inferior a de Almeida para temer retaliações, ela também é ministra, por qual motivo optou pelo silêncio?  Minhas duas reações iniciais são absolutamente equivocadas e conforme a minha perplexidade e irritação foram baixando e sendo alimentadas por mais informação, consegui colocar as minhas ideias nos lugares.

Vamos lá, não existe essa coisa de perfil de assediador ou importunador sexual.  Em uma sociedade patriarcal, a ideia de que homens podem (e até devem) assediar mulheres é quase inerente ao modelo hegemônico de masculinidade.  O assediador não precisa ser um indivíduo agressivo, bronco, ou um desconhecido em um beco escuro.  O importunador sexual pode ser qualquer um que tenha uma mulher ao alcance de sua mão.  O importante é que o assediador é um sujeito que tem um padrão de comportamento.  Seja descarado ou discreto, normalmente, é possível identificar um modus operandi.  

Agora, quando se trata de um assediador, é preciso que ele esteja em posição hierarquicamente superior a da vítima, por exemplo, um chefe ou professor.  Não sei se a lei prevê isso, mas eu diria que a superioridade pode ser somente simbólica mesmo, alguém com ascendência espiritual, emocional ou religiosa.  Algumas das denúncias que já estão aparecendo contra Almeida são de ex-alunas na Faculdade São Judas (*Veja - ICL*).  Elas sugerem coerção e troca de favores.  Sim, é coisa muito feia e que eu me lembro de ocorrer com pessoas conhecidas nos tempos em que eu estava na faculdade.  Normalmente, o professor era alguém que podia abrir, ou fechar portas, caso desejasse.

Ao longo da semana, e já se passaram mais de sete dias, o caso Anielle parece estar migrando do nicho de importunação sexual para assédio mesmo, porque, como foi noticiado pelo portal Metrópoles, a pasta da Igualdade Racial dependia diretamente do ministério de Silvio Almeida por falta de autonomia orçamentária.  Sim, temos mais essa questão se apresentando. Anielle Franco diz ter se calado, porque queria poupar a família, mas, acredito, que outras questões estavam na mesa.  Também o Metrópoles trouxe o depoimento do sociólogo Leonardo Pinho, ex-diretor do Ministério dos Direitos Humanos, que teria sofrido assédio moral e ameaças de Almeida nos meses que se seguiram a uma reunião na qual  citou que ouvira reclamações sobre a relação ruim entre o ex-ministro e a titular da pasta da Igualdade Racial.  Ainda é difícil imaginar um Sílvio Almeida transtornado e vociferando, mas é o que relata o depoimento de Leonardo Pinho.

Estou queimando Sílvio Almeida na fogueira?  Não.  Investigue-se tudo.  Agora, os raros casos de acusações mentirosas de assédio do qual estou inteirada, porque ocorreram no meu trabalho, com gente que eu conheço, eram casos isolados acusações levianas contra homens que estavam cumprindo com suas funções, ou simplesmente estavam lá e se tornaram alvo.  Foram acusações que  apareceram porque uma aluna se sentiu, sim, assediada, ou por mera instrumentalização dos discursos feministas ou por mero pânico moral.  Todas terminaram sendo desmontadas, mas o dano estava feito, porque antes de provada a inocência,  o sujeito é afastado do trabalho e, se professor, seu nome cai  na boca do povo.

O fato é que quem acusa precisa oferecer provas.  O problema é que, em casos como assédio, a coisa é mais delicada, trata-se de algo difícil de provar e o desgaste da vítima pode ser enorme.  Há o medo, a vergonha, a ideia de culpa (*o que você fez para merecer isso?  você provocou?*), às vezes, as vítimas não conseguiram discernir com clareza a situação que viveram, precisaram de tempo para compreender o que lhes tinha acontecido, por isso mesmo, a demora por denunciar pode ser de vários anos, especialmente, quando falamos de crianças e adolescentes.  O que não é o caso de nenhuma das supostas vítimas de Almeida.  “Quem vai acreditar em mim?.  "Como vou provar?" E quando o agressor é um homem poderoso, importante, acima de qualquer suspeita, a coisa se torna pior.  Vamos falar de Anielle então.

Como já pontuei, não recebi bem a informação de que Anielle Franco tinha sofrido importunação ou assédio sexual sexual e se calado.  Quando seu nome foi ventilado, ficamos sabendo que o abuso ocorrera meses atrás e que, segundo consta, ela optara por se calar pelo bem da família e, talvez, do governo.  Não gosto do argumento, embora entenda a posição dela.  Além disso, vai saber que tipo de pressão ela pode ter sofrido.

O fato é que quando um homem branco-hetero-cis-rico-extremista de direita comete um ato criminoso, ela é um indivíduo, nunca é uma questão coletiva, quando se trata de um membro de uma minoria política (*negros, mulheres, LGBTQIAPN+ etc.*) é como se eles fossem representativos de toda a coletividade.  Sílvio Almeida passa a ser visto como um desserviço a TODOS os negros e negras do Brasil, especialmente, aqueles que militam por causas sociais.  Sabe, a culpa e a responsabilidade passam a ser coletivas.

O caso todo, aliás, me fez lembrar da biografia em quadrinhos de Rosa Luxemburgo  (1871-1919.  Leo Jogiches (1867-1919), que foi companheiro da grande intelectual e militante política socialista, era violento com ela, era ciumento e não aceitou o fim de seu relacionamento.  Rosa Luxemburgo se calou para preservar Jogiches, afinal, ele era companheiro de partido e essas questões - a violência que ela sofria - eram menores diante do partido e da revolução.  Tão pequenas eram, que elas só aparecem em destaque em uma obra em quadrinhos escrita por uma mulher feminista, coisa que a própria Luxemburgo não afirmava ser.

Será que Anielle Franco não colocou na balança o dano ao movimento negro, mais ainda que ao governo Lula?  Não sei, ela é a única que pode dizer.  O fato é que não seria incomum sacrificar os direitos das mulheres, seu bem estar, em prol de causas maiores.  Sei... Conforme os dias correm, aparecem mais e mais provas.  Mesmo que o Me Too precise se explicar sobre a questão das licitações junto ao Ministério dos Direitos Humanos quando já tinha denúncias contra Almeida, o fato é que as evidências contra o ex-ministro parecem se avolumar.

Repito, não existe perfil de abusador.  Da mesma maneira que o racismo é estrutural, o machismo e a misoginia também são.  O fato de um homem ser muito consciente dos problemas sociais, um militante contra o racismo, não o torna menos assujeitado aos padrões de comportamento tóxicos em relação às mulheres.  Agora, o fato dele ser esse tipo de sujeito pode inibir denúncias e tornar mais frágil ainda a palavra das vítimas.  Olha eu aqui cheia de dedos a uma semana para comentar esse caso?

Além disso, o exercício do poder é algo que pode inebriar e fazer com que pessoas se comportem de formas muito condenáveis.  Foi o caso aqui?  Não sei.  O presidente Lula fez o certo ao demitir Almeida, já que o próprio nãos e retirou de cena, no entanto, não sabemos se as denúncias já eram sabidas por ele.  Há quem critique a primeira dama, Janja, por ter se posicionado ao postar a foto com Anielle.  Bem, não vejo erro nela, errado foi Sílvio Almeida usar a máquina do ministério para se defender.  Algo que, supostamente, teria irritado Lula.

Não sei se o texto, que estou martelando faz dias, acrescentou alguma coisa.  Como pontuei no primeiro parágrafo, não há vencedores aqui.  Inocentado Sílvio Almeida, abrimos franco para ataques aos direitos das mulheres e que sua fala seja respeitada, se culpado ele for, evidenciasse que mesmo um sujeito tão preparado e aparentemente tão consciente das discriminações pode se comportar da pior forma possível com as mulheres  e seus subordinados.  Todo o caso é para se lamentar, mas nunca, nunca mesmo, para se jogar para baixo do tapete.

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