segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Que o Miyazaki é um velho chato, a gente sabe, mas ele tem razão em não querer que o diretor de Godzilla Minus One faça uma versão live action de Nausicaä

No domingo, um conhecido comentou no Twitter que Hayao Miyazaki era um velho chato que não queria deixar que Takashi Yamazaki faça uma versão live action de um dos seus animes.  Começou então um fio com gente reforçando que Miyazaki era um chato mesmo, que a coisa não fazia sentido, que tinha filme de Kiki e peças de teatro de outras obras dele, até que o Rafael Machado Costa, do Ilha Kaijuu, interveio e explicou que o Miyazaki tem aversão pelo Yamazaki desde que ele dirigiu e co-escreveu The Eternal Zero (永遠の0/Eien no Zero) em 2013.

Com essas informações e o que eu já sabia de The Eternal Zero, foi fácil encontrar os motivos da recusa do Miyazaki em uma breve pesquisa no Google.  Comecemos por The Eternal Zero, que teve mangá lançado no Brasil pela JBC.  Eu ouvi falar da controvérsia em torno de The Eternal Zero graças a um trabalho que assisti em um evento acadêmico sobre quadrinhos, a pessoa discutia o uso da série como propaganda de extrema-direita no Japão.  Enfim, o filme e o mangá são baseados no romance de mesmo nome de Naoki Hyakuta, conhecido pela sua militância de extrema-direita.  Ser de extrema-direita, no Japão, significa exaltar o imperialismo japonês e negar os crimes cometidos na Guerra do Pacífico ou justificá-los a partir de critérios supremacistas.  The Eternal Zero conta a história de dois jovens japoneses, um rapaz e uma moça, frustrados e sem objetivos para o futuro (*o que já se presta a uma crítica à juventude do país*), que descobrem um sentido na vida depois de descobrirem que seu avô foi um heroico piloto na 2ª Guerra Mundial.  

O livro, que é de 2006, fez um grande sucesso e foi celebrado pela extrema-direita nacionalista e mesmo por gente do partido do governo, o Liberal Democrático, inclusive o então primeiro-ministro Shinzo Abe, que era próximo do autor do livro.  Shinzo Abe, para quem não sabe, promoveu ativamente uma tentativa de apagamento da memória dos crimes cometidos pelos japoneses contra coreanos, chineses, soviéticos e quem quer que tivesse sido vítima da ação imperialista nipônica.  Um dos seus avós tinha papel de liderança na infame Unidade 731, ativa entre 1932 e 1945 e que promovia atrocidades em nome da pesquisa científica.  Abe despertou a revolta de muita gente em 2013 quando posou em um avião com o número 731 no cockpit.  

Detalhe, os líderes da unidade 731 foram isentados de punição pelos norte-americanos em troca dos registros de suas pesquisas com seres humanos.  Afinal, não seria possível reproduzir o tipo de experimento que eles fizeram e suas descobertas foram consideradas valiosas pelos estadunidenses.  Não me responsabilizo pelas informações traumáticas que vocês possam encontrar sobre a Unidade 731, mas há um artigo mais tranquilo no Aventuras da História.

The Eternal Zero virou mangá em 2010 e dorama em 2014, ou seja, a versão heroica dos japoneses na Guerra do Pacífico foi amplamente divulgada.  Já comentei em outros posts como o ensino da 2ª Guerra parece ser problemático no Japão e que materiais críticos ao militarismo japonês, como o aclamado mangá Gen Pés Descalços (*que não fala só da bomba, mas começa muito antes*), têm sido retirados das bibliotecas escolares e mesmo dos materiais didáticos.

Voltemos lá ao filme The Eternal Zero.  Quando do seu lançamento, Miyazaki veio à público reclamar que o filme falseava a História e fazia uma apologia à guerra.  Imaginar o Miyazaki batendo boca na imprensa é algo que me surpreendeu, mas a coisa realmente escalou.  Ele chegou a cobrar o partido do governo sobre sua atitude em relação a essa forma de encarar o passado do país.  No mesmo ano de The Eternal Zero, Miyazaki lançou The Wind Rises (風立ちぬ/Kaze Tachinu), biografia do engenheiro Jiro Horikoshi, responsável pelo projeto do tal avião Zero.  Miyazaki foi atacado pela direita e extrema-direita japonesa por seu filme pacifista e Naoki Hyakuta acusou o fundador da Ghibli de ter falseado a história e disse "Sou apenas um simples patriota. Quem eu odeio são pessoas com sentimentos anti-japoneses ou traidores."  E ainda insinuou que Miyazaki não estava bom da cabeça.

Entre Miyazaki, que é chato, sim, mas está no direito dele, e um extremista de direita que nega o massacre de Nanquim e outras atrocidades de guerra cometidas pelos japoneses, eu fico com Miyazaki.  De qualquer forma, nessa disputa pública envolvendo o filme, não sei como e se Yamazaki se posicionou publicamente, afinal, ele era o autor do roteiro e diretor do filme The Eternal Zero.  Depois desse barraco todo, mesmo que Yamazaki declare seu amor pelos animes da Ghibli, ele sempre terá The Eternal Zero no currículo (*e sabe-se lá se outros de seus filmes não têm esse caráter "patriótico"*), que o pacifista (*que ama o ZERO*) Miyazaki odeia.  Se vocês viram Porco Rosso, há aquela frase icônica "Prefiro ser um porco do que um fascista".

Enfim, este ano, tanto Miyazaki, quanto Yamazaki, ganharam prêmios oscar.  Miyazaki de melhor animação por O Menino e a Garça, Yamazaki de efeitos efeitos visuais por Godzilla Minus One. Yamazaki é fã dos trabalhos da Ghibli e sonha em adaptar Nausicaä (Kaze no Tani no Naushika/風の谷のナウシカ), o primeiro anime do Estúdio Ghibli. 

Encontrei uma matéria comentando que o Estúdio Ghibli planeja live actions de algumas de suas animações*, mas duvido que Hayao Miyazaki vá relevar o ocorrido em 2014 e confiar à Yamazaki uma adaptação de Nausicaä, ou qualquer de suas obras.  Agora, se Myazaki odeia particularmente o Yamazaki, ou Godzilla Minus One, não sei, não achei nada apontando para isso, o rolo dele parece ser com o autor de The Eternal Zero e, claro, a coisa deve ter se estendido para o diretor-roteirista, afinal, ele também é responsável pela produção.

*E acabei perdendo, mas se achar de novo, coloco aqui.

3 pessoas comentaram:

Se esse era o texto mais leve sobre a 731, nem imagino como os outros embrulham o estômago. Não lembrava que o Yamazaki era o diretor de Eternal Zero. :/ Perdi esses posts sobre a censura de Gen. Vou dar uma olhada nos post do blog pra ver o que ficou fora do meu radar. Obrigada, Valéria.

Eu assisti e gostei bastante de Godzilla Minus One. É estranho tudo isso, pq na minha cabeça o filme do Godzilla era crítico à guerra, ao que os pilotos kamikaze eram submetidos. Na minha concepção de mundo parecia um filme contra o conflito, mas eu posso estar vendo coisa errada, não seria a primeira vez. Mas se eu estiver certa, o diretor pode ter mudado sua visão, vai saber. De qualquer forma eu dificilmente ficaria contra o Miyazaki em qualquer tipo de cenário.

Tabby, a sua percepção foi a mesma do meu marido. Acredito que o diretor repensou algumas ideias. O problema foi o conflito lá atrás. O Miyazaki não vai perdoar JAMAIS.

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