segunda-feira, 22 de julho de 2024

Comentando Guerra Civl (Estados Unidos/2024): Seria um filme premonitório?

Sábado, assisti com uma amiga o filme Guerra Civil (Civil War), uma das sensações do início deste ano, porque atraiu muita gente para os cinemas, porque era uma produção de um estúdio independente e, no caso do Brasil, em especial, porque tem Wagner Moura desfilando lindo pela tela.  Estabelecidos esses três pontos, não sei se gostei do filme, ainda que reconheça que é um bom filme de ação com uma dose inesperada (*por mim*) de violência.  Talvez, exista algo de premonitório nele, mas comentaria depois do resumo da história:

Estamos em um futuro próximo, os Estados Unidos estão em uma violenta guerra civil.  O presidente do país se recusa e entregar o poder e é reconhecido como um ditador, sendo combatido pela chamada "Western Alliance", que une Texas e Califórnia, e a Florida Alliance.  Lee Smith (Kristen Dunst) é uma veterana fotógrafa de guerra e sobrevive a um atentado na cidade de Nova York, onde conhece a jovem aspirante à mesma profissão, Jessie Cullen (Cailee Spaeny).  Lee carrega muitos traumas por anos de trabalho em ambientes extremamente violentos, mas não se vê abandonando a profissão.

No hotel, ela encontra com seu antigo mentor, Sammy (Stephen McKinley Henderson), que trabalha para o New York Times e seu companheiro de Reuters, Joel (Wagner Moura), que deseja seguir para Washington DC e ser o jornalista a fazer a última entrevista com o presidente antes que ele seja assassinado, ou executado, como queiram.  O presidente afirma todos os dias na mídia que está prestes a vencer a guerra civil.  Sammy tenta  demovê-los de irem até Washington e todos decidem seguir juntos pelo menos até  Charlottesville (Virginia), base mais avançada da WF.  Joel termina decidindo levar a novata Jessie contra a vontade de Lee, que termina por assumir em relação à jovem o mesmo papel que Sammy um dia teve em sua vida.

No caminho, snipers, destruição, gente se matando por motivos indefinidos, fanáticos executando prisioneiros, gente do governo que está caindo cometendo massacres.  É mostrado, também, que o dinheiro norte-americano não tem mais valor algum e o país experimenta situações inimagináveis para a nação mais rica do mundo, como racionamento de água, alimentos e energia, além de apagões.  Com uma selvageria que vai escalando, Jessie tem seu batismo de sangue da pior forma possível e Joel consegue satisfazer o seu desejo, mas não da forma esperada.

Primeira coisa, parte das informações que coloquei na resenha, como o fato do presidente ser um ditador, não ficou claro em nenhum momento do filme, são informações obtidas na Wikipedia, uma matéria da Vulture e outra da The Daily Yonder.  Propositalmente, ou não, a ideia que o filme me passou foi de caos.  Temos um presidente que está caindo, isso é dado que o filme deixa claro, mas não se ele está mais certo ou errado que os igualmente violentos membros da WF.  O que importa, como fica claro em uma das sequências mais importantes do filme, é que se alguém está atirando em nós, a gente atira de volta, o resto não tem importância.

Agora, essa selvageria rasgada choca as personagens principais, porque é algo que elas, Joel e Lee pelo menos, estão acostumados a ver acontecendo em algum lugar da África, Ásia, ou América Latina, não nos Estados Unidos, o berço da democracia e liberdade.  Sabe a ideia do nós e eles, sendo esse "nós" os civilizados?  Então, o filme faz humor, porque eu vejo como engraçado mesmo, com essa ideia fundadora da própria cultura norte-americana.  A mesma selvageria que aparece nos flashbacks de Lee, está acontecendo nos Estados Unidos diante dos olhos deles.

Por isso mesmo, quando o grupo passa por uma cidadezinha pacata, se choca da guerra não ter chegado até lá.  Quando Joel pergunta para uma entediada atendente de loja se eles não sabem que os Estados Unidos estão em guerra.  A moça responde que sabem, sim, mas preferem ficar fora dela.  É ridículo, mas o ficar fora é garantido por sujeitos pesadamente armados no topo dos edifícios.  Sammy, na sua experiência, parece ser o único a perceber que as coisas estão piores do que aparentam estar, mas na sua necessidade de ser o primeiro, Joel se recusa a ouvir e Lee e Jessie seguem com ele.

Estou falando muito da personagem de Wagner Moura, mas a protagonista e dona do filme é Kristen Dunst em uma atuação contida e carregada, na expressão corporal e no olhar, de uma dor e trauma enormes.  Ela tornou-se famosa ainda muito jovem ao fotografar o que Jessie chamou de "massacre dos antifas(cistas)" em uma universidade norte-americana.  Mesmo contra a sua vontade, ela orienta Jessie sobre como fazer seu trabalho que consiste, segundo ela, em tirar fotos e deixar que outros façam as perguntas.

A jovem Jessie, que tem 23 anos, mas está construída para parecer mais jovem, causando contraste com Lee, vai absorvendo as lições e passando por inúmeros traumas ao longo do caminho.  Ela tem talento, Lee percebe isso de saída, mas teria o espírito de uma fotojornalista de guerra?  Agora, algo que me deixou com a pulga atrás da orelha, e não consegui resposta, é o quanto o filme exagerou ao mostrar o trabalho de jornalistas correspondentes de guerra.

Eu sabia, porque tive que ler sobre isso quando dava aula no 3º ano, que as tropas regulares, as dos Estados Unidos, em especial, isso desde a Guerra do Vietnã, pararam de levar jornalistas e fotógrafos consigo.  O que nos chega do front é propaganda oficial e quem estava vivo durante a 1ª Guerra do Golfo (1990-91) deve se lembrar de como a coisa funcionava.  Tropecei em fóruns discutindo o filme e todos que afirmavam que o filme era preciso ao mostrar os profissionais em seu trabalho citavam fotojornalistas de guerras até o Vietnã, o marco que eu tinha.  As imagens que chegaram do Vietnã ajudaram a criar uma opinião pública contra a guerra e contra os militares norte-americanos, por isso mesmo, o governo dos EUA e o Comando Militar do país decidiram limitar isso.  

Procurando, encontrei que a partir de 2003, segunda Guerra do Iraque, por causa da pressão da imprensa e outras instâncias, as tropas norte-americanas voltaram a levar jornalistas consigo, PORÉM eles e elas precisam assinar contratos que estabelecem restrições ao que pode, ou não pode, ser dito, ou mostrado. Além disso, são as tropas que decidem onde levarão os jornalistas, o que permite um certo controle das histórias que serão contadas. Entendem o que significa isso?  E, sim, continuam a existir os jornalistas independentes, mas esses estão por sua conta e risco.

Obviamente, há jornalistas cobrindo guerras de muito perto e eles e elas são vitimados durante o conflito.  Jornalistas já morreram cobrindo a Guerra na Ucrânia e a ação de Israel na Faixa de Gaza causou um número sem precedentes de profissionais da imprensa, foram 103 até março deste ano.  Ainda assim, me pergunto se eles e elas seguem com as tropas em fogo cerrado?  Por que é isso que acontece no filme.  Outra coisa, essas tropas e, no caso do filme, falo da WF, que quer derrubar o presidente ditador, aceitariam carregar jornalistas com ele que registrariam massacres e execuções sumárias?  Se a ideia é que é uma realidade distópica e  que convém desligar metade do cérebro, OK, eu entro na brincadeira, porque como filme de ação e que provoca horror e tensão, Guerra Civil funciona bem.

Agora, o filme se contradiz até ao apresentar o trabalho dos jornalistas de guerra, porque, logo no início, Lee dá para Jessie seu colete de imprensa para que ela se proteja e Joel diz para a jovem que sempre deve usar o colete e o capacete.  Só que, quando eles estão em Washington DC e debaixo de fogo cerrado, nenhum deles usa capacete.  Só os colegas da agência concorrente parecem preocupados em se proteger, porque não avançam com as tropas, e se identificar.  

Encontrei um artigo chamado Cobertura Jornalística de Guerra que termina da seguinte maneira: "A cobertura jornalística na guerra exige total atenção do profissional. É importante estar ciente que em áreas de conflitos o risco é ainda maior e, por esse motivo, é fundamental identificar o momento de interromper a cobertura e buscar abrigo em um local seguro. Afinal, a vida deve ser preservada."  Os protagonistas do filme não levam isso em consideração, não.  Há a questão da ambição de Joel, é um dado importante no filme, mas o comportamento meio suicida do grupo não se manifesta somente em Washington DC.  Quando Sammy os adverte, fica parecendo que ele age assim por ser velho e lento (*ele é muito obeso, mas a questão não é colocada em palavras*).

Dentro do filme, duas questões não importam, os papéis de gênero e a identidade racial.  Lee e Jessie não são lembradas que são mulheres em nenhum momento, elas fazem tudo o que Joel faz, ou ele faz tudo o que elas fazem, menos tirar grandes fotos de situações muito violentas.  Em nenhum momento a ideia de que Jessie poderia ser violentada (*e há uma sequência que poderia apontar para essa possibilidade*) aparece, o único medo parece ser a morte mesmo.  

O aspecto racial, e Sammy é negro e Joel latino, não vem é um problema em nenhum momento.  No caminho para Washington DC, não vemos nenhuma milícia de supremacistas brancos, nos acampamentos de refugiados todos estão juntos e as forças da WF que caçam o presidente dentro da capital é liderada por uma mulher negra.  Aliás, entre os atiradores e milicianos pelo caminho, nenhum é mulher, mas nas tropas da WF, há mulheres soldados, assim como na equipe do presidente que será deposto.

Em um futuro próximo distópico nos Estados Unidos, me parece difícil imaginar que misoginia e racismo não teriam um papel central.  É mostrada a xenofobia e por parte das forças do governo que está caindo, os soldados exigem que os jornalistas provem que são "verdadeiros americanos", ou, como o militar diz no filme, "Que tipo de americano", mas nenhum dos militares, que são todos indiscutivelmente brancos, coloca em dúvida que Joel, que é nascido na Flórida, é um deles, quer dizer, eles iriam matar todo mundo, mas a identidade latina da personagem de Wagner Moura não é uma questão.

Enfim, o objetivo do filme, e isso ele faz muito bem, é mostrar a profissão de jornalista de guerra.  Se de forma realista, ou não, não consegui descobrir, as questões que levaram à guerra civil não são importantes, porque a ideia é que o conflito brutaliza todo mundo, independentemente de que lado estejam ou no que acreditem.  Não discutir o conflito pode parecer uma covardia do filme, e tudo o que sabemos do conflito é meio que extra filme.  Querem ver?

Este mapa dos Estados Unidos estabelece como as forças em conflito estão divididas, mas ele está em material de promoção e, não, dentro da película em si.  Custava colocar um pouco mais de informação sobre a guerra civil e seus motivos dentro da história?  Por qual motivo se evitou fazer isso?  É para que a audiência fique boiando ou decida seu lado sem pesar o que está acontecendo.  Pelo mapa a divisão é a seguinte: Estados Leais ao Presidente (azul), Western Forces (verde), Florida Alliance (vermelho) e New People's Army (amarelo).  Se se falou em New People's Army no filme, perdi.  Quando à Florida Alliance, ela é citada, mas não é explicada.

Muito bem, algo que gostei bastante foi da fotografia, da forma como a beleza e o horror foram mostrados.  O uso do flashback também casou muito bem com a ação e apresentou de forma competente como Lee era atormentada pelo seu passado, pelas muitas guerras que presenciou.  Talvez, o desfecho da película fosse óbvio, mas eu terminei me surpreendendo.  E o filme não vai se preocupar, também, em julgar ninguém.  Repito, pelo filme, eu não teria como saber que o presidente era um ditador.  O filme não me disse nada e isso é um problema.

Agora, estamos em ano eleitoral nos Estados Unidos e Guerra Civil pode ser premonitório.  Afinal, se Trump não ganhar, muito provavelmente, não reconhecerá a derrota e irá inflamar seus seguidores.  Ele mesmo já falou em banho de sangue.  O candidato republicano também sinalizou que irá ampliar seus poderes, caso seja eleito, no que, provavelmente, terá o apoio da Suprema Corte do país.  Logo, a ideia de Guerra Civil de verdade não está muito longe do horizonte dos Estados Unidos.  Como se trata da nação mais importante do mundo, problema deles é problema do mundo inteiro.

Concluindo, Guerra Civil é um bom filme, com destaque para Kristen Dunst e Wagner Moura, cujo papel vai crescendo ao longo da película.  Ele tem o objetivo de mostrar como jornalistas de guerra trabalham e, não, em discutir como a guerra civil começou.  E é um filme violento, muito mais do que a média do que o cinema norte-americano costuma mostrar, mas a gente não encontra fotos dessas cenas realmente violentas do filme em uma busca, elas não foram usadas na propaganda, por assim dizer.  A depender das expectativas que você alimentar sobre o filme, talvez, possa se decepcionar.

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