segunda-feira, 22 de julho de 2024

Até queria, mas não consigo comprar a premissa de A Casa do Dragão.

 

Me deparei com esse vídeo em inglês e acabei cedendo e escrevendo este post.  Eu acompanho mais de um canal de Youtube que fala do universo criado pelo  George R. R. Martin.  Toda semana, desde a série anterior, vejo os vídeos da Mikannn principalmente, mas não só, com as reviews e tudo mais.  Cheguei até a escrever dois posts sobre a Daenerys (*1 - 2*), quando a enlouqueceram e outro quando alguém naturalizou as violências contra as mulheres dizendo que era Idade Média.  Sabe, aquele período em que se podia fazer de tudo contra as mulheres, enfim...  Para quem não sabe, sou uma medievalista aposentada e, às vezes, essas coisas me dão certo comichão.

Todo mundo que conhece mais ou menos a obra do Martin, ou está acompanhando as matérias sobre ela e os seriados, sabe que ele se inspira na História com "h" maiúsculo para escrever a sua saga.  Muito bem, A Casa do Dragão, que está no ar na HBO e fazendo muito sucesso, teve como inspiração a disputa entre a Imperatriz Matilda e seu primo Estevão pelo trono da Inglaterra. A longa guerra civil entre os dois é chamada de Anarquia (1138-1153).  O problema é que a disputa entre os Targaryen é muito diferente daquela que ocorreu na Inglaterra.  Meu post é sobre isso.

A Imperatriz Matilda, ou Maud, (1102-1167) era a única filha legítima de seu pai, Henrique I (c. 1068-1135), o rei que deve ter tido o maior número de filhos bastardos da história da Inglaterra. Ela foi chamada a vida inteira de Imperatriz por ser viúva de Henrique V (1081 ou 1086-1125), Imperador do Sacro Império Romano Germânico.  Ela não estaria na sucessão ao trono da Inglaterra se seu único irmão legítimo, William Adelin (1103-1120), tinha morrido no trágico naufrágio do White Ship, que, aliás, é o ponto de partida de um dos meus livros favoritos, Os Pilares da Terra.  Foi um acidente, mas Ken Follett transformou o caso em uma conspiração.

Henrique I correu para se casar de novo, mas não teve nenhum filho com a nova rainha.  Sendo assim, ele convocou seus lordes laicos e eclesiásticos para que eles jurassem reconhecer Matilda como monarca.  Ela mesma nunca clamaria o título de "rainha", mas de "Lady of England and Normandy", seja isso o que quiser significar.  É preciso ter em mente que Henrique I era somente o terceiro rei normando da Inglaterra, ele tentou se aproximar dos saxões, ele passou a perna em seu irmão do meio (*o mais velho morrera sem descendência*) para tomar para si o trono para si.  Ele entendia de trairagem e entendia muito bem os riscos de uma guerra civil depois de sua morte.

Depois da morte de Henrique I, parte dos lordes preferiram apoiar o seu primo, Estevão (1092 ou 1096-1154), como rei. Observem, PRIMO, não irmão. Estevão teve o apoio da Igreja Católica inglesa e Matilda atravessou o Canal da Mancha em 1139 para tomar o trono.  Atravessou o Canal, porque Matilda, contra a sua vontade, aliás, foi imposição do pai, estava casada com um nobre francês, Geoffrey Plantageneta (1113-1151), Conde de Anjou que esses lordes ingleses não queriam nem perto do trono, nem perto da Normandia.  Matilda teve três filhos homens com o Conde de Anjou e, claro, isso reforçava seu direito ao trono.

No final das contas, depois de muita destruição, Estevão ficou no trono e teve que passá-lo para o filho mais velho de Matilda, Henrique II (1133-1189). Sim, pai de Ricardo Coração de Leão (1157-1199), de João Sem Terra (1166-1216) e marido da formidável Leonor da Aquitânia (c. 1124-1204).  Se vocês quiserem um bom documentário sobre Matilda e Leonor da Aquitânia, sugiro o documentário da BBC, She Wolves England's Early Queens Episode 1: Matilda and Eleanor, conduzido pela historiadora Helen Castor, ou o livro dela, que deu origem à série.

E o que acontece em A Casa do Dragão?  Viserys se tornou rei passando a frente da prima, Rhaenys, filha do príncipe herdeiro, porque ela era mulher.  Esta manobra parece muito mais próxima do que fizeram com Matilda, só que, neste caso, a decisão foi do rei, que era avô dos dois.  Rhaenyra era herdeira do pai, porque era a única filha, mas ele casou-se de novo e teve TRÊS FILHOS HOMENS. Se a lógica era que somente um homem poderia sentar no trono de ferro e estamos em um mundo patriarcal, Rhaenyra estaria fora, ou, no máximo, passaria para o fim da fila.

Mas Viserys queria insistir na filha, ora, se ele quisesse garantir o lugar da filha de forma indiscutível, deveria tê-la casado com o tio, Daemond. Sim, eu sei que Viserys não confia no irmão, mas estamos falando de reforçar a legitimidade de Rhaenyra.  E o autor poderia olhar as formas alternativas de sucessão possíveis naquilo que a gente chama de Idade Média, em especial, nas Ilhas Britânicas.  Entre os celtas e os saxões, em especial, o trono passava de irmão para irmão.  Esgotada uma geração, aí, sim, passávamos para a outra.  Aliás, é assim na Arábia Saudita, ou era até a última sucessão.

Voltando para a insistência de Viserys com a filha, se houvesse se passado, sei lá, 100 anos desde o descarte de Rhaenys, OK, mas era a geração seguinte. Todo mundo estava vivo praticamente e ele tinha TRÊS FILHOS HOMENS com sua nova rainha.  Faz sentido?. Só se Vyserys fosse um rei louco e ele, pelo menos dentro da história do Martin, é louvado como um bom rei.  Qual rei sábio e responsável empurra o país para a guerra civil desse jeito?  Dentro da lógica da própria história, os Verdes têm razão. Não, claro, que toda essa história da sucessão tenha alguma lógica.

Enfim, é exigir de mim muita suspensão de descrença e ainda me ofendem dizendo que Rhaenyra foi inspirada na Imperatriz Matilda. Definitivamente, o que mais faz sentido nessa série em A Casa do Dragão são os dragões mesmo. Acho o design dos bichinhos bem legal e a batalha que levou Rhaenys à morte foi muito boa.  É isso.  E quem quiser um canal especializado no universo do Martin, recomendo Cala a Boca, Thiago e ele tem um vídeo discutindo a sucessão, ele sugere que a resolução seria casar a Rhaenyra com o irmão, Aegon.  Só que, dentro dessas lógicas dinásticas, que o autor usa como referência, é muito normal e aceitável casar um homem muito mais velho com uma mulher bem mais jovem, porque a possibilidade de ser um  casamento fértil existe, já o inverso, bem, poderia ser uma corrida contra o tempo.  E tem o canal da Mikannn, claro.  Ela está fazendo muitos vídeos sobre a série.

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