domingo, 3 de março de 2024

Comentando Pobres Criaturas (Poor Things/2023): a jornada de autoconhecimento e libertação de uma mulher.

Não consegui ainda assistir a maioria dos filmes do Oscar, tentarei fazer um esforço esta semana para conseguir ver o maior número possível dos indicados ao prêmio principal.  Comecei por Pobres Criaturas (Poor Things), novo filme de Yorgos Lanthimos, que também foi indicado a melhor diretor.  Além de melhor filme e diretor, Pobres Criaturas está indicado em mais nove categorias: Ele está indicado a 11 categorias no prêmio: Melhor Atriz (Emma Stone), Melhor Ator Coadjuvante (Mark Ruffalo), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Trilha Sonora, Melhor Figurino, Melhor Design de Produção, Melhor Montagem, Melhor Fotografia e Melhor Maquiagem e Cabelo.  Mas vamos a um resumo do filme:

Baseada no livro homônimo de Alasdair Grey e inspirado no clássico Frankenstein de Mary Shelley, a história se passa na Era Vitoriana e acompanha Bella Baxter (Emma Stone), trazida de volta à vida após seu cérebro ser substituído pelo do feto que trazia em seu ventre. O experimento é realizado por Godwin Baxter (Willem Dafoe), um cientista brilhante, mas de métodos pouco ortodoxos. Para acompanhar o desenvolvimento cognitivo de Bella, Godwin, que prefere ser chamado de "God" (deus), coopta um de seus discípulos, Max McCandles (Ramy Youssef), que deve anotar cada um dos avanços do experimento.  Só que Max termina se apaixonando por ela e isso não passa despercebido ao atento God.

Vemos então Bella se desenvolver desde os primeiros estágios do que seria uma infância até a descoberta da sexualidade.  God tenta isolá-la do mundo exterior, mas percebendo que não conseguirá mantê-la nessa condição, o cientista decide casá-la com Max e impor um contrato nupcial com uma série de cláusulas de controle. O problema é que Bella conhece Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), o advogado responsável por redigir o contrato de casamento.  Querendo conhecer mais do mundo, a jovem foge com Wedderburn, que pretendia usá-la sexualmente para abandoná-la a seguir.  

O problema é que Wedderburn se apaixona loucamente por Bella e quer controlá-la, mas a jovem mulher deseja não somente viajar pelo mundo, mas a liberdade para explorar todas as possibilidades que se apresentam diante dela.  Ela quer conhecer, aprender e experimentar, algo que o possessivo Wedderburn jamais poderá aceitar.  Em sua jornada de conhecimento, Bella se transforma de uma curiosidade, um experimento de um cientista excêntrico e abusivo, em uma mulher fascinante e capaz de tomar o seu destino em suas próprias mãos.

Assisti Pobres Criaturas em casa e em duas etapas.  É o que eu consegui fazer, mas essa experiência é muito diferente de estar em uma sala de cinema, a percepção da obra muda, também.  Pobres Criaturas é uma fábula, não é um filme realista e ainda que a gente possa inferir que a história se passa na última década do século XIX, afinal, temos automóveis rudimentares e o corte das roupas femininas, com suas saias estreitas e amplas mangas, o filme traz uma série e elementos fantásticos, como trens-teleféricos se deslocando nos céus de Lisboa.  Aliás, um dos destaques do filme é o design de produção.  O hotel em Alexandria, em especial, ficou espetacular.  

No geral, a história de Bella é uma releitura de Frankenstein.  Temos um cientista que brinca de deus, um clichê do cinema norte-americano, o que é reforçado pelo apelido da personagem de Willen Dafoe, "God".  Agora, o nome da personagem é uma homenagem à Mary Shelley, pois seu nome de solteira era Godwin.  Nessa nova leitura de Frankenstein, há o acréscimo das questões de gênero.  Temos as personagens masculinas tentando controlar e moldar uma jovem mulher segundo seus interesses.  De qualquer forma, a trajetória dessa nova monstro de Frankenstein, desde seus primeiro passos trêmulos até assumir as rédeas de si mesma, é fascinante. 

God a ama como filha, isso fica evidente no filme, mas a relação com Bella é autoritária e desrespeitosa, começando pelo fato de ter se apossado de seu corpo do jeito que o que fez.  No entanto, ele permite deliberadamente a fuga de Bella e reconhece que é direito dela buscar o seu próprio caminho.  Já Max é gentil, acolhedor, mas quer moldar Bella, enquadrando-a em comportamentos tradicionais da boa sociedade.  Se ele não fosse tão pudico com Bella, cujo interesse por sexo impulsiona sua busca por conhecimento, e tivesse  se mostrado mais interessado, possivelmente, ela não teria partido.  De qualquer forma, Max é um modelo de masculinidade que não ameaça a mocinha e, já para o final do filme, reconhece-lhe o direito pleno de escolher o seu destino.  

Mas temos alguns machos bem mais perigosos no filme.  Duncan Wedderburn estabelece com Bella um relacionamento tóxico.  Ele quer controlá-la, quer exclusividade sexual, é violento com ela, mas como Bella não foi moldada por God para a submissão e é extremamente curiosa e inocente das teias a sociedade, ela resiste, se revolta, e termina se libertando.  O outro macho horroroso de Pobres Criaturas é o marido de Bella, afinal, ela teve uma vida anterior.  E, bem, uma mulher não se suicidaria grávida se estivesse feliz.  Alfie Blessington (Christopher Abbott) é um sujeito perverso, violento, e quer privar a esposa de qualquer desejo sexual submetendo-a a uma cliterectomia, pois, para ele, o destino de uma mulher é ser mãe.  Obviamente, ele deve ser muito ruim de cama, mas isso o filme não nos diz.

Como vocês já perceberam, o sexo é fundamental na narrativa de Pobres Criaturas.  Bella começa a tomar consciência de si ao se masturbar pela primeira vez.  A partir daí, parte da jornada de descobrimento da personagem e seu crescimento e amadurecimento está conectado à exploração do prazer sexual em várias de suas formas.  O filme, na verdade, reifica o sexo, ele é central, ou deveria ser, na vida dos indivíduos e seria a chave para a libertação das mulheres.  

Os homens temem as mulheres, mais ainda aquelas que conhecem seu corpo e sabem quando estão, ou não, satisfeitas.  Isso é parcialmente verdade, mas é acima de tudo o abraçar como verdade o dispositivo da sexualidade, conforme descrito por Michel Foucault.  Um dispositivo é uma rede de discursos, narrativas e conhecimentos que se entrelaçam, recebem estímulos e encontram resistências; que constroem corpos, sentimentos, legitimam prazeres e caracterizam a culpa.  

Em Pobres Criaturas, o sexo é central, mesmo quando é imposto, quando não é prazeroso, quando é violento.  Isso fica evidente quando Bella passa a se prostituir e como a Madame dona do bordel tenta convencer a protagonista de que sexo sempre é fonte de conhecimento e até de iluminação.  Trata-se, portanto, da reiteração de que sexo é uma necessidade, é libertador, é fundamental para que um indivíduo possa ser visto como adulto e senhor de si.  O ápice da coisa é quando Bella, levada para as reuniões socialistas por sua companheira de trabalho e amante, Toinette (Suzy Bemba), diz para seu antigo amante que seu corpo é seu meio de produção.  Não espere, porém, qualquer discussão sobre libertação das mulheres, ou do proletariado, é só para reafirmar que Bella estava feliz com a vida que estava levando mesmo.

E tivemos muita nudez e sexo no filme, pegue qualquer resenha e isso estará em destaque. Nossa! Um filme adulto de verdade!  Bella é a boneca que muita gente queria ver na tela.  Eu li isso por aí (*1 - 2 - 3*), em contrastes entre Pobres Criaturas e Barbie, como se Bella fosse uma boneca mesmo, coisa que ela não é.  Mas, enfim, temos uma atriz belíssima, porque qual seria a graça em colocar uma atriz fora do padrão em inumeráveis cenas de atividade sexual com legumes, com homens e com mulheres.  Fora isso, Bella mostra as pernas andando por Lisboa sem que ninguém nessa suposta Europa de finais do século XIX visse aquilo como estranho.  É engraçado que os discursos (*Bella é repreendida por falar abertamente de sexo*) parecem chocar, assim como a grotesca mania a protagonista de cuspir a comida que não gosta, mas andar com um shortinho ou com saias curtas é normal.   

Mas o sexo do filme é grotesco em muitos momentos, assim como outras sequências, como as autópsias, ou Bella brincando com o pênis flácido de um cadáver o são.  Se nos oferecem a nudez de Stone e Suzy Bemba, todos os homens que aparecem nus são desagradáveis ao olhar, alguns mesmo deformados, mutilados.  Os homens bonitos do filme, como Jerrod Carmichael, não são despidos. Também não há nu frontal masculino evidente, além disso, nenhum dos clientes de Bella é não-branco e o único minimamente atraente e "bom de cama" é um padre, que, ao ser elogiado por ela, diz que seu talento é uma maldição.  Agora, justiça seja feita, a nudez de Emma Stone tem coerência com o roteiro do filme, gostemos do recurso, ou não, já a de Florence Pugh em Oppenheimer é absolutamente gratuita.

Todas as supostas ideias feministas de Pobres Criaturas são já vistas e batidas, claro que podem fazer alguém pensar, sempre podem  e isso não deve ser ignorado, mas é feminismo que não ofende esquerdomacho nenhum.  Assim, temos uma linda mulher sendo desnudada várias e várias vezes, nunca rejeitando os homens mesmo os mais feios, fedidos, insensíveis e violentos, e que acaba, também, na cama com outra lindíssima mulher.  Porque é aquilo, bissexualidade ou lesbianismo para deleite masculino em primeiro lugar.  Esse tipo de arranjo permite ao sujeito  se imaginar como a terceira ponta do triângulo.  

O objetivo do filme, mesmo supostamente discutindo o prazer feminino, o direito de uma mulher ao seu próprio corpo, a ruptura de ciclos de violência, é oferecer um certo deleite para o público masculino.  Aliás, em vários momentos do filme, a câmera age para dar a entender que observamos as cenas, ou Bella em particular, de forma voyeurística, pelo buraco de uma fechadura, abusando do uso de planos com lente olho de peixe.  Sobre isso, recomendo a resenha feita por Lúcia Monteiro para a Folha de São Paulo.

Caminhando para o final, lamento muito quem Willem Dafoe não tenha sido indicado a coadjuvante, porque efetivamente ele estaria no páreo, Mark Ruffalo não tem chance.  Aliás, o Oscar de ator coadjuvante tem dono, todos sabemos.  Ainda assim, seu "God" é espetacular.  Uma participação especialíssima em Pobres Criaturas é Hanna Schygulla como Martha von Kurtzroc.  Ela é companheira de viagem do jovem Harry Astley (Jerrod Carmichael).  Eles oferecem para Bella livros e ideias desafiadoras e desconcertantes fazendo com que a protagonista dê novos passos em seu desenvolvimento pessoal para desespero de Wedderburn, que quer manter a moça sob controle.  


O curioso aqui é que descobrimos na viagem que Bella sabe ler e escrever, mas não foi mostrado como ela aprendeu, quando e como God e/ou Max a ensinaram.  Também não é explicado o passado de Bella, é impossível acreditar na palavra de seu marido cruel e sádico.  É muito provável que a jovem não fosse cúmplice do marido, mas uma prisioneira.  O sujeito me lembrou muito o marido da Inquilina de Wildfell Hall.  Aliás, um cara daquele jamais deixaria de procurar pela mulher, ainda mais uma que carregava um filho seu no ventre.  Talvez, God soubesse disso, daí a tentativa de manter Bella reclusa, ou era mero controle mesmo.

Falando de Emma Stone foi  brilhante como Bella Baxter, mesmo que nos tenham oferecido um final moralista de suposta vingança feminista.  Bella inclusive perdoa e se reconcilia com seu "pai", God, voltando para casa, ainda que totalmente transformada.  E uso o termo feminista, porque o filme está sendo vendido como tal.  Feminismo, claro, imaginado por homens.  A mera satisfação pessoal em relação à vilanias que não sabemos bem a extensão (*não vou me estender aqui para não dar spoilers*) e que se restringem a um indivíduo, impactando em nada a sociedade.

Não vi o filme do Scorcese, Assassinos da Lua das Flores, mas acredito que melhor atriz está indefinido.  Lily Gladstone tem tantas chances quando Emma Stone, que deu um show, mas não está com a estatueta garantida, mesmo em um ano com tantos prêmios mais do que cantados.  Aliás, em termos de disputa mesmo, este Oscar está realmente chato e não é por termos falta de filmes bons competindo.

Concluo falando do figurino.  As roupas e Bella, porque são mais as dela que importam mesmo, são muito interessantes e com cores vibrantes, na parte colorida do filme, claro, porque ele alterna cores e preto e branco. Pobres Criaturas venceu o 26ª edição do Costume Designers Guild Awards (CDGA), o prêmio dos figurinistas de Hollywood, na categoria filme de época, no entanto, trata-se de um filme de fantasia.  Quem ganha o CDGA costuma ganhar o Oscar, só que dois concorrentes foram premiados, porque Barbie levou o prêmio na categoria fantasia.

A proposta de Pobres Criaturas é clara, pois o filme é uma fábula, e o figurino e Bella, a protagonista está longe de ser até para-realista.  Temos a mocinha andando de mini-short pela rua, com blusas sem manga, de minissaia, eu fiquei passada com aquilo.  Agora, se Pobres Criaturas caísse na categoria Ficção Científica/Fantasia enfrentaria Barbie que tem um figurino bem mais realista que o do filme com a Emma Stone.  Infelizmente, como há visível má vontade e retaliação em relação à Barbie, eu apostaria em Pobres Criaturas no Oscar de Melhor Figurino, só que é uma premiação que não separa por categorias, então, é OK, mas no CDGA a coisa ficou muito absurda mesmo.

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