domingo, 4 de fevereiro de 2024

Comentando a Primeira Fase de Renascer: Definitivamente, é uma nova novela e vai muito bem até o momento

Ontem, foi o último capítulo da primeira fase de Renascer.  Como eu tinha me proposto, assisti todos os quinze capítulos, acredito que amanhã ainda haverá uma primeira parte do episódio fazendo a transição para os dias atuais, devo dar uma olhada.  Agora, estejam atentos que a nova versão pegou quatro capítulos e pouquinho da original, e multiplicou por mais de três.  

Muita coisa, mas muita coisa mesmo, foi criada, desde personagens, como o Coronel "Pica-Pau" Firmino (Enrique Diaz) até sequências completas, diálogos, a maioria muito bons e abordando patriarcalismo, hipocrisia religiosa, machismo etc.  E não pensem que foram diálogos vazios, eles faziam sentido dentro da trama.  O tom de algumas personagens foi mudada, também, o que impactou diretamente a primeira parte e terá efeitos, precisa ter pelo menos, na segunda.

Começo por este ponto.  A Morena de Uiliana Lima e o José Inocêncio (Humberto Carrão) tiveram embates esganiçados e eles começaram bem antes da morte de Maria Santa (Duda Santos).  José Inocêncio sempre tratou Morena com patadas, com falta de empatia pela sua dor, ela perdeu um filho e, aparentemente, ficou estéril, e a mulher de Deocleciano (Adanilo Reis) nunca dobrou a espinha, enquanto seu marido sempre foi subserviente.  Nessa versão, dos empregados que parecem amigos (*mas continuam sendo empregados*), é o excelente Jupará (Evaldo Macarrão) quem ainda tem alguma coragem de dizer uma ou outra verdade para o coronelzinho que finge que não é coronel.  

Enfim, eu peguei a sequência em que José Inocêncio vai buscar o filho enjeitado, que está sendo milagrosamente amamentado por Morena, e o José Inocêncio de Leonardo Vieira tem um tom totalmente diferente da arrogância e desprezo de Humberto Carrão na mesma sequência.  Leonardo Vieira mostrava mais sofrimento e menos ódio e era mais romântico, também.

A Morena de 1993 não precisa se insurgir, porque ela não foi tratada como "árvore seca", ou humilhada pelo patrão de seu marido.  É tudo muito diferente, porque, inclusive, o novo autor, Bruno Luperi teve muito mais tempo para trabalhar.  Se no caso de Morena, a personagem é outra, com mais espaço, com mais personalidade, o coronel Belarmino de Antonio Calloni, dividindo os holofotes com o coronel Firmino, perdeu um pouco da sua importância.  Enrique Diaz talvez tenha sido mais marcante e eu lembro mais de Belarmino falando dos dois burrinhos da melhor qualidade levados pelo pai de Maria Santa do que de seu bordão, "É justo, é muito justo, é justíssimo.", eternizado por José Wilker na primeira versão.  

É aquilo, foram dois vilões, os holofotes tiveram que ser divididos e, consequentemente, alguém saiu perdendo.  O curioso é que Firmino e Belarmino deixam a novela no mesmo capítulo e, ainda assim, a novela continuou rendendo muito bem.  E eu cheguei a me emocionar de verdade em dois momentos.  O primeiro, quando Deocleciano considera uma benção que seu filho vivesse 3 segundos (*depois, em outro capítulo, ele fala 1 segundo*) e enterra o filho com as próprias mãos.  Agora, quando ele chega com o bebê João Pedro e entrega para Morena como um substituto, eu cheguei a chorar.  Eu respeito muito obras que me fazem chorar e que não são montadas somente para isso.

A longa sequência do parto de João Pedro, todo o drama que resultou na morte de Maria Santa, foram excelentes, também.  Não me fizeram chorar, não é disso que eu falo, porque vejo muitos problemas ali, mas volto a isso daqui a pouco, mas pelo uso do  realismo fantástico.  A barganha de Maria Santa com a Virgem Maria, afinal, ela sabia que seu bebê estava morto.  A luz que vai embora, mostrando que a santa estava presente, o bebê que volta a mexer, o nascimento e, por fim, o encontro com o marido que exigira que Jacutinga (Juliana Paes) escolhesse salvar a mãe. Houve quem se perguntasse de que morreu Maria Santa.  

Gente, ela fez um acordo com a santa, as velas do altar se apagam exatamente para marcar a partida da mãe-mártir.  E, não, não vou discutir a apologia do sacrifício feminino, da maternidade como destino.  Estava na novela original e tudo foi muito bem conduzido.  O foco inclusive se desloca da mãe para a relação do marido enlutado e possessivo com o filho que ele passa a odiar.  Santinha aparece como uma presença benigna, ela volta para proteger seu filho, para apoiar Morena.  E eu fiquei encantada demais pelas atuações, texto e direção para fazer qualquer crítica feminista destruidora, me permitam baixar as armas um pouquinho.

Por outro lado, eu não consigo deixar de pontuar que tudo isso aconteceu em meados dos anos 1990.  Na novela original, estávamos nos anos 1960.  Não ter pré-natal, médico e por aí vai no sertão de Ilhéus em um momento de emergência é OK.  Agora, nos anos 1990?  Repito que essa imagem de Nordeste é tão idealizada que compromete a coerência em alguns momentos.  Eu teria sugerido ao autor que colocasse José Inocêncio acatando o pedido de Maria Santa, ela queria o parto feito por Jacutinga, mas mandando buscar uma equipe médica inteira que, por algum motivo, não conseguiria chegar em tempo.  Era o mínimo que ele deveria fazer.  Isso se ele não tivesse um jatinho particular e pista de pouso em sua fazenda.

Outra coisa, José Inocêncio pediu à Virgem, a Deus, mas não recorreu em nenhum momento para o seu diabinho que salvasse Maria Santa.  Sempre que me lembro das novelas clássicas de Benedito Ruy Barbosa (Paraíso, Pantanal e Renascer) em que o diabinho engarrafado está presente, a figurinha sempre me pareceu um engodo do coronel para impressionar os ignorantes e assustar os inimigos, mas nesse remake, José Inocêncio parece acreditar de verdade, quis colocar o diabinho do lado da Virgem no altar, conversa com ele com frequência e tudo mais.  Por qual motivo não pediu ajuda então, se ele creditou o diabo como seu salvador em vários momentos?  Enfim... 

Ainda falando de Maria Santa, seu primeiro parto foi muito interessante, porque Jacutinga agiu como doula-parteira.  Foi um parto bem humanizado, com banheira e tudo mais.  Por qual motivo o último parto da personagem foi tão convencional, não sei.  Falando em Juliana Paes, sua Jacutinga foi brilhante.  Eu fiquei realmente impressionada com a forma como a personagem foi bem construída, os diálogos, até o figurino mesmo.  Se a primeira fase fosse mais longa, acredito que as calças boca de sino e outros adereços usados por ela poderiam virar moda.  Faz tempo que personagem de novela não lança moda, acho.

Como alguém comentou no Twitter, se quiserem fazer um remake de Tieta, não precisam procurar a protagonista.  E nao estou pedindo remake, não!  Acredito que uma nova Tieta sofreria com a autocensura da emissora, prefiro que fique como está.  Falando ainda em Jacutinga, a atriz já aparece envelhecida nas cenas dos próximos capítulos.  Não gostei, mas foi somente uma cena.  O ideal seria mudarem a atriz.  E antes que alguém lembre que Fernanda Montenegro foi Jacutinga nas duas fases, ela foi ligeiramente rejuvenescida na primeira e foi muito rápido e ela não fica muito tempo na segunda fase.  Claro, salvo se houver mudanças.

Falando em temas espinhosos.  O do pai que abusa das filhas foi mantido e Fábio Lago, que é um grande ator, conseguiu passar todas as contradições da personagem.  Ele nos causou repulsa, mas duvido que tenha gerado tanta raiva quando Humberto Carrão nos dois últimos capítulos da primeira fase.  A dúvida se ele tinha, ou não, abusado de Marianinha, a irmã mais velha de Maria Santa, foi tirada nessa versão.  E Belize Pombal, atriz que fez a mãe das duas moças estava muito bem, sua interpretação foi tão sofrida, seu olhar de morta em vida.  Agora, eu teria pensado em duas pequenas mudanças, Quitéria poderia largar o marido e voltar para a filha.  Ou talvez esteja bom como ficou, afinal, o papel de mãe de Maira Santa, inclusive lhe dando a educação sentimental e sexual que a jovem não tinha, foi ocupado por Jacutinga.  E Marianinha poderia voltar de alguma maneira.

Falando em educação sexual, a situação de Maria Santa pode ser lida com nossos olhos de hoje sem problemas.  Vivemos em um Brasil no qual a extrema-direita religiosa e/ou oportunista tenta impedir que informação chegue até as crianças, tenta garantir que pais e mães não precisem mandar seus filhos à escola.  São medidas que, lá no fim da linha, além de impedirem a socialização das crianças e a formação de um espírito cidadão, permite que abusadores possam ter a certeza da impunidade.  Maria Santa foi vítima de muitos abusos e vivia na ignorância, sua mãe sofria calada e não tinha condição de instruir e proteger as filhas e uma delas terminou alvo de predadores.  O pai, com certeza, mas possivelmente também Belarmino.

Na novela, Maria Santa acredita que engravidou com um beijo.  Recentemente, uma menina teria engravidado por usar a toalha do padrasto, ou assim a criança e 12 anos foi levada a acreditar.  Quem mandou ela usar o que não era seu?  Por mais absurdo que possa parecer, há quem efetivamente possa acreditar em coisas assim, especialmente, se isso lhe servir para aliviar a consciência.  Falando em abusos, houve quem louvou a mudança na cena do beijo entre José Inocêncio e Maria Santa.  Na novela atual, a moça está se banhando no rio e é surpreendida por Inocêncio, ele vira de costas, ela se veste, os dois se beijam.  A moça é ativa na cena, ainda que inocente e com medo.

Em 1993, Maria Santa tenta escapar do beijo do rapaz, ela está completamente vestida até o pescoço, ainda que com o cabelo molhado.  Ela tenta fugir e ele a derruba e a beija.  Muita gente elogiou a mudança, porque ela colocaria na cena a ideia de consentimento.  A Maria Santa de Patrícia França era muito mais passiva e carregada de terror, não somente por si, ela temia pela vida do homem que já amava.  Agora, qualquer um que estivesse atento, não teria dúvidas que ela desejava o beijo, mas é preciso lembrar que, na novela original, o encontro entre o casala ocorria no final dos anos 1950.  

E algo que a cena mostra bem é que apesar do beijo impetuoso, e esse tipo de coisa faz parte das novelas e do material romântico em geral, em nenhum momento José Inocêncio se deitou sobre Maria Santa.  Há contato entre seus lábios, mas não entre seus corpos.  É um beijo muito respeitoso, quase um ato de adoração, do que o que vimos em 2024.  A versão nova teve todo um apelo sexual que estava ausente da primeira versão.  E veja que quando se trata de apelo sexual, aquela época era imbatível.  

Enfim, Renascer 2024 não é a mesma novela de 1993.  Ainda que a linha geral da trama tenha sido a mesma, que diálogos tenham sido preservados, que algumas cenas tenham os mesmos enquadramentos, há o peso autoral de Bruno Luperi e da nova direção.  É outra novela, mas que traz um texto denso, que não se viu obrigada a criar cenas corridas como vídeos do Tik Tok.  A lentidão da trama não significou enrolação, ou foi preenchida com longas tomadas da natureza.  O capítulo da morte de Maria Santa foi praticamente todo centrado no parto de João Pedro e aconteceu muita coisa mesmo girando em torno de um único acontecimento.  A passagem de tempo do início do capítulo foi uma inovação muito bem vinda com a música de Gal Costa e os acontecimentos cotidianos sendo mostrados de forma corrida, mas poética.  

Vejam que não precisaram recorrer ao clichê do letreiramento sinalizando anos que se passaram, ou mesmo mudar a caracterização das personagens para apontar seu amadurecimento, ou envelhecimento.  Por exemplo, o José Inocêncio de Leonardo Vieira ganhou um bigode para marcar que o tempo passara.  Foi tudo muito bonito e poético.  E o elenco, no geral, dos grandes nomes aos pequenos estavam todos muito bem.  Humberto Carrão não tem o mesmo efeito sobre mim que Leonardo Vieira, mas é ridículo comparar dois José Inocêncios tão diferentes.  Carrão conseguiu mobilizar uma série de sentimentos ao longo desses poucos capítulos, foi de herói ou anti-herói a sujeito odiável em todos os aspectos.  O Nilson Xavier fez um comentário ótimo no Twitter sobre termos um Alexandre para um remake de A Viagem.  Realmente, estaria perfeito.

Vi muita gente elogiando o desempenho de Duda Santos, cuja atuação e muito diferente da de Patrícia França, também, em comparação com sua personagem anterior em Travessia.  Não vi nada da novela de Glória Perez, mas acompanhei seus problemas.  Olha, um bom ator, ou atriz, só precisa de um papel de qualidade, mesmo que pequeno, e uma direção competente e segura para brilhar.  Às vezes, é triste ver ótimos artistas tendo que fazer das tripas coração para transformarem papéis medíocres e minimamente gostáveis.

E é isso!  A primeira fase da nova Renascer foi lindíssima.  Há público para novelas com bons diálogos e que não apelam para a correria.  Há gente que sabe escrever um bom texto e a Globo deveria dar para Bruno Luperi a oportunidade de estrear como autor solo.  Obviamente, não gosto de ver o horário das nove carregado de remakes, mas acredito que essa Renascer não vá decepcionar no geral, ainda que, é preciso lembrar, a segunda fase seja outra novela e que terá desafios próprios a superar.  Eu fiz um texto sobre o primeiro capítulo da novela, para quem quiser ler, ele está aqui.

4 pessoas comentaram:

O calcanhar de Aquiles da segunda fase de Renascer em 1993 foi Mariana, personagem que traumatizou Adriana Esteves na época.

Vamos ver como a atriz Theresa Fonseca vai se sair nesse desafio como a Mariana no remake.

A primeira fase foi maravilhosa, com uma qualidade como há muito eu não via em uma novela da Globo. Não assisti à versão original de Renascer, mas a atuação do Humberto Carrão aqui foi excelente e não deixou nada a desejar. Me surpreendi bastante, visto que não gostei da performance dele em Todas as Flores. Enrique Diaz e Fábio Lago seguem como dois dos maiores monstros da teledramaturgia brasileira - esses dois podem fazer o papel que for que estarei acompanhando e aplaudindo de pé. Belize Pombal eu não conhecia, mas me deixou completamente sem fôlego. Monumental. Enfim, estou curiosa para ver se a qualidade se manterá nesta segunda fase, ainda que o Marcos Palmeira como protagonista não me anime muito... Veremos.

Voltando aqui pra comentar e fazer coro com o que você disse sobre o Bruno Luperi: que dêem chance a ele de escrever um projeto original e que pare de remendar os textos do avô. Na primeira fase, a gente desconfiava que talvez muitas das (boas) mudanças vieram do que fora escrito por Benedito e cortado na edição pelo Boni, mas na segunda fase, temos o material na íntegra para avaliar. Discordo fortemente de algumas mudanças, como a Buba trans e o pastor Lívio, mas inegavelmente Luperi tem voz própria e merece a oportunidade de escrever algo só dele.
A despedida da jacutinga na nova versão é tão mais linda e significativa para a personagem, o texto poético:
https://twitter.com/jnascim/status/1758878041957138614?s=19

O rei do gado, é uma novela que espero que não inventem de fazer um remake, vão trocar a segunda guerra pela guerra da Ucrânia? Terra Nostra é possível, mas acho que Luperi merece mais!

Julio, oi!

Eu tinha visto a cena da Jacutinga. Eu continuo acompanhando os comentaristas da novela, como o Zamenza, no Twitter. Ficou muito bonita. Acredito que o desempenho da Juliana Paes como Jacutinga possa fazer crescer um coro de um remake de Tieta. O que, em um horário das 23h, até poderia ser OK, mas se fosse como novela das 21h, provavelmente, seria alvo da autocensura da emissora. A Bispa tem metido o dedo em tudo.

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