Assisti O Menino e a Garça, último filme de animação dirigido por Hayao Miyazaki, no cinema com a minha filha de 10 anos. O nome internacional do filme é O Menino e a Garça, mas, no original, ele se chama Kimitachi wa Dou Ikiru ka (君たちはどう生きるか), em português "Como você vive". Apesar da presença da garça, o nome internacional não se justifica pelo andamento da própria película, mas, enfim, começo dizendo que o filme é muito bom, Ghibli é uma credencial de qualidade e, mesmo um filme mediano do estúdio, tem um nível muito bom. Fazer um resumo do filme é complicado, mas vamos tentar.
Estamos no quarto ano da 2ª Guerra Mundial e Mahito, um menino de 12 anos, se muda com o pai de Tokyo para o interior para começar uma nova vida após perder a mãe em um incêndio em um hospital. Seu pai é o dirigente de uma fábrica e se casou de novo com a antiga cunhada, que está grávida. Esse novo arranjo familiar incomoda o menino, que tem pesadelos constantes com a mãe. Em sua nova morada, Mahito começa a ser perseguido por uma estranha garça e, depois de machucar a cabeça, começa a ouvir o animal e outros animais falando como humanos.
Quando a garça falante informa a Mahito que sua mãe ainda está viva, ele entra na torre abandonada, que fica na propriedade de sua família. Os habitantes da região consideram o lugar mal assombrada ou mágico, a própria mãe de Mahito, quando criança, entrou no edifício e só foi encontrada um ano depois. Mas como não entrar se sua mãe estaria lá? Além disso, a madrasta do menino desapareceu ao entrar sozinha na floresta e ela também parece ter entrado na estanha torre.
O Menino e a Garça começa no quarto ano da 2ª Guerra Mundial. Não ficou claro para mim, se eles estavam contando a partir de 1937, quando a guerra começa para o Japão, ou 1939, ano em que o conflito explode na Europa. A temporalidade em si, no entanto, é irrelevante. A guerra é vista de longe. Mahito e a madrasta saúdam os convocados que parte para a guerra. O incêndio do hospital, provavelmente foi causado por um bombardeio norte-americano, mas nada é dito.
A fábrica onde trabalha o pai de Mahito, produz material bélico. As crianças da escola do menino são incorporadas para o esforço de guerra, pois devem trabalhar no campo. Há racionamento e as velhinhas que trabalham na mansão da família da mãe e da madrasta do menino, ficam felizes ao receberem de presente peixe enlatado.
Nada disso, porém, não impacta a história em si. Ela se passa em um outro mundo, que é paralelo ao nosso, causado pela queda de um meteoro muito tempo atrás. Esse mundo é governado por um tio bisavô de Mahito, que desapareceu por ler demais. Sim, estava na legenda, lembrei de Dom Quixote e sua loucura. Nesse mundo paralelo, há mortos e vivos, há animais antropomorfizados, a comida é escassa, daí o risco do menino ser devorado pelos periquitos. Neste mundo paralelo, estão as almas que ainda não nasceram. E há portas para outros mundos, outras temporalidades, é mais uma versão do multiverso.
É um filme bonito. Mahito entra em uma jornada de autoconhecimento. Ele precisa amadurecer. Ele precisa superar o passado. E ele precisa fazer escolhas. Salvar a madrasta? Voltar para o mundo real? Aceitar ficar e ser o novo responsável por esse emaranhado de mundos paralelos. Superar a perda da mãe e aceitar que ela sempre estará com ele. Um amigo brincou que o filme é uma metáfora para o futuro do estúdio Ghibli e mostra a péssima relação de Miyazaki com seu filho, Goro. Na leitura dele, Miyazaki seria o tio-bisavô, Mahito seria o filho do grande diretor, que resiste em aceitar o bastão que o pai-mestre quer lhe passar. Talvez seja, talvez, não.
O fato é que não é o melhor filme do estúdio que eu já assisti, mas foi o primeiro que vi no cinema e a animação é tão bonita, a música é tão sensível, tudo é tão poético, que dá um quentinho no coração. Mesmo revendo os mesmos tipos que frequentam a obra de Miyazaki, vide as velhinhas um tanto disformes, pequenininhas e encurvadas. Aliás, como Kiriko, uma das velhinhas, era tão alta quando jovem e ficou tão pequena depois? Nunca saberemos.
O Menino e a Garça pode ser visto por crianças e adultos, ainda que eu não recomende para as muito pequenas. Júlia, que já tem dez anos, riu em vários momentos, se mostrou interessada e discutiu bastante o que viu em tela. Ela quer pelúcias das alminhas (*esqueci seus nomes*) que aparecem no filme. Aliás, o que foi feito dos não-nascidos? Elas foram destruídas no final? Júlia ficou muito preocupada com esse detalhe.
Tanto minha filha, quanto eu, achamos que o filme poderia ser um pouco menor, ele se estica demais na sua parte final. Também concordamos que a cena final foi muito seca, muito abrupta. Faltou alguma coisa ali. Um problema da projeção, que um amigo disse que aconteceu também na sessão em que ele estava em outro estado do Brasil, é que a imagem estava cortada em cima e embaixo. Não sei o motivo, nunca vi algo assim, e foi bem desrespeitoso mesmo. Houve certos detalhes da dublagem que me pareceram estranhos. A menina, que viria a ser a mãe de Mahito, diz que seria bom morrer (*queimada*), quando o menino lhe conta o seu futuro. Como assim, será bom morrer queimada? Alguma coisa se perdeu aí.
Outra coisa, me surpreendeu no filme a rapidez com que o pai de Mahito se casou de novo e engravidou a esposa. A mãe do menino morreu no terceiro ano da guerra, o filme abre nos informando isso, e Mahito e o pai se mudam para o interior no quarto ano do conflito. Quando chegam na vila, Natsuko já está caminhando para o final da gravidez. Como o pai de Mahito enviuvou , casou de novo e engravidou a nova esposa tão rápido? Foi problema de dublagem? Eles eram amantes antes? Estranho... De qualquer forma, há um velho ditado que diz que "Viúvo é quem morre.".
E reafirmo que o nome "O Menino e a Garça" não faz muito sentido. A garça, que me parece ser um youkai, tem destaque, mas a relação de Mahito com Kiriko (*a velhinha e a pescadora*), com a mãe em sua versão menina, são tão ou mais fortes do que a dele com a garça. Na verdade, o youkai-garça tem uma função cômica. E, bem, se Mahito não tivesse se ferido de propósito para não ir para a escola, ou não trabalhar no esforço de guerra, não sei bem o que é, talvez boa parte da aventura não teria acontecido. Afinal, ao quebrar a cabeça e provocar um sangramento digno de Cavaleiros do Zodíaco, o menino começa a ouvir as vozes dos animais e dos seres mágicos que o espreitam. "Está vendo, Júlia? Isso que dá não querer ir para a escola!".
Concluindo, não se sabe se este é o derradeiro filme de Hayao Miyazaki, ou se ele sairá de sua aposentadoria novamente e nos oferecerá uma nova obra carregada de poesia e beleza. Se o fizer, será bem-vindo. O Menino e a Garça está indicado ao Oscar. Ganhou o Globo de Ouro e o Bafta, perdeu o Annie Award para a continuação do Aranhaverso. O filme do Homem-Aranha levou outras premiações também. O Menino e a Garça pode levar o Oscar, mas eu não diria que é o favorito. O que pesa contra o último filme do Homem-Aranha é o fato de ser a primeira parte somente, a segunda ainda está por estrear. Será que é o ano de Miyazaki? Vamos esperar.
3 pessoas comentaram:
Essa história do Miyazaki com o Goro acho que não tem nada a ver com esse filme. Nem com outro. Você pode até dizer que filmes do Goro falam sobre a relação dele com o pai, mas não o contrário.
Também não acho que a mãe do Mahito morreu em um incêndio causado por bombardeio. Pelo que me lembro não havia nenhuma sugestão sobre isso na cena, foi apenas um incêndio ocasional.
Aliais, falando sobre isso, essa primeira parte do filme foi tão boa!
Pareceu algo bem não-Miyazaki, com pai safado, família não convencional, menino protagonista não tão certinho, mas infelizmente virou um "Viagem de Chihiro" e abandonou tudo isso, se tornando um filme cheio de elementos convencionais. O Mahito que eu estava empolgado vendo as ações dele assim que ele entrou na torre se tornou aquele tópico protagonista estoico e certinho. As cenas estavam cheias de informações não explícitas, mas que você podia perceber e especular prestando atenção, foi tudo trocado por caprichos mágicos e incompreensíveis.
Na mente do Miyazaki deve fazer sentido, mas depois de nos mostrar aquele início maravilhoso pareceu uma fraude no fim.
Para não dizer que não comentei nada que preste, esse filme é "muito japonês" no sentido de que tem muita referência e inspiração a histórias e autores japonês que ninguém por aqui é familiar.
Muitas cenas são referências direitas a livros que o Miyzaki leu quando novo e o que tudo significa em conjunto para ele é impossível de dizer.
Algumas cenas são difícil de entender sem saber dessas referências, como a mudança de comportamento do Mahito antes de entrar na torre.
O livro que o Mahito lê logo antes do sumiço da madrasta é o livro que dá título ao filme. É um livro sobre ética e moral. Há um capítulo em que um grupo de amigos faz um pacto de se unirem para de defender das agressões de um grupo mais velho na escolha. O protagonista abandona um amigo durante uma dessas agressões e por sentir vergonha por ter traído o amigo e medo da reação deles ele para de ir para escola. A lição de moral é sobre aceitar e conviver com o erro passado que ele não pode mudar, e ter coragem de conviver com a consequência desse erro e força para nunca repetí-lo. O Mahito se identifica com o personagem, ele estava agindo como um covarde com a madrasta. O Mahito estava pronto para ir conversar com a madrasta e fazer jus ao nome dele (homem verdadeiro/sincero) quando ela some, por isso ele estava tão desesperado em encontrá-la.
O filme parece assumir que você tem conhecimento de algumas dessas referências, mas quem tem? Você apenas entende que a história que ele leu no livro teve algum efeito nele, mas não as nuances que são importantes.
Queria muito que o filme tivesse um outro final, aquele final repetido é o grande responsável por essa opiniões insatisfeitas.
Se tivesse uns 2 minutos a mais deixando mais claro o que final aconteceu, sobre o que foi a história eu não estaria aqui hoje insatisfeito tentando entender as intenções do Miyazaki.
Panino, obrigada pelo comentário.
Eu realmente não acompanho os rolos do Miyazaki com o filho. Coloquei o comentário que um amigo fez no Facebook. Pode ser que faça sentido, pode ser que não.
Eu também gostei muito da primeira parte do filme, foi tudo muito bonito, poético, mas a reta final da película me pareceu longa demais e abrupta em seu final. Um filme desigual, enfim. E ainda quero saber o que aconteceu com as almas dos não-nascidos. Minha filha fica brincando dizendo que acabou a humanidade.
Quanto ao incêndio, para mim, foi bombardeio, sim. Terceiro ano da guerra, a contar de 1939, os EUA já estavam no conflito. E a guerra está lá o tempo todo no filme, como um pano de fundo.
E obrigada por explicar o livro. Acredito que as ideias presentes nele poderiam estar mais claras no filme. Aliás, o título o Menino e a Garça não me agradou.
Pergunta, na sua sessão havia o corte na imagem, também?
Pra mim, foi o filme mais estranho e inconstante do Ghibli que eu já vi (embora ainda tenham dois na lista pra eu ver).
Realmente o começo parece mais interessante, mas do meio pro fim, deu uma balançada e o protagonista meio que mudou sem muita explicação.
Talvez a idade tenha finalmente pesado sobre o Miyazaki.
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