Sou historiadora e não poderia deixar de comentar uma data tão importante quanto o Golpe Civil-Militar de 1964. Sim, civil-militar, os principais agentes foram os militares do Exército, mas contaram com largo apoio da burguesia nacional e, além disso, contando também, com simpatia de certas parcelas da população mas, como voltarei lá no final, povo não dá golpe, é preciso dinheiro, armas e apoio internacional (*ou seu silêncio complacente*). Em 1964, tínhamos Guerra Fria, o mundo era outro, os golpes também eram de outro molde, mas sigamos.
O presidente Lula errou ao não marcar os 60 anos do golpe com cerimônias que honrassem as vítimas e gritassem "nunca mais". E falo de eventos que tivessem apelo popular, artístico e que informassem a população, não de discursos vazios de desculpas. E ao marcar que ele errou, se omitiu, não estou aqui demonizando tudo o que Lula vem fazendo, tampouco declarando arrependimentos por nele ter votado. Eu tenho como uma quase regra em minha vida só me arrepender do que não fiz. Votaria de novo, mas todo voto é crítico, não é carta branca para nenhum agente público fazer o que lhe der na telha.
Podem ver como falha de caráter, mas nessa altura da minha caminhada, eu realmente não me importo. Era Lula, com seus prós e contras, ou uma ditadura declarada, ou disfarçada. Leiam Como as Democracias Morrem, porque o livro explica direitinho como se pode brincar de democracia sem que ela exista. O fato é que se o golpe de Bolsonaro tivesse dado certo, talvez, eu não mais estivesse aqui. Mesmo gente insignificante como eu pode ser alvo, isso foi comum nos 21 anos de Ditadura e eu tenho amor à minha vida e quero estar ao lado da minha filha o máximo que puder. É pessoal, portanto, não pensem que não é.
Ao se negar a marcar os 60 anos do Golpe Civil-Militar de 1964, algo que não passou, que está aí sendo evocado pela extrema-direita e outros sujeitos que transitam pelas ruas, redações de jornais e pela internet, o presidente cuspiu no rosto das vítimas. Falo, em especial, dos familiares que não puderam enterrar seus mortos, algo que é básico na civilização, tanto quanto o fêmur cicatrizado da Margaret Mead. Solidariedade também se manifesta no direito ao luto. E recomendo que leiam Antígona, a peça de Sófocles, por favor. Não se nega a um pai ou mãe ou irmão ou irmã ou filho ou filha o direito de viver o luto. Isso é incompatível com o humano e, claro, quem deu sumiço nos corpos sabia o mal que estava causando. Era algo consciente.
No mais, o silêncio grita, quando alguém se cala, quando o Estado se cala, ele está dizendo muito sobre si, sobre como tenta se equilibrar entre sentidos e forças políticas e econômicas. Quando o governo se recusa a falar de um assunto incômodo, promover debates na mídia, colocar propagandas em todos os meios de comunicação possíveis marcando a data, ele se omite em seu dever de promover a discussão da nossa História e construir uma memória do golpe como deve e precisa ser feita. E podem apostar que outros irão lembrar e o farão com o intuito de marcar que os vinte um anos de ditadura foram um momento glorioso. Memória e memórias são seletivas, são políticas, é um lugar de disputa constante. O que lembramos e como lembramos tem a ver com quem somos como indivíduos e quais são os nossos grupos de pertencimento. Para o bem do Brasil, necessário é cuidar para que se crie uma memória coletiva sobre o golpe de 1964, é urgente, aliás.
E mais, ao não reformar os currículos das academias militares superiores, está se permitindo a formação mais uma geração de militares sem a consciência de seu papel constitucional e saudosos de algo que nunca viveram. É assim que se permite que novos golpes possam ser alimentados. E o último não aconteceu por um único motivo, os Estados Unidos disseram que não haveria golpe, diferentemente do que ocorreu em 1964.
Os que invadiram a Praça dos Três Poderes, e havia li grupos variados, inclusive gente que tinha treinamento militar, serviriam para abrir caminho para uma GLO, ali havia os que sabiam e os que estavam de arrasto. Esses últimos, continuam aí, repetindo papagaiadas sobre urnas fraudadas e outras teorias da conspiração que servem par a mantê-los mobilizados. Se você não conhece a Coluna do Garrone, recomendo muito, porque ele faz o relatório de tudo que circula nos grupos Bolsonaristas semana a semana. Eles continuam mobilizado.
A BBC está publicando uma série sobre a Ditadura e já publicou vários textos, um sobre a perseguição aos Testemunhas de Jeová, outro sobre a perseguição a Pastores evangélicos, e há um terceiro sobre a miséria detectada pelo senso de 1974-75 (coisa muito triste). Já o UOL publicou matéria sobre a perseguição ao Movimento Negro. O Metrópoles começou uma série sobre o ensino da Ditadura Civil-Militar nos Colégios Militares e, sim, leciono em um deles. Recomendo, também, que sigam no Twitter o Prof. Carlos Fico da UFRJ, quando ele chegou, eu já estava me formando, mas ele é um dos maiores especialistas em ditadura no Brasil. Ele posta muita coisa e há os livros dele, claro.
Outra coisa, ontem, assistindo um react do Humberto Matos, porque sigo o canal dele faz muitos anos, ele meio que concordou, por não ter se aprofundado no tema, com uma afirmação de que a Ditadura do Estado Novo (1937-45) foi mais violenta que a Civil Militar (1964-85). Olha, quando meu amigo, Prof. Vanderlei Vazelesk, que leciona na UniRio e é diretor da Escola de História, estava defendendo a sua dissertação de mestrado sobre camponeses na Era Vargas, estava na banca a professora Anita Leocádia Prestes, sim, filha de Prestes e Olga, além do orientador dele, o professor Francisco Carlos Teixeira. Fui aluna de ambos. Ele fez esta mesma afirmação e foi prontamente corrigido por ambos. Não gosto de fazer escalas de sofrimento, mas temos evidências suficientes da intensidade de crueldade da Ditadura instituída em 1964.
Demonizar Vargas é fundamental para levar adiante o desmonte do modelo de Estado que ele ajudou a construir lá nos anos 1930 e isso significa, claro, nos roubar direitos trabalhistas e sociais, além de condenar o Brasil a ser somente o fazendão do mundo. É isso, desculpem o texto enorme. Falar de 1964 não é falar do passado, é falar do presente. Voltarei a falar de cultura pop no próximo post. Deixo vocês com Ulysses Guimarães:
0 pessoas comentaram:
Postar um comentário