Tenho uma série de posts começados e nunca terminados, um deles sobre uma polêmica criada no final de novembro quando repostei no grupo do Shoujo Café do Facebook um cartoon que tentava "consertar" outro, um muito famoso de um/a artista chamado sortimid. Como a discussão continua pertinente, aliás, ele será importante ainda por muito tempo, deixarei registrado no arquivo do blog, que tem mais de dezoito anos, e não vou jogar o que escrevi com o sangue quente fora, mas vou deixar minhas reflexões e descobertas posteriores aqui.
Enfim, acredito que a maioria já viu este cartoon que abriu o post. Uma mulher, um tipo que é chamado de bimbo, palavra que resumidamente significa "mulher jovem atraente, mas estúpida. uma pessoa tola, estúpida ou inepta.", encontra um livro e passa por uma transformação. Alguém poderia pensar "o conhecimento liberta", mas o que temos é uma mudança radical, a mulher perde altura e deixa de ser loura. A bimbo não precisa ser loura, mas normalmente é.
Lourice pode significar várias coisas, como juventude, inocência, beleza, mas, graças principalmente ao cinema norte-americano (*não começou aí, que fique claro*), passou a ser signo de burrice, futilidade e até de disponibilidade sexual. Há um livro maravilhoso que discute esta questão, Da Fera À Loira, da Marina Warner, ela começa nos contos de fada e chega aos nossos dias. Está esgotado, mas deve ter para baixar por aí e, claro, dá para comprar caro na internet. A bimbo então é, normalmente, uma mulher pouco inteligente, loura, com um corpo atraente e roupas reveladoras que estimulam o desejo sexual masculino.
Além do que já descrevi, a moça se torna morena, mas deixa de ser artificialmente bronzeada, outro signo de futilidade, troca as saias por calças compridas, as cores berrantes das roupas desaparecem em favor de cores neutras e prende o cabelo. Uma transformação completa talvez em um estereótipo de nerd, mas como não há os óculos, talvez não seja isso. De qualquer forma, houve quem lesse esta transformação como o efeito do "feminismo", roubando o sex appeal de uma mulher, ou mesmo uma conversão religiosa. Ainda que eu não tenha conhecimento de qualquer linha cristã (ultra)conservadora que condene a lourice conquistada à base de cosméticos e permita as calças compridas para as mulheres.
O bom do cartoon feminista (*e há várias releituras deste cartoon*) que relê o original é que ele não vai discutir os sentidos presentes na obra de sortmid, mas apontar que as mulheres são diversas e que sua aparência, a roupa que vestem, não definem seu valor social ou inteligência. Não existe somente um tipo de mulher que lê, ou um só tipo de leitura válida. No demais, uma das lutas feministas é para que as mulheres não sejam rotuladas e definidas pelo olhar masculino, aquele que vai estabelecer quais são as mulheres "más" e as "boas", as para "casar" e as "outras".
E esse sentido atribuído à lourice não fica restrito ao Ocidente. Alguns devem lembrar do mangá Peach Girl ( ピーチガール), que a Panini nunca terminou de lançar. A protagonista, Momo, tinha um problema, seu cabelo era naturalmente louro e sua pele ficava bronzeada muito rapidamente (*com os devidos exageros do mangá*). A protagonista saiu da equipe de natação da escola para tentar se bronzear menos, se privando de algo que gostava de fazer. Como havia, lá nos anos 1990, a moda das Gals, a menina, que era pura e virginal, era abordada por assediadores e rotulada de puta. O motivo? Muitas gals se prostituíam para ter dinheiro para cosméticos, itens de grifes caras e para fazer o tal bronzeamento artificial.
Enquanto isso, Sae, a antagonista, tinha sua pele branca como a neve e cabelos negros cortados de forma kawaii. O modelo japonês de beleza. Ela não tinha a aparência "vulgar" de Momo, e uso o termo, porque é a leitura que o cartoon suscita e é o que estava em discussão em Peach Girl, também. Sae fingia-se de "moça de família", mas tinha uma vida sexual muito movimentada e difamava Momo pelas costas e, com o andar da história, abertamente. As máscaras caíram, e ninguém pense que o mangá era uma peça moralista, mas essas discussões estavam lá. Não se deve ler um livro pela capa, eu diria que o problema de Sae não estava em sua vida sexual, mas na forma perversa como interagia com Momo em busca de vantagens e popularidade.
Mulheres não deveriam se deixar colocar em prateleiras, como produtos disponíveis de consumo, sempre em benefício dos homens, tampouco deveriam atacar outras mulheres com o objetivo de se valorizar nesse mercado dos afetos. Curiosamente, nas minhas andanças para entender como o cartoon foi recebido, acabei por chegar a um artigo que aponta um movimento de empoderamento a partir da bimboficação, esvaziando o sentido daquilo que ele tem de pejorativo. Mas não vou me desviar, porque isso daria outra discussão. Enfim, procurando na internet, por causa da discussão no Facebook do Shoujo Café, vi que não fui eu somente a identificar como o cartoon era machista, talvez mesmo misógino, e que ele causou polêmica desde o seu lançamento.
sortimid (*tudo em minúsculo mesmo*) é um artista especializado/a em bimboficar não somente mulheres, mas, também, homens, sua arte é fetichista e erótica, e estou descrevendo, não há nenhum juízo de valor. Arte erótica existe e é tão legítima quanto qualquer outra. Para quem quiser conferir é só olhar a página de sortimid no Deviantart (*+18/NSFW*). Esta ilustração foi sua primeira tentativa de fazer o inverso e ela chamou a atenção para além da bolha do/a artista. Achei também mais de um artigo da época do cartoon, ele é de 2017. Houve quem não viu problema no desenho, mas o/a próprio/a sortimid veio até o Twitter defender sua arte e afirmou-se feminista. O que, cara leitora, não isenta ninguém de estar equivocado. Como a polêmica continuou, o/a artista decidiu reconhecer que tinha cometida um erro, que sua arte tinha sido, sim, sexista. Segue o trecho:
“Muitas pessoas estão compreensivelmente chateadas com esta imagem. Nunca foi minha intenção fazer uma proclamação sexista, mas parece que, inadvertidamente, fiz exatamente isso. (...) Acredito firmemente que as mulheres devem ser livres para parecer e agir da maneira que quiserem. Mantenho essa posição nos comentários da imagem desde o momento em que ela foi postada. Esta imagem não é uma afirmação, destina-se a satisfazer a perversão de um cliente. Sinceramente, não esperava um público fora da comunidade pornográfica de transformação. Se eu ofendi você, peço desculpas.”
No texto acima (*não o da imagem, o destaque anterior*), ele/a afirma que a imagem era uma encomenda de um cliente, arte pornográfica, e que não deveria ter saído da bolha. Só que, ao postar na internet, você não tem mais controle nem do material, nem da atribuição de significados. O mais importante, eu diria, é que sortimid deixou claro que uma mulher pode se vestir e se comportar como desejar e isso não define o seu valor.
Para quem acredita que estudar, adquirir conhecimento, se tornar uma mulher culta, obriga alguém a deixar de usar as roupas que deseja, ou mudar seus gostos e hobbies, parar de ir ao cabelereiro, se bronzear, ou o que quer que seja, tenha certeza que a sua visão é muito limitada e pautada em ideias discriminatórias. Em uma sociedade patriarcal e machista, os homens se dão ao direito de nos rotular, de se apropriar de nós e nos ofender e, claro, o julgamento de nossa suposta moral sexual é sempre um alvo perfeito.
Infelizmente, o que saltou os olhos na discussão no Facebook em novembro passado foi uma percepção clara de que vários dos que comentaram, bem mais de duas centenas de pessoas tentaram entrar no grupo e eu li o que escreveram antes de lhes negar o acesso, crê de fato que uma mulher precisa se enquadrar em determinados estereótipos para ter o direito de ser respeitada. É isso, ou ela não presta, é e será sempre puta e uma puta é um ser que ocupa o lugar mais baixo da sociedade na visão de muitos homens e de várias mulheres. Afinal, para ser vista como boa mulher, você precisa apontar o dedo para as outras acreditando que, no fim das contas, você será sempre tratada como diferente, aquela que não é igual as outras. Não se iluda, menina, você é mulher e em uma sociedade machista e patriarcal, mais cedo, ou mais tarde, um homem irá lhe lembrar do seu devido lugar.
De resto, o conhecimento, que nunca será completo e/ou absoluto, não obriga ninguém a assumir uma determinada embalagem. A pessoa pode, sim, mudar, mas esta transformação se liga muito mais a um desejo de aceitação em um meio ao qual não pertencia antes, seja ele socioeconômico, intelectual, religioso, do que o acesso em si ao conhecimento. A mudança vem por uma necessidade, calculada, ou não, de pertencimento. Enfim, queria deixar registradas as minhas reflexões um tanto rasas sobre o dito cartoon. Abaixo está o texto que comecei a escrever quando as coisas estavam fervendo no Facebook. É mais um compêndio dos comentários feitos por lá e que foram, em sua maioria, bloqueados e deletados.
[No dia 21 de novembro, repliquei no Facebook e em outras das minhas redes sociais uma versão de um famoso cartoon do/a artista sortimid. Aliás, só descobri a autoria ontem, porque, enfim, o post no Facebook viralizou de tal forma, que atraiu uma atenção absurda para o Shoujo Café. Não sei o que fez com que o post bombasse a ponto de gente começar a recebê-lo como sugestão, se foi a imagem em si, ou os primeiros comentários, mas o fato é que toda a espécie de zumbi daquela plataforma acabou indo parar no Shoujo Café e eu tive que moderar, excluir e banir várias pessoas por toda sorte de discurso de ódio, grosseria e até burrice concentrada, porque estou velha demais para ficar dando palco para maluco, já basta os que fazem parte do meu entorno e com os quais preciso conviver.
Para se ter uma ideia, um alucinado queria postar um comentário dizendo que quando os esquerdistas entram em um grupo legal, ele se estraga. Ora, eu sou a criadora do grupo e sua moderadora principal. Houve, claro, as ofensas misóginas de praxe, me chamaram de puta, porque toda mulher um dia será chamada de puta, e de burra, claro; houve o hominho que veio querer me explicar a origem grega da palavra misoginia, a figura que disse que sortimid era mulher e que, por isso, não podia ser misógina. Esses são os vermes de sempre, os que habitam os chans e outros esgotos da rede. Usou a palavra "lacração", já está acabado para mim, é ban, block e tudo mais que eu puder usar.
Agora, tivemos outras contribuições. As moças, todas mulheres, que vieram dizer que o quadrinho era religioso e falava da ação do espírito santo na vida de uma mulher. Sim, Deus não gosta de louras bronzeadas e prefere as mulheres morenas e de cabelo preso. O problema é que sortimid faz arte erótica, o/a artista mesmo diz isso. Não era bem da salvação da alma de uma mulher que se estava falando ali. E uma dessas moças carolas usava como foto de perfil uma imagem de anime com uma faixa "100% Jesus", mas na header (cabeçalho) tinha uma foto do seu decote, ou seja, colocava Jesus na frente e as peitolas para jogo, como a primeira moça do quadrinho. Eu, que tenho uma formação religiosa muito conservadora MESMO, considero esse comportamento religioso cristão freestyle no mínimo uma vergonha.
E, claro, tivemos uns dois ou três dizendo que o quadrinho não era misógino, porque um homem na mesma situação seria igualmente discriminado (*certamente, seria chamado de puta... Confia!, como diz minha filha de 10 anos.*), um rapaz chegou a ir além e enfiou que só com a queda do Capitalismo as coisas iriam mudar e lascou a falar de revolução. Esta ponte realmente me escapou.]
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