Esta semana, assisti Farha (فرحة) e preciso resenhá-lo. Ele está na Netflix e, provavelmente, não vai ficar lá por muito tempo. Farha, que significa alegria em árabe, é um filme jordaniano que mostra a experiência de amadurecimento forçado de uma menina de 14 anos durante a Nakba. Se você não sabe, os palestinos e árabes chamam de Nakba, que significa tragédia, a expulsão em massa da população palestina de territórios que acabaram formando o atual Estado de Israel entre 1947 e 1949, mas particularmente em 1948. Vou deixar um resumo do filme e seguirei com a minha resenha:
Farha (Karam Taher) é uma garota de 14 anos que mora com o pai, Abu Farha (Ashraf Barhom) uma espécie de prefeito da vila e um homem muito respeitado e influente, em uma vila Palestina. Estamos em 1948, mas a grande preocupação da menina é que está se aproximando a data limite para que ela possa ser matriculada na escola feminina da cidade. Sua amiga de infância, Fareeda (Tala Gammoh), estuda lá. O pai de Farha está dividido entre mandar a filha única para a cidade e seguir a tradição e casá-la assim que ela menstrue a primeira vez. A família de Fareeda vem visitar a vila para o casamento de uma das companheiras de infância de ambas as meninas e Farha fica feliz em rever Fareeda e, ao mesmo tempo, apreensiva com a decisão do pai.
Depois de alguma resistência, o pai comunica à Farha que ela poderá ir para a cidade estudar, mas a felicidade da garota dura pouco, porque começa a Nakba e a vila se divide entre os que precisam ser evacuados (idosos, mulheres, crianças) e os que estão dispostos a ficar e lutar. O pai de Farha decide enviá-la com a família de Fareeda para a cidade, mas a menina resiste, desce do carro e diz que quer ficar com o pai. O patriarca, então, lhe dá uma adaga e a tranca na despensa da casa, dizendo-lhe que espere por ele, que voltará para buscá-la, mas ele nunca retorna e das frestas de sua prisão-refúgio Farha assiste fragmentos de batalha, a traição e atrocidades que foram cometidas contra os civis.
Farha foi o primeiro longa metragem dirigido e roteirizado por Darin J. Sallam, cineasta jordaniana de raízes palestinas e, segundo a própria, é baseada em uma história real de uma menina que conseguiu sobreviver à Nakba e chegar sozinha até a Síria. A história dessa garota chegou até ela contada por sua avó materna.
O filme é muito bem dividido em três partes. A primeira mostra uma menina privilegiada, muito amada pelo pai viúvo (em algum momento se fala em madrasta doente em algum lugar, mas ela não é mostrada) e que tem uma visão muito clara sobre o papel que as mulheres devem ter na sociedade. Seu sonho é estudar e voltar professora para a sua vila e fundar a primeira escola para meninas do lugar, já que somente os garotos têm uma escola. Ela enfrenta o pai, ela questiona o professor de Alcorão, que orienta Abu Farha a não enviá-la para a escola, ela rejeita os avanços do primo, e provável futuro marido, que diz que sua mãe mandou perguntar se é verdade que ela não sabe cozinhar.
O filme, em situação normal, poderia ser construído todo em cima do amadurecimento de Farha, da dinâmica entre os que se opõe a sua ida para a escola e os que apoiam, como o tio que mora na cidade e aparece em uma determinada cena. Poderia mostrar a primeira menstruação, a angústia e a vitória final com o pai a enviando para a escola, ou terminar com Farha professora voltando para casa. Nada disso, porém, é possível. A adolescência da menina foi interrompida pela tragédia, seus sonhos foram esquecidos diante da realidade extremamente violenta.
Há ficção, mas o que vemos no filme bate com as memórias sobre a expulsão dos palestinos a partir de 1947, quando a ONU decidiu pela criação dos dois estados, e agravada pela retirada dos ingleses em 1948. Este evento, aliás, é mostrado no filme, a partida dos britânicos antecede o início da limpeza étnica, porque foi o que ocorreu, para criar um Estado de Israel o mais homogêneo - no sentido de ser um estado judeu, não de ser um estado branco, que fique claro - possível.
Pensando sobre a partilha da Palestina, que era uma região, não um estado nacional, ninguém perguntou aos palestinos a sua opinião. Uma região outrora marcada por uma diversidade étnica, cultural e religiosa foi artificialmente desmembrada e os palestinos ficaram entre partir, resistir e/ou se submeter, porque há palestinos que têm cidadania israelense. Os palestinos acabaram joguete entre as grandes potências, e EUA e URSS concordavam na partilha, os interesses das nações árabes, que recusaram qualquer negociação, e o avanço sionista sobre suas terras. Pensando em termos liberais, a propriedade privada seria um direito natural, a dos palestinos nunca foi respeitada. E, algo que eu sempre faço questão de marcar, salvo pela Jordânia, que concedeu cidadania para boa parte dos refugiados palestinos, nos demais países árabes, eles permanecem sem estado, apátridas, isto é, eternos esternos refugiados.
O filme, enquanto está focado na discussão sobre a educação, sua primeira parte, mostra também as diversas opiniões entre os homens palestinos sobre a guerra que se aproxima. Porque é conversa de homem e de adultos, Farha ouve por trás das portas somente, pega trechos das conversas quando vai servir alguma comida e bebida. O pai da garota é um homem importante e influente, jovens guerrilheiros vêm pedir seu apoio na luta de resistência e ele se nega. Abu Farha acredita que as nações árabes irão derrotar os judeus e garantir os direitos dos palestinos. Isso não aconteceu e, tampouco, a maioria desses países árabes, que trabalharam também para acirrar o conflito, deram aos palestinos uma dupla cidadania que pudesse tornar sua vida menos miserável depois da expulsão.
A segunda parte do filme é o início dos combates e a resistência de Farha em deixar o pai. Algo importante no filme é a forma como ele constrói o laço entre pai e filha. Farha é a filha querida de seu pai e este não é apresentado como um patriarca abusivo. Na verdade, ele é similar a tantas outras representações de pai conservador, mas que faria tudo pela felicidade das filhas, inclusive, passar por cima de suas crenças. Obviamente, este tipo de representação, e podem pegar Downton Abbey, porque é o mesmo modelo de pai, só é possível quando somente existem filhas, elas são o receptáculo do amor e das expectativas de um patriarca que não tem um filho homem.
O pai de Farha quer casá-la não somente por ser o caminho tradicional, mas para protegê-la. Ele, como líder político, em um momento de conflito sabe da precariedade da sua vida. Ele precisa garantir que Farha terá quem a proteja. Por isso, a ideia de casá-la com o primo é uma forma de garantir que ela terá um marido e uma família estendida que possa lhe dar suporte caso as coisas se tornem piores. Por amor, no entanto, ele decide mandá-la para a cidade, mas nada disso se concretiza. E ele a tranca, como um tesouro, como única saída para garantir sua segurança, sua vida até. O problema é que ele não pode garantir que irá voltar.
A terceira parte do filme é a espera de Farha e como ela assise impotente o que acontece do lado de fora. Logo de cara fiquei imaginando como ela iria sobreviver sem água. Mas chove e ela consegue coletar água da chuva. O filme é realista o suficiente para mostrar que a menina precisa urinar e que é necessário criar um espaço separado dentro da despensa para isso. As paredes tremem durante a batalha, mas a casa, assim como a formação de Farha é sólida e elas resistem.
É durante essa parte do filme que acontece o grande momento de crueldade que certamente foi o detonador da crítica de autoridades israelenses à película. Uma família palestina se refugia na casa agora abandonada de Farha, são duas filhas, o pai e a mãe grávida e ela dá à luz a um menino. No meio da tragédia, o nascimento de um filho homem é comemorado pelo patriarca, mas eis que chegam soldados judeus e ninguém irá sobreviver.
Um detalhe dessa parte é a figura do traidor, um palestino que vem com um capuz na cabeça e passando informação aos soldados. As resenhas que encontrei apontam que o sujeito é o tio ocidentalizado de Farha, eu confesso que não consegui identificá-lo. Montando a resenha, encontrei um artigo de opinião na Al Jazeera comentando como a figura do informante é usada como justificativa para a derrota palestina. Parece que se trata de uma representação muito forte e que serve para culpabilizar os palestinos pela sua própria desgraça. O informante, como o artigo da Al Jazeera aponta, pode, e não raro é, também ser uma vítima, um prisioneiro que trai para salvar outros e carregará a culpa para sempre.
Fora isso, pelo menos no filme, parece tratar-se de uma crítica, o sujeito se afastou das tradições, de seu povo, e acabou sendo usado contra ele. É uma ideia reacionária e que pode, inclusive, invalidar o desejo da própria Farha de estudar. Fora isso, nenhuma sociedade é estática, a própria região da Palestina, o Crescente Fértil, sempre foi uma região de passagem e de trocas, de idas e vindas de povos desde a mais remota antiguidade. A ideia de isolamento como forma de preservação da pureza, contradiz toda dinâmica das relações humanas, fora isso, as culturas não são estáticas.
As autoridades de Israel que se pronunciaram sobre o filme viram a película como propaganda de algo que nunca existiu, neste caso os massacres da Nakba, mas eles são documentados e isso é uma bobagem, o que falta sobre o acontecimento são filmes, e difamação dos soldados israelenses. Olha, as milícias sionistas na Palestina existem desde os anos 1920, eles lutaram para proteger comunidades de judeus, eles lutaram para expulsar palestinos de suas terras, eles lutaram contra os britânicos, explodiram, inclusive, um grande hotel em seu maior ato. O Irgum (1931-1949), por exemplo, era considerada uma organização terrorista e não era a única. Em 1948, vários dos seus membros se integraram ao exército de Israel. O que esperar desse pessoal?
Com o fim da 2ª Guerra, guerrilheiros que resistiram aos nazistas foram para a Palestina, também. Era gente muito brutalizada pela guerra. Imagine o que a mobilização desse pessoal na construção de um Estado para os judeus pode ter produzido. Cerca de 700 mil palestinos foram expulsos, fora os mortos, os desaparecidos. Agora, vejam que essas tragédias são culpa do Imperialismo e o que ocorreu na partilha da Palestina não é muito diferente da repartição da Índia, que criou o Paquistão, e fez com que massas humanas, mais de 10 milhões de pessoas, tivessem que se deslocar. Gente que por gerações tinha vivido em um determinado lugar precisa sair, porque, agora, aquela terra não deve/pode mais ser habitada por hindus, ou muçulmanos. Se fala pouco da Nakba, mas se fala pouco da maioria das tragédias produzidas pelo imperialismo.
Voltando ao filme, ele é extremamente tenso, nesta terceira parte mais ainda. A menina vendo tudo das frestas da porta e o nosso olhar é o dela, o objetivo da direção é esse. O fato do informante a reconhecer e se calar. O choro do recém-nascido abandonado à própria sorte e chorando por horas e horas. É uma sequência tétrica. A menina menstruando sozinha pela primeira vez e sabendo que precisava conseguir sair da despensa, ou morreria. Não é uma película fácil de digerir, mas é necessária. O olhar feminino que conduziu o filme produz uma obra única que entrelaça a entrada na vida adulta e e a guerra sob a perspectiva de uma menina, que se faz forte e, ainda assim, continua frágil. E há cenas belíssimas, seja na sua poesia, seja na crueza mesmo.
Recomendo muito Farha, mas há um problema. Está na Netflix, mas somente com legendas em árabe e inglês. Nunca vi isso. Deveria ter a dublagem em muitas línguas e as legendas variadas que TODO programa da plataforma tem. A única explicação que eu vejo é o fato do filme ter enfrentado uma campanha feroz. A própria diretora falou da campanha, das ameaças e ofensas que recebeu. E ele não chegou à seleção final do Oscar, mas foi exibido em Israel, o que gerou reações de membros do governo. Citando a matéria da Veja:
"“É uma loucura que a Netflix tenha decidido transmitir um filme cujo propósito é criar um falso pretexto e incitar contra os soldados israelenses”, disse em um comunicado o político e ex-ministro das Finanças de Israel Avigdor Lieberman. Além disso, afirmou que analisaria a retirada do financiamento estatal do cinema Al Saraya, na cidade de Jaffa, que exibiu o filme. O ministro da Cultura do país, Hili Tropper, também se pronunciou, argumentando que Farha traz “mentiras e difamações” e que a exibição em solo israelense era uma vergonha. O gerente do estabelecimento defendeu a liberdade de expressão da arte, em resposta."
Aqui, quero marcar algo que muita gente, neste momento em que Israel está bombardeando a Faixa de Gaza como reação ao ataque de Hamas no 7 de outubro, quer negar: por mais complicada que seja a dinâmica do Estado de Israel, há liberdade de expressão. Se ela não é respeitada, e temos um governo de extrema-direita com presença forte de religiosos por lá, há reação da sociedade civil. Há resistência. Há vozes dissonantes. E eu duvido que elas fossem ter a mesma capacidade de se fazer ouvir em países vizinhos.
Sim, muita coisa complicada sobre os palestinos, Israel, o Hamas, enfim, vem sendo dita nas últimas semanas, mas o texto aqui é sobre Farha e sugiro que corram para assistir, ou busquem um torrent, porque deve ter. Trata-se de um filme feminista em alguns aspectos e que busca dialogar com o momento histórico passado e presente de forma muito competente.
1 pessoas comentaram:
Gostei da sua resenha, quero assistir e que pena que não tem em português. Mas legenda em inglês eu consigo entender. Vou procurar. Ana Luiza.
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