domingo, 14 de julho de 2024

Comentando a novela Direito de Amar: Um Balanço Geral, já que fui Negligente em fazer outros textos

Quase um mês atrás, terminou a exibição de Direito de Amar no Canal Viva, trata-se de uma das minhas novelas favoritas e preciso fazer pelo menos um grande texto sobre ela para se somar aos outros quatro que já estão no Shoujo Café: um no aniversário dos 20 anos da novela, outro no dos 30 anos, um falando de Castro Alves na novela (*e eu não consegui localizar a cena, mas tenho CERTEZA de que ela existia*) e outro, quando o Viva anunciou a a exibiria em seu aniversário de 35 anos.  Sim, eu já deveria ter terminado a resenha, mas não consegui.

De autoria de Walther Negrão, Direito de Amar foi exibida originalmente em 1987 e foi reprisada no Vale a Pena Ver de Novo em 1993-94.  Esta segunda exibição, não pude assistir integralmente, porque estava na faculdade e nem sempre chegava em casa em tempo, na verdade, quase nunca.  A trama de Direito de Amar é baseada na radionovela A Noiva das Trevas de Janete Clair, escrita em 1956, mas há algo de Jane Eyre nela, afinal, há um caso de bigamia e a esposa "louca" presa em uma área remota da casa do marido.  A diferença, claro, é que o bígamo é o vilão e, não, o Mr. Rochester por quem a gente termina torcendo e que fica com a mocinha no final. 

A novela começa na passagem do ano de 1900.  Rosália (Glória Pires) tem 15 anos, irá ao seu primeiro baile; só que seu pai, Augusto Medeiros (Edney Giovenazzi), que é um industrial sonhador, está endividado e é pressionado pelo seu credor, o poderoso Francisco de Montserrat (Carlos Vereza) a conceder a mão da garota em troca da dívida.  Medeiros não quer ceder a filha, mas é fraco, e começa a considerar que pode não ser tão ruim assim para a moça se tornar esposa de um homem tão poderoso.  A ideia, no entanto, horroriza a mãe da adolescente, Leonor (Esther Góes), que fará de tudo para impedir a união.  Só que o máximo que consegue é adiar a cerimônia religiosa em três anos, já o casamento civil é feito quase que de imediato por exigência do vilão.  Rosália, obediente aos pais, assina os papéis sem saber do que se trata.

No baile da noite de Ano Novo, Rosália conhece um mascarado que arrebata seu coração.  Ela só viu seus olhos e ouviu sua voz, mas sabe que o ama.  A moça, porém, não tem tempo sequer de lhe perguntar o nome, porque seu pai é pressionado por Montserrat a levá-la para casa.  O rapaz que dançara com Rosália é um jovem médico recém-chegado da França, Adriano (Lauro Corona), filho próprio Montserrat.  Ele também cai de amores pela protagonista sem saber que ela já está casada com seu pai e passará os próximos quase três anos procurando por ela.

Logo no dia seguinte, Rosália pede ajuda à Paula (Cissa Guimarães), sua prima, para descobrir quem é o mascarado.  O pai de Paula, Manoel Barbosa (Elias Gleizer), é dono de uma confeitaria frequentada por muita gente, alguém haveria de saber a identidade do moço.  Paula descobre quem é o mascarado, mas sabendo que ele é rico, jovem, bonito e refinado, o quer para si e faz o possível para impedir que Adriano e Rosália se encontrem.  Além disso, age de forma ousada com o intuito de atrair a atenção e ganhar o afeto do rapaz.  Já Rosália será trancada em um internato por três anos, até a data de seu casamento.

Eventualmente, Adriano encontra Rosália com a ajuda de Nelo (Rômulo Arantes), irmão de Paula, só que as armações de Montserrat e da prima da protagonista conseguem manter os dois separados por boa parte da trama usando de mal-entendidos e chantagens diversas.  Durante toda a novela, teremos muita idas e vindas, culpas, obstruções e segredos desvendados até que, no derradeiro 173º capítulo, os mocinhos fiquem juntos e os vilões recebam sua punição.

Direito de Amar é uma novela bem redondinha, o que não quer dizer que seja perfeita, nenhuma novela é.  São muitos capítulos a preencher e alguns clichês, que parecem ser incontornáveis nos folhetins, são recorrentes na trama.  Mas, independentemente de qualquer coisa, trata-se de uma excelente telenovela, do tipo que não espero ver mais em nossas TVs.  O gênero mudou e, de certa forma, empobreceu e se acovardou, também.  

Muitas das questões tratadas na trama, não apareceriam mais em uma telenovela em nossos dias, nem às nove da noite, talvez, somente, às 23 horas.  São dramas pesados demais, violências que hoje seriam lidas não como reprodução possível da sociedade da época, mas como estímulo.  E cito, inclusive, o fato de, em Nos Tempos do Imperador, terem eliminado uma cena de violência doméstica temendo que a simpatia da audiência ficasse do lado do vilão abusador.  Eu duvido, mas, como pontuei, há uma situação de acovardamento geral.

O que torna Direito de Amar tão boa como telenovela é o fato de termos um elenco principal muito robusto interpretando personagens complexas e críveis nos seus dramas, além de coadjuvantes, cujas tramas servem para rechear tantos capítulos de forma competente.  A trama principal se mantém coerente do início ao fim e os segredos vão sendo revelados aos poucos, mesmo que a gente já desconfiasse de um a série de coisas.  Claro, isso não vale para quem tinha visto a novela, como eu, mas acredito que, mesmo na primeira exibição, a identidade da "louca" do sobrado não me tenha escapado por tanto tempo assim, ou, talvez, tivesse, afinal, eu era uma criança, mas já tinha assistido pelo menos a versão de 1970 de Jane Eyre.

De qualquer forma, desde o início, a identidade da "louca" do sobrado já estava sugerida.  Chamada de Joana (Ittala Nandi), referenciada como cunhada de Montserrat, mulher caída que ele acolhera por piedade para honrar a memória de sua esposa, Bárbara, era, na verdade, a mulher do vilão.  Guardada por Berenice (Célia Helena) e Raimundo (Rogério Márcico), criados de longa data de Montserrat e sabedores de alguns de seus segredos, ela termina recebendo, depois de muita insistência junto ao pai, tratamento de Adriano, orientado pelo Dr. Ramos (Carlos Zara), seu mentor.  

Durante anos, Montserrat se recusava a permitir que médicos se aproximassem dela, especialmente, Ramos, que é seu inimigo, e não aceitava a possibilidade de enviá-la a um manicômio.  Aliás, uma das discussões que são trazidas para a novela é a da questão manicomial, falou-se do passado para discutir o presente da luta contra o encarceramento de doentes psiquiátricos, que tem como um dos seus marcos mais importantes o próprio ano de 1987.  Aliás, voltarei outras vezes a esse diálogo entre passado imaginado e presente que se quer discutir ao longo da resenha.

Durante parte da novela, Ramos é levado a crer que a "louca" fosse realmente Joana Cavalcante e pensa que ela pode ser mãe de Carola (Cristina Prochaska), uma jovem moderna e independente, que havia sido criada na França.  Carola realmente era filha de Joana, que na Europa atendia por Nanette e era dona de um bordel de luxo, mas a mulher do sobrado era a gêmea que todos julgavam morta.

Bárbara (Ittala Nandi), que casara obrigada pela família e grávida de outro, iria fugir com seu verdadeiro amor, o médico Jorge Ramos, mas fora obstruída por Montserrat e seus capangas. Um deles, Raimundo. O vilão ordenou que o bebê fosse morto, atirado de um penhasco à beira mar, mas Raimundo não conseguiu cumprir a ordem e levou o menino para o orfanato de Padre Inácio (Older Cazarré), que o manteve escondido por mais de dois anos.  

Já Bárbara, que sobreviveu a um acidente de carruagem, foi "enlouquecida" pelo marido traído como forma de vingança. Além disso, com a conivência de Padre Inácio, Montserrat assumiu/roubou o filho do rival, o menino que queria morto, criando Adriano como se fosse seu próprio. Foi mais uma pequena vingança contra Ramos, que, pelo bem do filho, calou-se.  O segredo só foi revelado bem no final da história, assim como o fato de Bárbara nunca ter deixado o filho para trás para fugir com o amante, algo que atormentava o rapaz.  Ao longo da novela, sempre que Joana tinha alguma crise mais violenta, corria o risco de ser espancada por Montserrat.  Além disso, o vilão abusou sexualmente dela mais de uma vez durante a novela.

Considero o Sr. de Montserrat um dos melhores vilões das telenovelas brasileiras.  Rever a trama só confirmou minhas impressões e Carlos Vereza estava fantástico.  Ele podia parecer terno para enredar Rosália, era cruel e manipulador quando lhe era conveniente, parecia amar Adriano, mas não teve escrúpulos em descartá-lo.  Acredito que um dos ápices da sua atuação foi quando Rosália lhe deu de presente uma chapa (*nome antigo para os discos usados em gramofones*) com a ária da morte de Isolda de Richard Wagner.  Era uma armadilha, que como tantas armadas contra ele não deu certo, mas o ator passou toda a emoção sentida pela personagem, um misto de surpresa, ternura, assombro mesmo.  

Outra sequência marcante foi quando Rosália se casa e faz o discurso dizendo que ele foi a única pessoa honesta com ela e que, infelizmente, pagou por um produto e não ficaria com ele.  O rosto de Carlos Vereza era todo assombro, porque é uma das grandes cenas da novela inteira, e as sequências nas quais ele rememorava a fala da jovem foram excelentes, também.  Um vilão em camadas, ainda que soubéssemos, quer dizer, nem todo mundo via assim, claro, que ele era um monstro.  Afinal, quem chantageia um pai e uma mãe para se casar com uma adolescente que poderia ser sua filha, até neta?  E, talvez pior, quem mantém uma mulher trancada por mais de vinte anos, a torturando constantemente e mentindo que ela é outra pessoa, que é viúvo.

Montserrat era horrível, mas era construído de forma tão esmerada que parecia querer nos seduzir a todos, nos convencer de que não era a pessoa que de fato era.  A coisa foi tão dramática, que Carlos Vereza nunca recebeu tantas cartas de fãs apaixonadas e o autor, Walther Negrão, teve que aumentar sua vilanias para tentar fazer essa loucura parar.  Ainda assim, lá pelo final da novela, volta e meia Adriano, Rosália e mesmo Ramos pareciam não acreditar que ele fosse capaz de fazer certas coisas que fazia.  Não lembro quem dos jornalistas de novela, acredito que foi o Maurício Stycer, mas certeza não tenho, que disse que um pouco de burrice é aceitável para que uma novela ande (*vale para mangá, também*), mas há limites, há limites... 

Bem, o cidadão mandou matar um bebê, enlouqueceu a primeira esposa e a manteve mais de VINTE ANOS trancada em um sótão, comprou uma adolescente virgem para se casar com ela, tirou a casa de uma viúva idosa e a jogou na rua etc.  E, ainda assim, as maiores vítimas de suas vilanias colocavam em dúvida se ele poderia ser capaz de fazer alguma coisa?  A única que parecia nunca duvidar era Berenice, mas ela tinha pouco poder para intervir, o que pode, ela fez, mas foi pouco. Aliás, como a atriz Célia Helena era fantástica.  Sua Berenice era discreta, terna com Adriano, a quem amava como filho, e Bárbara, mas parecia ser, também, a única que poderia ameaçar Montserrat e isso sem erguer a voz e sempre com uma expressão que parecia (*PARECIA*) ser de humildade e respeito.

Outra que estava muito bem na novela era Suzana Faini, a parenta governanta de Montserrat.  Nunca ficou claro o seu grau de parentesco com o vilão, ela era uma espécie de agregada da casa, mas que, até a chegada de Rosália, se comportava como senhora do lugar.  Amava o vilão de forma doentia, não se importando de ser usada sexualmente por ele, ou ser fisicamente agredida, o que aconteceu mais de uma vez. Ela nunca perdeu a esperança e rastejava por migalhas da atenção do vilão. 

Até por querer o vilão para si, ela fez o possível para impedir que Rosália fosse morar na casa de Montserrat e a ajudou mais de uma vez para que o casamento fosse consumado.  Antes do casamento religioso, ela teve uma cena muito boa na qual usou as palavras para torturar Adriano e fazê-lo se mexer para fugir com a moça.  Mas Adriano sentia culpa por amar a mulher do pai e se debatia em angústia.  Houve um momento em que Montserrat suplicou que ele abrisse mão de Rosália, porque a moça era sua última chance de ser feliz.  A partir de um dado momento, com Rosália morando com o marido, Mercedes ajudou ativamente a jovem e Adriano a fugirem juntos. 

Achei injusto que nenhum dos dois tenha lhe estendido a mão no final da novela, quando Bárbara, em uma atitude que parecia ter algo de ciúmes, a expulsou de sua casa.  Mercedes termina embalando o corpo morto de Montserrat como se fosse uma Pietá, esta sua última cena.  Não sabemos o que foi feito dela depois, com a correria do final, não houve um reencontro dela com os protagonistas nem menção de seu destino.

E preciso falar de Adriano e Rosália.  Na verdade, preciso falar de muitas coisas e sei que este texto vai demorar vários dias para ficar pronto (*já faz bem duas semanas que comecei*).  Mas não tenho pressa, quer dizer, tenho, porque preciso terminar de resenhar Bridgerton.  Enfim, Glória Pires passou por várias fases ao longo da trama e mudou o tom da personagem para se adequar a elas.  Seu figurino e postura em cena eram reflexo das transformações de menina à mulher exigidas pela personagem.  

No início da novela, ela tinha 15 anos, a atriz era quase dez anos mais velha. Rosália, mas, ainda assim, passava um ar de impulsividade mesclado com timidez e inocência. Era filha única e cresceu em uma redoma de carinho, proteção e luxos.  A colocaram com franja, cabelo solto, vestidos cheios de laços, parecia ter saltado de um shoujo mangá clássico.  

Mais tarde, em sua fase de rebeldia, quando casa e foge para a pensão de Esmeralda (Cinira Camargo), ela mantém o cabelo solto, suas roupas de mulher pobre e (*aparentemente*) livre ganham cores mais fortes e decotes.  Certamente, a ideia é que as roupas foram emprestadas por Esmeralda, que era "meio cigana", por assim dizer, só que Cinira Camargo era bem  mais alta.  

Nesta fase, Rosália parece ter se endurecido, mas continua tendo um coração terno e, como ainda é uma adolescente e não tem experiência de vida, acaba sendo manipulada pelo vilão e termina indo morar na sua casa com a promessa de proteção.  Montserrat promete que não irá obrigá-la a consumar o casamento.  Aliás, Rosália permanecerá donzela a novela inteira.  Toda vez que ela e Adriano, nesta fase da pensão, estavam dispostos a mandar tudo às favas e transarem, alguém os impedia.  🤗

Depois do incidente dos cartões eróticos, quando Rosália, para ajudar o orfanato de Padre Inácio, posa em roupas de baixo para Danilo (João Carlos Barroso), todas as suas possibilidades de anulação do casamento com Montserrat são perdidas, ela acaba mal falada e é abandonada por Adriano, que fica enciumado e enojado.  O fato é que posar para os cartões foi uma bobagem, mas Rosália era impulsiva, tinha um coração muito bom e, na sua ingenuidade, não mediu as consequências.  Além disso, desde a fase do internato, havia algo de feminista no discurso da jovem, um feminismo possível dentro do início do século XIX, e que era compartilhado com sua mãe, Leonor.  

Hoje, alguns olhariam para as reflexões de Rosália sobre igualdade e de Leonor sobre o direito das mulheres no mercado de trabalho como inserções modernas dentro da trama.  Sim e não, afinal, a novela é de 1987, os direitos das mulheres precisavam avançar muito com algumas leis marcadas pela ideia de inferioridade feminina e desigualdade, mas as discussões feitas estavam presentes no início dos anos 1900.  De lápara cá, avançamos muito, verdade, mas estamos em risco de perder muita coisa, também, vide o PL do Estupro que deseja retirar direitos obtidos em 1940.

Retornando, foi Paula quem difamou a protagonista, espalhando a identidade da moça dos cartões, já que Danilo tinha esforçado por alterar os traços de Rosália.  Enfim, a protagonista vai para a casa de Montserrat e passa a se vestir como uma senhora: cabelo preso, mangas compridas, gola alta.  Suas roupas sempre de cores neutras.  Tudo muito bonito, mas o figurino enrijeceu a personagem e a ideia era exatamente essa, afinal, Adriano a abandonara, não confiara nela, virando-lhe as costas quando mais precisava dele.  Aliás, a ideia da rigidez do figurino de casada da mocinha já está presente na abertura, no vestido de noiva de Rosália, o rosto duro, porque seu coração foi quebrado.

De qualquer forma, observem fotos antigas, as pessoas, especialmente, as mulheres casadas, pareciam mais velhas do que elas eram.  Havia a luz, havia a postura corporal, mas existia também a exigência de uma conduta que pudesse sinalizar, entre outras coisas, que aquela mulher tinha dono. Minha mãe, por exemplo, casou e nunca mais usou cabelo solto, o coque impecável era uma marca de que era mulher séria e casada. 

Muitos anos atrás MESMO, eu ainda estava no Ensino Médio, acordei e liguei a TV e em um programa da TV Cultura estavam mostrando uma dissertação de mestrado da UFF, que trabalhava com a representação visual das mulheres da elite fluminense no século XIX.  Que a ideia da mocinha despreocupada, ingênua, romântica, não estava presente nos retratos das senhoras, mesmo que elas tivessem meros 15 ou 16 anos.  Nunca consegui achar esse trabalho, ou o programa de TV.

Observem como Lauro Corona 
parece abatido nesta foto.

Os retratos das matronas deveriam passar uma respeitabilidade que era fundamental para a esposa de um fazendeiro do café, uma mulher que, da noite para o dia, deveria estar apta a assumir o comando da propriedade, incluindo os escravos, em especial, enquanto o marido estivesse fazendo política no Rio de Janeiro.  A linda mocinha cabeça de vento não cabia ali.  Essa ideia também é defendida no artigo sobre E o Vento Levou... que está no livro Passado Imperfeito: A História no Cinema: "(...) quando se casavam (em geral, por volta dos 20 anos), as noivas sulistas se sobrecarregavam da noite para o dia com as responsabilidades administrativas da plantação."  E o artigo segue descrevendo as inúmeras atribuições, era uma vida dura e que, juntando com as gravidezes e partos seguidos, deveria cobrar o seu preço.  

Enfim, Rosália, na novela, não faz nada de fato, ela é uma espécie de troféu, marcando que o Sr. de Montserrat não somente dobrou a jovem e a trouxe para sua casa, de onde não irá mais sair até o fim da trama, mas que venceu o próprio filho.  Ele é dono daquela mulher e ela, a partir de então, terá que exibir no próprio corpo e no gestual as marcas dessa posse.  Roupas, joias, o cabelo sempre preso, o rosto sério.  A riqueza e posição do marido eram demonstradas na aparência pública de suas filhas e esposas.  Quantas meninas eram arrancadas da infância para essa vida de senhora?  Quantas eram casadas com homens com idade para serem seu pai ou até avô?

Só que Rosália não se deixa, nem dobrar, nem se moldar.  Uma das características da personagem é sua força de caráter.  E raramente vi uma combinação tão harmônica de mãe e filha na ficção.  Em mais de um momento da novela, alguma personagem dizia, Montserrat fez isso mais de uma vez, que Rosália saiu à mãe, interpretada por Esther Góes com uma altivez e elegância que não deixavam dúvida de que ela era a parte dominante da casa, apesar de tolhida de fazer mais pela inferioridade jurídica das mulheres e pela cultura patriarcal.  Mesmo que fisicamente as atrizes não se parecessem em nada, não havia dúvida da sintonia entre as duas.  Voltarei à mãe de Rosália mais adiante.  

A última virada de figurino de Rosália foi já na reta final da novela, quando ela passou a crer que poderia fugir de Montserrat.  As cores de suas roupas passaram a ser mais vivas, os vestidos menos fechados e o cabelo poderia aparecer em penteados meio soltos.  Só que, obviamente, a crença dos bonzinhos de que Montserrat iria deixá-los ir, isso em troca do silêncio e da submissão de Bárbara, afinal, ele era bígamo, era somente uma ilusão.  Não que o Dr. Ramos e outras personagens não tenham alertado, mas os mocinhos não pareciam capazes de ler os sinais.

Se Rosália, mesmo sendo uma adolescente, mostra uma grande firmeza de caráter e coragem, o mesmo não pode ser dito de Adriano.  Lindo, lindo, lindo na pele de Lauro Corona, apesar de ser médico formado, ter vivido na Europa, andar na última moda, a personagem em vários momentos da trama mostrou-se imaturo, julgou mal a mocinha e se deixou enredar por Paula ou por Montserrat.  Quando Rosália esperava que ele viesse defendê-la, como quando ela tomou ciência de que estava casada desde os 15 anos, ele lhe virou as costas preferindo acreditar em Paula.

Mais tarde, movido pelo ciúme e pelas ideias machistas de sua época, ele acreditou que ela era uma mulher sem moral, no incidente dos cartões.  Em alguns momentos da novela, imaginei que Adriano não estava à altura de Rosália.  Na verdade, ela merecia um Mundinho Falcão (*de Gabriela*), porque esse, sim, não se deixaria enredar pelas armadilhas dos vilões, nem se dobraria diante deles.

E eu não estou falando de sensibilidades modernas.  Pelas regras da época, Rosália tinha errado no caso dos cartões e ela percebeu isso, tarde demais, é verdade, mas reconheceu seu erro.   De resto, em muitos momentos, Adriano parecia incapaz de dar crédito para Rosália, se colocava do lado de Paula contra a moça.  E terminou aprisionado por um golpe bem urdido, Paula o drogou e se colocou em sua cama.  Os dois foram surpreendidos juntos e o mocinho, apesar de incapaz de se mexer, ficou obrigado a se casar com ela.  Esta foi a única vez em que Rosália, pelo menos durante algum tempo, não acreditou nele.  

Mais tarde, quando Paula viajou para Petrópolis, Rosália o avisou de que ela planejava algo, mas ele, como se fosse uma criança, achou ótimo que a noiva imposta estivesse longe.  Ela voltou com um filho de outro na barriga.  O que nos deixa com problemas de temporalidade, em alguns momentos, o tempo parece passar rápido demais, em outros muito devagar.    A novela termina no Ano Novo de 1904.  Retornando, o fato é que Adriano parecia bem mais imaturo que uma adolescente e enredá-lo era bem mais fácil.

Em alguns momentos, lá pelo meio da novela, Lauro Corona parecia fisicamente mais frágil e encontrei fotos que permitem perceber isso.  Acredito que ele já estivesse em luta contra o HIV e ele morreria precocemente em meados de 1989.  E como a novela dialogava o tempo inteiro com o Brasil de 1987, há uma cena em que Ramos e Adriano discutem a febre amarela, que matava impiedosamente no Rio de Janeiro do início do século, mas estavam falando da epidemia de HIV.  O que fazer?  Não havia como salvar aqueles que adoeciam.  Eles falavam de uma criança que iria perecer uns dois capítulos depois e ambos os atores pareciam muito emocionados.

A novela usou de várias situações para dialogar com o presente.  Quando acontece a grande greve liderada pelos anarquistas, e Adriano vai para as ruas protestar e se torna um traidor de classe, os slogans gritados durante o confronto com a polícia, como o "Abaixo a repressão!", estão se remetendo diretamente à ditadura civil-militar (1964-1985) que terminara fazia pouco tempo.  Se estava falando do passado para lembrar um presente doloroso e recente, vários atores do próprio elenco sentiram na pele a perseguição da ditadura e a lei de censura da época ditadura ainda estava em vigor.    

Falando nessa tal greve, se não estou errada, não houve nada daquela monta no Rio de Janeiro em 1903, Walther Negrão e seus colaboradores estavam usando como referência a greve geral de 1917, até hoje a maior da história do país.  Sim, não acredito que nenhuma outra tenha superado um movimento que paralisou São Paulo por 30 dias.  O incidente da greve foi usado na novela para fazer a trama andar, pois Adriano rompeu definitivamente com o homem que julgava ser seu pai e passou a se vestir como pobre, o que, no caso dele, queria dizer se vestir mal, sem gravata, com peças que não pareciam combinar.  Serviu, também, para colocar em evidência os vários discursos sobre a greve, os anarquistas e socialistas, a opressão dos patrões, o medo da revolução etc.  não houve personagem importante ou medianamente importante da trama que não tenha emitido opinião sobre a greve, suas esperanças, temores, raivas.

Os discursos vistos na novela eram históricos, mas faziam eco com os medos contemporâneos.  Em 1987, com o fracasso do Plano Cruzado, o Brasil passava por várias agitações, inclusive com a tentativa de uma greve geral que não obteve grande adesão.  Uma coisa que não ficou muito clara no incidente da greve foi quem a estava liderando.  Anarquistas ou Socialistas?  O movimento sindical brasileiro até mais ou menos a década de 1920, era liderado por anarquistas.  E a novela acabou esquecendo os socialistas e focando nos anarquistas mesmo.  Ramos era um dos líderes secretos da greve, Danilo, o desenhista, também estava envolvido.  ambos foram presos.  Danilo terminou sendo cegado na prisão.  

Lembro que, quando assisti criança, a sequência da tortura me impressionou bastante.  Revendo, me pareceu bem menos impactante, ainda que o drama da personagem tenha continuado a ser profundo.  Hoje, DUVIDO que colocassem discussões semelhantes em novela da Globo em qualquer horário.  Aliás, a tortura policial foi pouco mostrada, mas foi muito falada em Direito de Amar e quando os presos eram libertados pareciam machucados, mas magros, Carlos Zara teve seu cabelo raspado etc.  

Ramos em seu confronto final com Montserrat fala de suas prisões e torturas graças ao vilão.  Montserrat, inclusive, se deixa matar em duelo, pois ele era exímio atirador, como forma de vingança.  Ramos vencera, Rosália ficara livre, mas o médico não poderia ver a felicidade dela com Adriano, tampouco ter a chance de finalmente viver seu amor com Bárbara.  O final do Dr. Ramos e de Danilo (*que deixou para trás Marizé, uma das sobrinhas do padre Inácio*) é indo com outros anarquistas para o Nordeste do Brasil.  As bandeiras e lenços negros muito bem utilizados na sequência da qual eu me lembrava muito bem.

Como já pontuei, os direitos das mulheres também foram discutidos na novela e dialogavam com a condição feminina na década de 1980.  Logo no início da trama, a menina Rosália, quando estava se encontrando escondida com Adriano, fala de como a incomodava que as mulheres tivessem tão pouca autonomia na sociedade, que não fossem donas de si, que pela lei estivesse subordinadas a um homem.  São discursos possíveis no início do século?  São.  Havia feministas e qualquer mulher poderia chegar a essas conclusões sem ler uma linha sequer, bastava sua experiência de vida.

Adriano, como bom hominho mediano de sua época, assegura Rosália que jamais a obrigaria a fazer nada que não desejasse.  Que seria um marido compreensivo.  Obviamente, não deixo de acreditar, mas Rosália estava pensando em leis, em direitos assegurados a todas as mulheres e, não, na indulgência do homem que a amava. O mesmo aliás, vale para direitos trabalhistas, o patrão pode ser bonzinho, mas nunca é disso que se trata.  Mais adiante, teremos a precipitação do casamento de Rosália, com Montserrat ameaçando acusar a adolescente de adultério.  Ela não sabia que estava casada, mas estava.  Acaba sendo tirada da escola para que não veja mais Adriano às escondidas.

Montserrat não acusa Rosália de adultério, ou a obriga a ir morar em sua casa.  Poderia fazê-lo, a lei estava com ele.  Mais adiante, exatamente por causa do casamento de Rosália e do comportamento pusilânime de seu pai, Augusto Medeiros, o homem mais imprestável da novela, Leonor decide se separar do marido. Escândalo. Era possível se separar, mas os laços matrimoniais não eram dissolvidos, assim, não era permitido casar de novo.  Fora isso, uma mulher ficaria marcada e poderia sofrer retaliações sociais.  A mãe de Rosália quer trabalhar, não quer receber "ajuda" do marido.  Mulheres trabalhavam, mas não da classe social de Leonor e temos outro drama.  Mesmo qualificada, afinal, ela tinha tido uma educação esmerada para a época, ela não era contratada.

No final das contas, a mãe da mocinha se junta à Carola e as duas abrem uma loja de roupas para mulheres, uma maison de luxo.  Esther Góes e Cristina Prochaska são as duas mulheres mais bonitas e elegantes da novela, mesmo que os vestidos da segunda nem sempre estivessem caminhando direitinho com a época da história.  Através de Carola se discutem questões de gênero, também.  Ela é uma jovem mulher livre, mas perdidamente apaixonada por um homem bem mais velho (Ramos) que ela e que não lhe dá esperança alguma.  Frequenta as noites na confeitaria e não aceita ser tutelada por homem algum, mas carrega um estigma, ser filha da dona de um bordel.  

Mesmo que viva do seu trabalho, ela sabe que a origem de seu dinheiro não é honesta.  Sim, trata-se de um pensamento da época e não cabia à novela ignorar isso.  A prostituição não é mostrada como positiva na trama, ainda que não tenha um discurso de condenação, o tema nunca entrou realmente no foco.  Agora, é muito bem colocada a ideia de que uma mulher poderia ter sua moral julgada a partir das roupas  que vestia, da forma como falava, do fato de trabalhar.  O mundo era hostil com as mulheres e as dividia entre as "para casar" e as outras.

Esmeralda, que é uma personagem que se torna positiva já no inícioda novela, em dado momento da trama dá a entender que seu irmão tentou "vendê-la" e que sua mãe ficou do lado dele.  Não sabemos quais caminhos a personagem percorreu para se tornar uma comerciante bem sucedida, mas, ainda que tenha ganho a amizade do núcleo de protagonistas, ela nunca conseguiu ser vista como respeitável.  Inclusive, o pai de Rosália traiu a esposa com ela bem no início da trama e, mais tarde, quando separado, voltou a flertar com Esmeralda.  Aliás, já escrevi que o pai de mocinha era o homem mais detestável da trama?  Então, e ele ainda termina redimido e feliz com a esposa.

Ainda falando sobre dupla moral, Alice (Priscila Camargo), a mais velha das sobrinhas de padre Inácio, é uma mulher com um passado, algo que é inaceitável.  Muito rígida, usando sempre roupas extremamente sisudas, ela esconde o fato de ter se entregado ao noivo, que a abandonou logo em seguida.  A personagem passa por muitas mudanças ao longo da trama, consegue fazer uma amiga (Carola), passa a julgar menos as pessoas, mas acaba sofrendo muito por amar Nelo e ser amada por ele, mas não conseguir confessar o seu erro.  Sim, a coisa é tratada dessa forma, a novela não vai contra a moral da época que era, em parte, a moral brasileira nos anos 1980-90.  

Eu vivi em um meio no qual a expressão "se perder" era utilizada com frequência para moças que tinham tido alguma experiência sexual, que a não-virgindade de uma jovem mulher era identificada (!!!!) pelo seu andar e quadris e que sempre alguém soltava que "fulana, que não era mais moça, não poderia se casar de branco ou usar essa cor na festa de 15 anos.".  Eu ouvi várias vezes coisas assim quando era adolescente e jovem crescendo na Baixada Fluminense (Rio de Janeiro) e não somente do pessoal religioso. Mesmo que houvesse permissividade sexual, algo que vejo alguns acadêmicos (*em especial que estudam funk*) apontando ao analisar os mais pobres, tenham certeza de que as meninas e mulheres eram julgadas.  A dupla moral imperava.  

A novela fez muito bem ao situar a situação de Alice, ela foi enganada, ela errou, mas isso não a tornava indigna do amor de ninguém. Nelo a via como "pura e virginal" e demora a aceitá-la, mas o faz e se desculpa pela sua dureza.  E quem mais se mostrou compreensivo foi o pai de Nelo, Manoel Barbosa.  Como eu gosto de Elias Gleizer nessa novela!  Ele é sempre acolhedor, simpático, é uma personagem, mas Seu Manel é aquele sujeito que todo mundo gostaria de conhecer, de abraçar, enfim, ele é um amorzinho. E temos pena dele por ser tão maltratado pela filha e pela esposa, Catarina (Yolanda Cardoso). Só que, ao mesmo tempo, se a gente olha com cuidado, ele é um péssimo pai e chefe de família para os padrões da época.

Seu filho homem vive na vagabundagem.  Nelo é boa gente, todos nós sabemos disso, mas não é capaz de assumir responsabilidades profissionais.  A esposa é uma deslumbrada que o destrata o tempo inteiro e manda e desmanda dentro da casa e mesmo na confeitaria, que, a rigor, seria um espaço público e de domínio incontestável do marido.  Já Paula, bem, ela parece uma personagem feminina criada por John Jakes, autor da trilogia que deu origem à série Norte e Sul.  E estou pensando na irmã adolescente do mocinho, na época com uns 13, 14 anos, que, em meados do século XIX, saia escondida para catar uns marinheiros no porto.  Isso não entrou na minissérie, porque exigiria muita suspensão de descrença, mas algumas doideiras ficaram.  Fora outras personagens femininas estranhas que esse homem criou.

Enfim, Paula entra e sai de casa a hora que quer, assedia abertamente um homem solteiro, esculhamba o pai e viaja sozinha.  Mesmo depois de "se perder", continua agindo como antes, totalmente desconectada da realidade.  A permissividade do Seu Manuel é instrumentalizada para fazer a novela andar, eu sei, mas olhando com cuidado, trata-se de um conjunto de absurdos.  Elias Gleizer, repito, é muito simpático, mas ele é, em última instância, um dos maiores responsáveis pela desgraça dos protagonistas, porque ele é um frouxo.

E mais, a punição final de Paula, que foi má a novela inteira com uma estabilidade invejável, pois até Montserrat tinha seus momentos de simpatia e fragilidade emocional, já a vilã não tem empatia por ninguém e é punida no final, ao estilo Constância de Lado a Lado.  Seu desfecho foi uma celebração misógina por assim dizer.  E ela precisava ser punida, mas não da forma que foi.  Pois bem, explicando, Paula viaja para Petrópolis disposta a conseguir condenar Adriano definitivamente ao matrimônio. Normal, normalíssimo. Mesmo comprometido com ela por ter (supostamente) a desvirginado, o rapaz pretende escapar.  Então, resta à Paula engravidar. Se livra do seu acompanhante até chegar à casa da tia e NINGUÉM vai atrás dela, fica sabe-se lá por quanto tempo, livre, leve e solta para aprontar e ela consegue um sujeito que lhe faça um filho.

Grávida, ela investiga se Montserrat poderá retirar a fortuna do filho.  Parece improvável, há o escândalo, então, garantida está a riqueza que ela tanto deseja.  Muito bem, Seu Manoel suplica que Adriano se case e, nos últimos capítulos da novela, Montserrat dá sumiço em Rosália.  Adriano está no altar e temos um deus ex machina, um sujeito (Carlos Gregório) levanta e diz que o filho é dele e que ela prometera se casar.  Adriano, não sabemos como, pois estava absorvido por uma série de problemas, encontrara o pai do filho que sua noiva esperava e o sujeito quer casar com Paula. Quem lhe obrigaria?  Ele estaria apaixonado por ela?

Confusão na sacristia, mocinho livre e Seu Manuel aceita o casamento, porque, afinal, quer que seu futuro neto tenha um nome.  Aproveita, também, para intimidar a esposa megera, que quer salvar a filha.  É a primeira vez que se altera com ela de verdade me 173 capítulos.  Pouco importa que não conhece o sujeito e as condições nas quais a filha vai viver, ele quer se livrar de um (*ou dois*) problemas.  Como mulher, Paula pode ser passada de pai para marido, e o autor utiliza os padrões da sociedade que burlou a todo o tempo para punir a vilã.  Ou seja, quando convém, está valendo e ela tem que se submeter.  Não há nem a proposta que Manuel fez para Adriano, case com ela, dê um nome ao meu neto e pode ir embora.  

O final de Paula, que queria ser uma dama da alta sociedade, é grávida e sendo humilhada pelo marido grosseirão.  Ela aparece servindo mesas e limpando o chão.  Esse final exemplar, colocando a vilã no seu lugar, ou seja, reduzida a uma mulher pobre e submissa e que será e usada na cama, na mesa e em todo lugar, pode atender aos ódios, mas isenta os homens de responsabilidades, inclusive de agirem como homens deveriam agir naquela época.  A punição de Paula, que cometera muitas atrocidades, tinha que vir, mas não assim.  Repito, amo Elias Gleizer na novela, mas ele é péssimo modelo de pai e marido.

Encaminhando para o final, eu escrevi um post desejando um remake dessa novela, aliás, o próprio Walter Negrão parecia querer encerrar a carreira desta forma.  Revendo a trama, mudei de ideia.  A história teria que ser muito rebaixada para que pudesse se ajustar aos gostos e limitações atuais.  Como novela das seis não passaria, acredito que fosse considerada pesada até como novela das 9.

Outra coisa, Direito de Amar é uma absolutamente branca, mesmo se passando em um Rio de Janeiro pós-escravidão.  Até havia figurantes negros, mas nem os criados próximos, sem fala, eram não-brancos.  Teriam que mexer em algumas personagens, mudar sua etnia, mas, ao fazê-lo, teriam que introduzir a questão racial.  Penso fácil que Danilo poderia ser negro, o desenhista anarquista seria fácil de mudar.  Raimundo ou Berenice poderiam ser negros, ex-escravizados, talvez.  Isso tornaria seu filho, Rogério (Carlo Briani), um homem de cor, o que dificultaria sua ascensão social.  Tonica (Betty Gofman), a empregada e agregada dos Medeiros, que, provavelmente, foi trazida criança para ser companheira de brinquedos de Rosália, ou Bodoque (Tim Rescala) poderiam ser negros.  Esmeralda, se negra, traria ainda mais camadas para a personagem.  Agora, no núcleo central, não imagino como.

No caso de Tonica, cuja língua acabou trazendo para sua patroa e Rosália em alguns problemas, torná-la negra, seria um clichê.  E empregadinha negra intrometida, sem família, isolada em um ambiente branco.  Ela foi rejeitada pelo primeiro noivo, Juca (Luca de Castro), quando ele se bandeou para o lado do vilão, por ser pobre e sem classe e ele desejava ascensão social; fosse ela negra, teria um duplo estigma.  Ainda assim, repito, seria uma escolha fácil e clichê.  É incrível observar as novelas antigas e ver como, pelo menos neste aspecto, as nossas telenovelas avançaram e não foi sem luta, que fique claro.  

Estou assistindo Corpo a Corpo (1984-85) nesse momento, uma trama contemporânea, e temos uma família negra completa, de classe média baixa, mas há um clima estranho que parece sinalizar que eles não deveriam estar lá, salvo em condições muito subalternas, como a dos empregados do magnata da trama.  Sim, Gilberto Braga não sabia representar questões raciais, falei disso em um texto sobre Força de um Desejo, mas, pelo menos em Corpo a Corpo, ele estava tentando inserir as questões raciais de forma muito madura para os padrões da época.  A maioria dos autores nem tentaria.

Falei por alto do figurino.  Bem, na maioria do tempo, ele é bonito e bem cuidado, especialmente, para as personagens importantes da trama.  Alguns figurantes parecem meio desalinhados e isso ficou marcado no primeiro baile de ano novo.  Ali, houve um deslize, também.  Vestidos de baile eram decotados e Leonor aparece fechada até o pescoço.  Ficou feio?  Impossível enfeiar aquela mulher. No geral, os vestidos seguiam a silhueta eduardiana, com algumas liberdades e diferenciando ricos de pobres, mas as roupas de baixo femininas não eram nem de longe fiéis à época e quando mulheres apareciam de espartilho, ele estava sobre a pele, sem chemise.  Isso machuca e não se usava desse jeito.

Os cabelos femininos seguiam mais ou menos um padrão, vide o que eu escrevi sobre Rosália.  Mulheres solteiras e livres (Esmeralda e Carola) usavam cabelos soltos.  Bem, o normal seria as mocinhas estarem com os cabelos presos, porque a ideia era de que as adolescentes de 14, 15 anos prendessem as madeixas como sinal de que não eram mais crianças.  Paula foi exceção, no início até usou cabelos soltos, mas, depois, só os usou presos.  Já as solteiras recatadas ou reprimidas, caso de Alice e sua irmã Marinês (Luísa Thiré), que se tornaria freira, os cabelos estavam presos.  Alice começaria a usá-los meio soltos depois.  As casadas e as matronas sempre de cabelos presos.  Essa convenção não foge ao que se vê no cinema e na TV até hoje.  

Esqueci de comentar, mas Older Cazarré (1935-1992) , que parecia muito mais velho do que era (*vai que é o nome...*) de verdade, era um dublador muito importante.  Fez muitas vozes em desenhos animados e dublou o Jaiminho de Chaves.  Ele morreu tragicamente aos 57 anos, vítima de uma bala perdida que o atingiu no peito quando ele estava dormindo no seu apartamento em Copacabana. Nunca conseguiram descobrir a origem da bala. Na verdade muitos atores da novela estavam falecidos, às vezes, em uma cena com cinco pessoas, todos já tinham partido, alguns, tragicamente, caso de Lauro Corona, Older Cazarré e Rômulo Arantes.  Às vezes, dava até uma tristeza, sabe?

Concluindo, uma coisa muito boa de Direito de Amar é que as pessoas não falam como se estivessem discursando, a novela é didática, porque trás vários assuntos para a trama, sem parecer uma lição (*ruim*) de história.  Todo mundo parece ser gente de verdade. Walther Negrão fazia um trabalho muito bom com novelas de época.  As tramas mais modernas, e isso vale de Lado a Lado até Nos Tempos do Imperador, parecem muito mais preocupadas em passar lições e não em contar uma história de verdade.   Foi um prazer reassistir a novela.  Ela entrará em breve no catálogo do Globoplay.  Fico aliviada de ter terminado o texto, porque o de Elas por Elas está parado e largado em algum lugar.

Hoje, os direitos de A Noiva das Trevas e de todo o acervo de Janete Clair pertence ao SBT, a emissora tem os direitos até 2043.  Eu queria que o roteiro de A Noiva das Trevas fosse publicado, seria interessante dar uma leitura e ver o quanto do original sobreviveu na novela de Walther Negrão.  E, se você quiser informações mais detalhadas sobre a novela, recomendo o site Teledramaturgia, do Nilson Xavier.

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