Terminei de assistir Anatomia de uma Queda (Anatomie d'une chute), foram três dias vendo fragmentos do filme que, em linhas gerais, segue a mesma ideia de um dos meus contos favoritos de Sherlock Holmes, A Ponte de Thor. Se você conhece a história, e achei o conto on line aqui, você já sabe como termina Anatomia de uma Queda. O fato é que a morte em si, causada pela tal queda, que pode ser vista como metafórica, também, é o de menos. O filme conseguiu se destacar pelo seu roteiro, muito bem construído e que deve levar o Oscar hoje, e por discutir de forma muito contundente questões de gênero e sexualidade. Vamos ao resumo do ponto de partida para o filme? A resenha será curta, porque preciso tentar assistir ainda mais um, ou dois, dos indicados. Não devo conseguir, claro, mas vale a intenção.
Sandra (Sandra Hüller) mora com o marido, Samuel (Samuel Theis), e o filho de onze anos, Daniel (Milo Machado Graner), em um "modestíssimo" chalé de três andares nos Alpes franceses. A casa é isolada, a estrada para chegar até lá é estreita. Abrimos o filme com Sandra, que é uma escritora de sucesso, dando uma entrevista para uma universitária interessada por seu trabalho. A conversa, no entanto, não vai longe, porque Samuel coloca uma música altíssima (*e muito irritante*) para tocar no terceiro andar. "Ele está trabalhando", diz uma constrangida Sandra e termina marcando nova entrevista com a jovem em Grenoble, dias depois.
A cena muda e temos Daniel, que ficou cego aos quatro anos por causa de um acidente de trânsito, saindo para passear com Snoop, o cachorro da família. Quando os dois retornam, encontram Samuel morto na neve em uma poça de sangue. O menino grita pela mãe, que se torna, automaticamente, a única suspeita da morte do marido. Mas seria mesmo um assassinato? Não poderia ser um acidente ou suicídio? Somente uma investigação cuidadosa pode levar a uma conclusão, ainda assim, outros fatores também serão levados em consideração no tribunal, onde a conduta doméstica e sexual de Sandra será colocada em questão.
Anatomia de uma Queda venceu o festival de Cannes e chega ao Oscar com muitas premiações, uma delas o de melhor roteiro no Globo de Ouro. Como fiz com Pobres Criaturas, assisti em casa e não o assisti de uma vez só. Isso acaba comprometendo a minha percepção do todo. Imagino que, no cinema, a angústia diante do desenrolar dos acontecimentos fosse muito mais intensa. Eu identifiquei três atos muito claros no filme. O primeiro ato é meio arrastado e angustiante, cobrindo a morte de Samuel e o início da investigação, assim como as primeiras orientações da defesa e uma questão dolorosa, pois Daniel poderia ser influenciado pela mãe, então, a Justiça cogita em tirá-lo de casa.
No fim das contas, o menino fica em casa, evitando novo trauma, mas uma policial (Jenny Beth) estaria presente ao lado dele o tempo inteiro. Sandra fica proibida de falar em inglês com o menino. Vincent (Swann Arlaud), um dos advogados e que parece ser amigo de Sandra, recomenda que ela fale em francês no tribunal o tempo inteiro, também. Se já é suspeita, imagine ter seu status de estrangeira lembrado o tempo inteiro? O fato é que a língua era usada para a comunicação geral na família. Sandra não é fluente em francês, sua língua materna é o alemão, e conheceu o marido em Londres. Já o menino parece dominar inglês e francês com fluência, mas ninguém é visto falando alemão no filme. Aliás, a minha única crítica à Anatomia de uma Queda é que eu imagino que uma pessoa nervosa, angustiada, com raiva, tenda a reverter para a língua materna, nem que seja para xingar. Sandra nunca faz isso.
O segundo ato do filme é o julgamento. Sandra precisa enfrentar a corte e sua vida doméstica e sexual é devassada. Uma gravação feita por Samuel na véspera de sua morte de uma briga entre os dois é exposta na corte. Temos parte flashback, parte só o áudio. Assim, temos o recurso de ver os rostos e olhares na corte, inclusive do menino Daniel, que insistiu com a juíza para que o deixasse assistir ao julgamento. Na gravação, Samuel a culpa por suas desgraças, o livro que nunca escreveu, a falta de apoio quando do acidente do filho, o fato de cuidar do menino integralmente, assim como dos afazeres domésticos. Ele exige que Sandra interrompa sua carreira para que ele possa escrever.
Sandra se recusa a ceder e aponta que o marido abandonou o emprego por escolha, assim como foi uma imposição dele que fossem morar na França e que o filho fosse educado em casa. Ela também aponta que o tal livro já estava sendo escrito quando se casaram, ela não é responsável pela insegurança dele, ou seu sentimento de fracasso. Por fim, o marido a acusa então de adultério e de se impor mesmo na cama, assim como de obrigá-lo a falar em inglês.
O fato é que a gravação é redondinha para servir de peça de acusação. Sandra parece aos olhos da corte e, em especial, dos profissionais homens que estão presentes (perito, promotor, o psiquiatra de Samuel) uma mulher-monstro. E com um agravante, ela traiu o marido com outras mulheres. Pouco importa que Sandra diga que ele estava ciente das primeiras traições e que não se importou, que foram no ano do trágico acidente do menino, ou que a última, que foi meramente sexual, ele só descobrira por ter invadido o seu celular. O que importa é que ela é uma mulher sem compaixão e que foi procurar sexo por não ter em casa. Uma mulher que não se deixou arrastar para o fundo do poço junto com o marido e que não abriu mão da carreira, ainda que tenha cedido em outras coisas.
Samuel se sentia emasculado por uma situação na qual ele mesmo se colocou e que não é diferente da ocupada por muitas mulheres. A inversão de papéis parece aumentar a fúria do promotor (Antoine Reinartz) contra Sandra. Se é inegável o fato dele ser depressivo, é fato, também, que ele nunca conseguiu superar uma culpa pelo acidente de Daniel. Ele não foi buscar o menino na escola, era responsabilidade dele, delegou a função e o pior aconteceu. Uma das partes mais emocionantes desse segundo ato, e que nada tem a ver com questões de gênero ou de sexualidade, ou misoginia, é quando Sandra fala da deficiência do filho dizendo que queria que ele tivesse uma vida plena e que as limitações fossem compreendidas como o que são, fatos que estão lá, mas que não podem determinar o destino do menino. Ao que parece, o pai discordava também nisso. O homeschooling é sintomático disso.
O terceiro ato mostra o desfecho do caso. Aqui, são peças chave Daniel, e o jovem ator Milo Machado Graner é muito competente, e o cachorro. Messi é o nome do cachorro que interpreta Snoop e o doguinho é o ator mais competente do elenco. a cena em que ele "morre" foi muito desafiadora para o animal e ele teve que treinar dois meses para executá-la com precisão. Infelizmente, sua presença foi vetada na cerimônia do Oscar quando, na verdade, deveria receber um prêmio especial. Injusto, muito injusto mesmo. Como se a presença do cachorro fosse mudar votos que já estão contados.
Não vou explicitar o destino de Sandra. O que importa, no fim das contas, é o percurso feito pelo filme. Como o crime, porque é um crime, sim, é dissecado, a anatomia da queda em si. Só que a queda não é somente do corpo de Samuel, mas de um homem que não conseguiu superar o acidente do filho e foi ladeira abaixo, inclusive tentando arrastar sua companheira com ele. Sandra, por outro lado, não abandonou o marido, nem o filho, mas não queria abandonar a si mesma. O arranjo matrimonial dos dois certamente não era justo, mas para ambas as partes. No final do filme, algo que me pareceu frustrante foi ver o clima entre Vincent e Sandra se adensar e não termos nem um beijo entre os dois. Não falo de romance ocupando tempo de um filme que já é enorme, nem de sexo, mas de uma troca de afeto que me parecia bem-vinda.
Anatomia de uma Queda está indicado a vários prêmios no Oscar que ocorrerá hoje: Melhor Direção, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original, Melhor Edição e Melhor Filme. Justine Triet é a única mulher indicada em direção, ela merece, mas certamente está lá para cumprir cotas. Ficou feio não indicar nenhuma mulher, mas, este ano, havia pelo menos três merecedoras, escolheram uma e temos quatro homens. Para a Academia deve ser suficiente. Eu sempre acho muito estranho indicarem um filme e deixarem de fora seu diretor ou diretora. Ela não vai ganhar, na verdade, acredito que levará roteiro original. Melhor atriz, mesmo com o desempenho brilhante de Sandra Hüller, deve ir para outras mãos.
Triet assina o roteiro com o marido, Arthur Harari. Ambos militam na causa da igualdade de gênero no cinema e ela é muito crítica as reformas da previdência e a política cultural do governo francês. Há quem defenda que Anatomia de uma Queda não está indicado a Filme Internacional, onde seria favorito, por perseguição politica mesmo. Enfim, a gente sabe como essas coisas funcionam, vide o ano em que deixaram de indicar Aquarius como candidato brasileiro ao Oscar. Bem, bem, isso não impede que a gente assista ao filme e recomende.
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