sexta-feira, 28 de junho de 2024

Comentando Não Chame de Mistério #1: o mangá feminino mais vendido no Japão atualmente, é uma história de detetive

Ontem, finalmente concluí a leitura do primeiro volume de Mystery to Iunakare (ミステリと言う勿れ), de Yumi Tamura, na edição da JBC.  A série, no Brasil, tem como nome Não Chame de Mistério.  Publicado na revista Flowers e contando com #14 encadernados até o momento, trata-se do mangá feminino de meio vendagem no Japão atualmente.  Sim, não é romance escola, ou qualquer romance, que muita gente acredita que é o resumo de todo mangá shoujo ou josei, é uma HISTÓRIA DE DETETIVE.  Em março de 2023, a série já ultrapassava 18 milhões de volumes vendidos. Para qualquer mangá que não seja um shounen arrasa-quarteirão, esses números são impressionantes.  Mas sobre o que é esta série?

Não Chame de Mistério é um mangá de detetive, mas não do tipo que tem como protagonista um policial, ou sujeito que sai por aí caçando bandidos.  A série é mais do tipo em que os mistérios e/ou crimes vêm atrás do protagonista, um rapaz de 19 anos chamado Totonou Kunou, que é uma espécie de detetive de poltrona (armchair detective).  O que é isso?  São "aqueles [detetives] que solucionam crimes à distância, sem visitar as cenas em que o delito aconteceu ou interrogar os suspeitos. Ao invés de ir de encontro com as cenas do crime, os detetives de poltrona descobrem os casos através dos jornais ou recontados por terceiros, do conforto de casa."

O primeiro volume começa com um one-shot, uma história fechada publicada em 28 de novembro de 2016, quando Yumi Tamura ainda estava envolvida com 7SEEDS (セブン シーズ).  Trata-se da apresentação do protagonista, acusado injustamente de assassinato e mantido na delegacia.  A série de verdade começou um ano depois com um caso em duas partes.  Estou agora entre esperar o volume #2, cuja capa já foi liberada, ou me adiantar e pegar as scanlations em inglês.  Aliás, como Não Chame de Mistério foi licenciada em vários países, as scanlations que encontrei em inglês, e não fui procurar fora do meu site de referência para leitura de scanlations, param exatamente nesta segunda parte.

Para quem não conhece a arte de Yumi Tamura, o traço de Não Chame de Mistério pode parecer estranho, mas acredito que a maioria das pessoas se acostume rápido.  Não gosto de algumas expressões faciais que ela desenha, mas é um mero detalhe que desaparece conforme a gente mergulha nas suas histórias.  Eu gosto muito de Basara (バサラ), uma das séries que ajudou a fazer Yumi Tamura famosa.  Outro grande sucesso da autora é 7SEEDS.  Yumi Tamura é vista como uma competente e premiada autora de ficção científica, mas, ao que parece, Não Chame de Mistério irá se tornar a sua obra mais importante.

Falando especificamente das duas histórias do volume, e eu não tinha lido nada da série antes de pegar a edição brasileira, confesso que a leitura da história de apresentação foi um tanto cansativa.  Com o intuito de apresentar Totonou Kunou e os policiais que serão recorrentes na série, a autora se estica demais.  Kunou é um excelente observador, tem uma audição muito apurada e se mantém calmo, mesmo sendo pressionado pelos policiais veteranos que querem que ele confesse um crime que não cometeu.

Um dos colegas de universidade de Kunou foi assassinado.  O rapaz, aparentemente, não se dava bem com ele.  Os policiais mais experientes querem acabar logo com o caso, resolver e passar a bola adiante, e algumas das provas encontradas parecem apontar para Kunou.  O rapaz, com as informações que recebe, consegue direcionar a investigação e provar, mesmo sem sair da delegacia ou ir até a cena do crime, que é inocente.  Enquanto isso, ele vai dissecando a psique dos agentes, em especial, os mais jovens, Ikemoto, cuja esposa está grávida, e Furomitsu, a única agente mulher do distrito policial e que é discriminada por causa disso.

Em muitos momentos, Kunou parece estar alheio à pressão que os policiais exercem sobre ele e se mostra mais preocupado com o curry que preparou e vai estragar, ou a hora marcada no cabelereiro.  Ele também fala demais e aparentemente é dono de uma cultura de almanaque, que usa para fazer observações que acabam sendo precisas.  No caso dele, não parece ser algo calculado para causar impacto, como no caso de Sherlock Holmes.  Kunou parece ser uma pessoa bem ingênua até e, pelo menos para mim, fica sugerido que ele é solitário e não tem uma boa relação com sua família.

Se eu tivesse somente esse primeiro capítulo, talvez não me animasse a continuar lendo.  As motivações do criminoso, o verdadeiro assassino (*que tem comportamento inexplicável, porque arma para culpar um inocente e se esforça ao máximo para que ele seja punido, como se tivesse algo pessoal contra ele*), me pareceram realmente forçadas e não gostei do desfecho dado pela autora, a lição moralizadora, mas não quero dar spoilers.  O one-shot tem uma grande preocupação em falar de família, afeto entre esposos e relação pais e filhos.  Na verdade, o foco é no comportamento ausente de muitos pais japoneses, que priorizam o trabalho em relação à família.  


Em Não Chame de Mistério, Yumi Tamura se preocupa muito com a análise psicológica das suas personagens e isso fica mais evidente no segundo capítulo, que é o caso do sequestro de ônibus.  A história abre com Ikemoto, que agora é pai, indo até a casa de Kunou, que se surpreende com a visita inesperada e inconveniente, afinal, o rapaz estava fazendo curry e pretendia sair para visitar o último dia de uma exposição sobre os impressionistas franceses.

Ikemoto conta que seguiu os conselhos de Kunou e sua relação com a esposa melhorou, mas que a chegada do bebê mexeu com a dinâmica familiar.  Kunou lhe dá conselhos e tenta despachá-lo e o detetive comenta que a policia está atrás de um serial killer.  Ele quer dicas que o ajudem a encontrar o criminoso e está disposto a dar detalhes para Kunou.  O rapaz recusa e diz que é um simples universitário, da mesma forma que se esquivou (*sem sucesso*) de dar conselhos domésticos para Ikemoto.

Muito bem, Kunou sai correndo e acaba entrando no ônibus que termina sequestrado por um sujeito que parece drogado, tem olhos esbugalhados, e está armado com uma faca.  A legislação de porte de armas no Japão é extremamente rígida, então, é o que se tem.  Dentro do ônibus temos uma amostra da sociedade japonesa atual: uma jovem dona de casa; uma jornalista; um sujeito que trabalha em meio expediente e vive sendo demitido; um desempregado; um gerente aposentado que faz serviço social; um estudante de pós-graduação; um sujeito antissocial, e Kunou, que depois descobre que pegou a condução errada.  Além deles, claro, temos o sequestrador e o motorista.

Ao longo da viagem, temos um experimento social.  Por qual motivo os passageiros não reagem?  Por que ninguém tenta fugir quando tem a chance?  Ficar é covardia?  É uma forma de solidariedade com o grupo?  O criminoso questiona a cada um deles qual o seu maior defeito, se já tiveram vontade de matar alguém e como não gostariam de morrer. Trata-se de uma parte da história que talvez deixe alguns leitores desconfortáveis e o objetivo da autora com certeza é esse mesmo. Kunou diz que não gostaria de ser assassinado e a polícia concluir (*por preguiça, imagino*) que foi um suicídio ou acidente.  No fim das contas, as intervenções de Kunou, seja usando o senso comum, ou a sua capacidade de dedução, terminam estragando parte da tortura, porque é uma tortura, imposta pelo criminoso.  

Com o passar do tempo, Kunou desconfia que o sujeito não está sozinho e, ao ir ao banheiro, porque o sujeito para em uma loja de conveniência e permite que todos saiam, cada um a se turno, descobre o motivo da polícia não estar procurando o ônibus.  Sem spoilers aqui.  E ela deveria, afinal, a jornalista conseguira, antes de ter o seu celular confiscado, enviar um pedido de socorro.  Kunou tentará avisar a polícia novamente de forma que a mensagem seja compreendida.  O fato é que quando chegamos ao final do primeiro volume, temos um gancho e é preciso esperar o segundo volume para ler o resto da história.  Sinceramente?  Isso também é uma tortura.  😆

Se vocês estão acostumados com a dinâmica das histórias de detetive, devem desconfiar que os assassinatos que a polícia está investigando e o sequestro do ônibus estão interligados de alguma forma.  Vale a pena a leitura?  Olha, não vi no one-shot nada que me levasse a continuar lendo Não Chame de Mistério, mas temos a segunda história e ela me prendeu.  A própria autora, no freetalk (*aquela conversa que alguns autores têm com seus leitores*) do final do volume sugere que foi autoindulgente, leia-se: ela chegou em um ponto da carreira no qual ela pode arriscar fazer a história que quiser, inclusive uma que dependa tanto de diálogos e tenha tão pouca ação.  E, bem, como histórias de detetive fazem sucesso no Japão, vide a longevidade de um Kindaichi Shounen no Jikenbo (金田一少年の事件簿) ou doramas como Miss Sherlock (*sim, sim, versão feminina do grande detetive e tem séries com Sherlock como homem, também*), Não chame de Mistério encontrou seu público e está aí sendo elogiada, vendendo horrores e fazendo sucesso.

Não Chame de Mistério foi indicado ao 12º Manga Taisho Award, em 2019, e ficou em segundo lugar.   Foi indicado no ano seguinte novamente e ficou em sexto lugar.  O Taisho Award tem um sistema de pontos.   Em 2019, a série foi indicada ao 65º Prêmio Shogakukan Manga na categoria geral, aquela que quase nunca premia mangás de demografias femininas, em 2022, a série ganhou o 67º prêmio na categoria geral junto com Nigatsu no Shousha.  A série foi indicada, também, para o 44º Prêmio Kodansha Manga na categoria geral, em 2020 e para  o 26º Prêmio Cultural Tezuka Osamu em 2022.  Não me surpreenderia se ganhasse algum desses prêmios nos próximos anos.

Em 2019,  a série apareceu em segundo lugar no guia Kono Manga ga Sugoi da editora Takarajimasha! para o público feminino, em quarto em 2020; em sexto em 2021; em décimo em 2022.  É muito mais do que a maioria das séries consegue e nada impede que retorne em 2025, porque, pelo jeito, Yumi Tamura pode continuar publicando esta série por muito tempo ainda.  Indo para outros rankings respeitáveis, Não Chame de Mistério apareceu em quarto lugar na lista de "Livro do Ano" da revista Da Vinci, em 2019; foi o quinto na mesma lista, em 2020; em segundo, em 2021; em quarto, em 2022; e em décimo primeiro, em 2023.  Não pense que isso é poncã coisa, não para um mangá josei que sequer tem anime.  Mas, sim, o sucesso fez com que a série tivesse dorama (2022), especial para TV (2023), ambos disponíveis no Viki, e filme para o cinema (2023).

Indo para o final, quatro coisinhas, duas sobre a edição da JBC e uma é uma impressão que tive.  Antes das críticas, um ponto, Não Chame de Mistério deve ser um mangá muito difícil de adaptar.  Ele faz jogos linguísticos o tempo inteiro.  tanto no primeiro, quanto no segundo episódio, houve a discussão dos kanjis (*ideogramas japoneses*) no nome de Kunou, seu uso incomum.  Conseguir traduzir e oferecer um texto coerente e fluído para um mangá assim deve ser um grande desafio.  Parabéns para os envolvidos.  Agora, tenho problemas com as escolhas de gírias da editora faz tempo, há gírias que são perenes, elas entram na língua portuguesa, outras, vem e passam.  Optar por colocar gírias muito específicas pode tornar o material datado rapidamente.  Mas isso é problema antigo da editora.  

Outra coisa, e não estou desqualificando o trabalho da tradutora (Amanda Diniz), mas há um deslize inexplicável.  Megumi Kashiwa é casada e é chamada de SENHORITA o tempo todo.  Não gosto, mas entendo que a editora não use honoríficos (*san, sama, chan, kun, whatever*), fico feliz que não usem senhorita/senhor/senhora como substitutos, como faziam em tempos passados, agora, casou não é senhorita.  Como deixaram essa barbeiragem passar?  Fora, claro, que a própria situação da personagem, a coloca nessa posição da dona de casa tradicional, dependente, submissa e por aí vai.  E o outro ponto, seria interessante jogar as notas para o final do volume.  Já há texto demais no próprio mangá, às vezes, usando um letreiramento muito pequeno, as notas poluem ainda mais.  Não acredito que uma folha de notas iria encarecer a obra.

Fechando, Shou Kumada, o estudante de pós-graduação, também comenta sobre os kanjis no nome de Kunou, que o que aparece no seu nome e no dele tem o mesmo som.  Não sei se Kumada volta, apostaria que, sim, mas ele está querendo mesmo a amizade de Kunou, ou estava cantando o rapaz?  Porque a impressão que tive foi essa.  Muito bem, acabou a resenha, aguardo ansiosamente o próximo volume, até para ter certeza de que estou gostando de fato do mangá, ou ele não me fisgou.  E, se alguém quiser comprar o volume, segue o link do Amazon.  Temos a acapa do segundo volume, mas acredito que não está em pré-venda ainda.

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