Ontem, foi um dia muito bonito para o esporte brasileiro. Começamos ainda de madrugada com a prata na marcha atlética Caio Bonfim, Hugo Calderano avançando para a semifinal no ping-pong (*detesto chamar de tênis de mesa*) e mais uma medalha de prata na ginástica com a brilhante Rebeca Andrade, que só foi superada pelo fenômeno Simone Biles, que está sendo louvada por ajudar a colocar em evidência a importância do apoio psicológico aos atletas e da importância da saúde mental. Sim, é maravilhosa até por isso.
Pois é, mas a vitória do brasiliense Caio Bonfim, que descobri ontem que mora no mesmo bairro que eu (*me mudei na pandemia*), expôs a homofobia no esporte. A marcha atlética, uma caminha acelerada com regras, faz com que o atleta ande rebolando. “O cara que me perguntou se foi difícil essa prova e eu disse não. Difícil foi desde o dia que fui marchar na rua pela primeira vez e fui xingado. Eu falei: Eu estou pronto pai, quero ser marchador. Quando eu falei isso por meu pai foi o dia que decidi ser xingado sem problema”, disse o atleta para a Cazé TV. Para o Jornal de Brasília, ele comentou "Caio Bonfim costumava ouvir xingamentos pelas ruas de Sobradinho: ‘Viado’. Seguia-se de nova agressão verbal: ‘Toma jeito de homem’. E mais outra: ‘Para de rebolar’.". Bonfim, que não conta com patrocínio privado e depende dos incentivos públicos, foi treinado pelo pai e tem como exemplo a mãe, OITO VEZES campeã nacional da modalidade. Meus olhos se enchem da lágrimas quando lembro do atleta correndo e gritando "Ganhamos a medalha, mãe!"
A homofobia pode afastar um menino do esporte, seja a marcha atlética, a ginástica artística e outras modalidades tidas como não-viris ou "coisa de mulher". Quando Diego Hypolito se assumiu, de passagem ouvi o comentário de uma mãe na academia, de que tinha medo que o pai quisesse tirar o filho da ginástica, porque o filho criança queria ser ginasta e tinha atleta como seu ídolo. Até hoje, nado sincronizado e ginástica rítmica excluem os homens, nem sempre foi assim. Da mesma forma, as mulheres foram excluídas de vários esportes por muito tempo, em especial, as lutas e chegamos ao ponto mais horrendo do dia.
Eu estava assistindo à ginástica artística feminina e abri o Twitter. "XX XY" nos trending topics. Imaginei que alguma grande m**** estava mobilizando a rede e, sim, era isso. A argelina Imane Khelif venceu a italiana Angela Carini. A italiana se machucou, talvez tenha quebrado o nariz e desistiu com 46 segundos, um perfil bolsonarista conhecido por disseminar mentiras e virulência passou a ser utilizado pela imprensa série como fonte. A decisão de Carini precisa ser respeitada, aliás, Antonia, jogadora da nossa seleção de futebol, se manteve em campo sentindo muitas dores, ninguém sabia, mas ela sofrera uma fratura e só saiu quando viu que era impossível continuar, a arbitragem estabeleceu mais de 15 minutos de tempo extra. O Brasil estava com dez jogadoras, sem ela ficaria com 9 contra a Espanha, atual campeã mundial. Honro tanto uma quanto outra. São escolhas.
O que poderia passar batido, se tornou o assunto sórdido da semana. Li inclusive a frase "Vejam como um homem acabou com o sonho olímpico de uma mulher". Fui me informar e, claro, é como mergulhar no esgoto. Imane Khelif nasceu em uma família pobre. Começou jogando futebol, mas, em seu país, o esporte não é bem visto para mulheres e ela era agredida pelos garotos do time. Como tinha grande capacidade de se esquivar dos golpes, alguém lhe sugeriu o boxe. Contra a vontade do pai, ela fez inúmeros esforços e se tornou boxeadora de ponta. Ela terminou representando seu país, a Argélia, onde ser homossexual ou trans é crime.
Imane Khelif foi identificada como mulher desde o nascimento, logo, sua genitália era inegavelmente feminina, se não estiver errada, ela tem útero, também. Foi criada como menina, logo, é uma mulher cis. Mas em um exame genético exigido pelo mundial de boxe de 2023, descobriu-se que ela tem um cromossomo Y. Ela foi impedida de competir. O campeonato é organizado pela Associação Internacional de Boxe (IBA), que não segue as mesmas regras do Comitê Olímpico, o que quase resultou na exclusão do boxe das olimpíadas. O IBA não participa da organização da competição.
Claro, você aprendeu na escola que ou se é XX ou se é XY, é a normalidade na nossa espécie. Se estava em uma boa instituição de ensino básico, deve ter aprendido que existem pelo menos duas outras possibilidades Síndrome de Klinefelter (XXY) e Síndrome de Turner (X0) percebidas como anomalias cromossômicas. No primeiro caso, a pessoa é identificada como homem, na segunda, como mulher. Conheci um Turner que era identificado como homem, foi socializado como homem e se via como homem. Isso, claro, dava um nó na cabeça de muita gente. De qualquer forma, o fato é que o que aprendemos na escola é uma simplificação de questões mais complexas e vou citar um exemplo da minha área.
Sou medievalista por formação. Feudalismo, para alguns historiadores, é uma criação meramente instrumental, se existiu de verdade, com todos os detalhes que aprendemos no ensino básico, só na França e olhe lá! Dito isso, havia várias formas de servidão. Havia servos com grande autonomia, havia outros que eram praticamente escravizados. Podemos falar de espectro da servidão? Sim, seria um bom termo, mas no vestibular o que cai é um modelo simplificado, é isso que se ensina na escola.
Ninguém sai do colégio especialista em nada, a gente sai minimamente culto, capaz de navegar na sociedade e compreender razoavelmente o mundo ao nosso redor, especialistas são feitos nas universidades. Ás vezes, é necessário ir muito além da graduação para alcançar o grau de especialização que muita gente acredita ter por ter lido alguma coisa nas redes sociais, ou assistido um vídeo no Tik Tok. Fora, claro, que a ciência, seja ela qual for, não é estática e, também, não é neutra. Voltemos ao caso de Imane Khelif.
A atleta não é um homem, tampouco é uma mulher trans. Ela é uma mulher cis com um Distúrbios de Diferenciação Sexual (DDS). Há mulheres XY, elas podem, ou não, ter níveis maiores de testosterona, mas o fato é que outras características sexuais masculinas não são tão pronunciadas. Meu marido tem uma amiga de longos anos de internet, uma italiana, que se enquadra nos padrões ideais de feminilidade, ela tem aquilo que chamamos de passabilidade, mas, um dia, ela lhe explicou que, na adolescência, como ela não menstruava, os pais lhe explicaram que ela nascera sem útero. Ela tem vagina, ela tem seios, mas ela é XY, ou algo perto disso.
Esses casos caem naquilo que chamamos de intersexo, essas pessoas existem, elas estão no esporte, elas estão na sua escola, elas, às vezes, não sabem que se enquadram nessa categoria. Imane Khelif, lá na sua vila do interior da Argélia, era uma menina, sempre foi uma menina, mais importante, ela não é uma pessoa trans. O argumento de que ela é um homem e que nunca uma mulher poderia derrotá-la não se sustenta. Ela já foi derrotada por nove mulheres, inclusive, na Olimpíada passada. E não adianta desencavarem falas como a da mexicana Brianda Tamara Sandoval de que lutar com Khelif é pior do que lutar com homens, neste caso, sparrings, porque a boxeadora resistiu por três rounds inteiros antes de ser derrotada. É como em um vídeo antigo do Põe na Roda, se uma mulher trans vence, ela roubou, afinal, elas são homens e as mulheres são umas coitadas, agora, se um homem trans vence, os homens cis deixaram. Claro, Khelif não é trans, mas era o que estavam querendo fazer com que o grande público acreditasse.
Considero que isso está no espectro da normalidade, perder faz parte, encontrar um/a adversário/a duro está dentro das expectativas de qualquer esporte, usar de argumentos que podem sugerir alguma forma de preconceito é um ato de covardia. Aliás, acho muito perigoso que os transfóbicos de todas as cores e tendências queiram reafirmar a cada momento essa inferioridade física absoluta das mulheres. É como se qualquer homem pudesse derrotar qualquer mulher em qualquer coisa que exija força física, velocidade e agilidade. Que os reacionários defendam isso, não me surpreende, a minha preocupação é com os ditos progressistas e alguns grupos feministas.
Muito bem, a italiana correu para explicar que não desistiu por estar boicotando Imane Khelif, não foi protesto, ela estava realmente machucada, seu técnico inclusive pontuou que ela estava tomando antibióticos e com dor de dente. A palavra da atleta, uma mulher, não vale, o que conta é a instrumentalização do caso contra mulheres que não se enquadrem em um determinado perfil de feminilidade. Angela Carini, mesmo sendo boxeadora, se enquadra naquilo que a maioria chamaria de mulher atraente, Khelif, não. Assim como tantas outras atletas.
Aliás, um dos passatempos favoritos de gente que odeia pessoas trans e qualquer mulher cis que não lhes apeteça é analisarem celebridades, acusando-as, porque é acusação, de serem mulheres trans. Uma das grandes vítimas dessas mentiras é Michelle Obama, sim, a esposa do ex-presidente dos Estados Unidos, mãe de duas meninas. Fotos e vídeos manipulados dela circulam aos montes, nos fóruns da extrema-direita e em seus canais do Youtube essa discussão ferve. O fato é que, neste caso, se mistura racismo e machismo com transfobia.
A graça nessa discussão sobre Khelif, se é que existe alguma, foi ver um famoso deputado transfóbico escrevendo que não é por uma pessoa ter útero e vagina que ela é mulher. Bom saber, não é mesmo? Porque o argumento anatômico é um dos pilares da transfobia. No meio dessa nojeira toda, que envolveu políticos de extrema-direita (*inclusive a premiêr italiana*), celebridades (JK Rowling), magnatas (Elon Musk) e gente comum, levantaram muito bem o caso de Michael Phelps. O maior nadador de todos os tempos ganhou na loteria da genética, a maioria perde, vejam bem, e tinha um corpo perfeito para o esporte com adaptações que o distanciavam da média dos seres-humanos comuns, além de produzir 50% menos de ácido lático. Ninguém nunca tentou excluí-lo do esporte, no caso dele, aliás, suas especificidades garantiram medalhas, sim, simplesmente, era sorte dele.
Uma mulher cis, mesmo XX, que tenha níveis elevados de testosterona por motivos naturais (*mas anormais*) corre o risco de ser excluída do esporte, ou ter que se submeter a tratamentos que podem lhe fazer mal e acabar com sua carreira, caso da sul-africana Caster Semenya. A atleta declarou "(...) ter tomado a medicação por um período, mas parou, dizendo que isso "torturava" seu corpo. Ela contou ter ficado nauseada, deprimida e mentalmente exausta, além de ter dificuldades para dormir e experimentar ataques de pânico." Há cientistas consideram que colocar todo o peso em um único fator, a testosterona, é algo equivocado, mas não há um consenso sobre o tema, de qualquer forma, uma discussão legítima, isto é, a questão das atletas intersexo ou com altos níveis do tal hormônio masculino, é instrumentalizada e tem causado muito sofrimento. Trata-se de uma espécie de dopping reverso, por assim dizer.
De qualquer forma, ser mulher é sempre um problema, aliás, ser atleta de ponta pode lhe render até acusação de abandono parental, vide o caso Flávia Maria de Lima, dos 800 m. O ex usa suas viagens para as competições contra ela. Já viu isso acontecer com algum homem? Pois é... Agora, uma das reclamações de muitas feministas e outras mulheres do esporte desde o início dos jogos foi a presença do jogador de vôlei holandês Van de Velde, condenado por estuprar uma menina de 12 anos na competição. Ele a conheceu pela internet, sabia da sua idade e viajou para a Inglaterra para encontrá-la.
O juiz britânico vaticinou que era o fim da carreira dele. Enganou-se, a carreira dele floresce e houve até uma comentarista britânica que disse que ele não estupro uma criança, ele viveu um romance com ela. Minha posição pessoal é a seguinte, se ele pagou sua divida com a Justiça (*ao ser transferido para a Holanda o crime foi recategorizado e a pena diminuída*), se ele nunca mais apresentou em sua vida nada que o desabonasse, vida e carreira que segue. Agora, procurem nas fileiras reacionárias, falsamente chamadas de conservadoras, um "a" sobre isso.
Concluindo essa parte, porque ainda tenho dois pontos a comentar, Angela Carini se desculpou publicamente por não ter cumprimentado Khelif, "Não era algo que eu pretendia fazer. Quero me desculpar com ela e com todos os outros. Fiquei brava porque minhas Olimpíadas tinham virado fumaça - disse a italiana, acrescentando que, se encontrasse Khelif novamente, a "abraçaria".". Não foi o/a único/a atleta que se comportou de maneira pouco esportiva ou infantil nessa Olimpíada. Aliás, não me lembro de Olimpíada com tantos incidentes de descontrole emocional.
Ainda assim, certamente, há quem esteja ruminando que a atleta está se comportando dessa forma para não ser linchada na internet. Na verdade, quem sofreu linchamento foi Khelif, apontada como homem cis ou mulher trans sem ser. Como foi muito bem destacado no vídeo do Meteoro sobre o assunto, a extrema-direita mundial e os tagarelas de internet não tem ideia do que é ser LGBT+ na Argélia e dos riscos que a atleta pode passar a sofrer em seu país, ou mesmo fora dele. Aliás, nem Caio Bonfim, nem Imane Khelif, são ou se veem como membros da sigla LGBTQIAPN+, mas isso não os impede de sofrerem homofobia ou transfobia. Para quem não sabe, pessoas hetero e/ou cis podem sofrer homotransfobia, desde que não tenham a aparência certa, não pratiquem o esporte certo, ou demonstrem alguma forma de afeto que ofenda os juízes da vida alheia. Podem terminar mortos. E, para quem quiser saber um pouco mais dessa discussão sobre DDS, recomendo, também, um vídeo já antigo do canal Nunca Vi 1 Cientista.
E, hoje, a judoca brasileira Beatriz Souza, de 26 anos, em sua primeira Olimpíada, conquistou a medalha de ouro para o Brasil passando pela primeira do mundo, uma francesa que tinha o ginásio com ela, e a segunda do mundo. Sim, saiu e foi o Judô que quase nunca sai de mãos vazias. Mais lindo ainda, foi a terceira medalha de Sarah Menezes, que já foi medalhista de ouro na modalidade e, agora, é treinadora da seleção feminina de Judô. Larissa Pimenta já tinha conseguido o bronze. Sarah Menezes é a única brasileira a vencer como atleta e como treinadora.
Uma das coisas que eu gosto no Judô, que eu não pude praticar porque no único lugar onde havia aula na minha cidade não aceitavam meninas, é que ele é para todo mundo, corpos diversos sempre estiveram presentes na modalidade. Beatriz, em suas falas, mostra que tem muita consciência desse fato. Mulher negra, gorda, ela se coloca com orgulho e volta para casa, para sua família (marido, pai, que a colocou no esporte, mãe) com um ouro olímpico. Fiquei muito feliz por ela. Muito mesmo. Minha menina faz Judô, ela não mostra amor pela modalidade, provavelmente, se nada mudar, ela deve abandonar as aulas em breve. Ainda tenho alguma esperança, de repente, a minha emoção consegue tocá-la.
E, sim, ontem ainda tivemos o atirador turco, Yusuf Dikçc, que foi uma das coisas mais legais das Olimpíadas. Com seu jeito despojado e cool, ele levou a medalha de prata para seu país e rendeu muitos memes divertidos. Gente já está sonhando com um mangá, ou anime. Como alguns tinham apostado, ele tinha uma carreira militar (*matador de aluguel, era a outra possibilidade*), mas ele parece ser um sujeito simpático (*além de charmoso*), porque gosta de gatinhos.
1 pessoas comentaram:
Boa noite, Valéria, eu gostaria de fazer uma correção sobre a Imane Khelif. As informações na internet estão muito desencontradas, a verdade é que nunca foi revelado o resultado desse exame do IBA. Ao que parece, foi o presidente dessa organização que declarou que ela tinha uma taxa de testosterona muito alta. Depois, ele mudou a versão e disse que ela tinha cromossomos XY. Então, o IBA soltou o comunicado oficial dizendo q a reprovação não foi por nada disso, mas q não iria revelar o real motivo. Além disso, Khelif não foi a única nessa situação, outra boxeadora, q tbm está nas Olímpiadas (eu acho, essa parte não tenho certeza), foi reprovada nesse exame misterioso
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