Acabei de assistir ao filme Cassandro, cinebiografia do lutador mexicano, de mesmo nome, criado por Saúl Armendáriz. Cassandro foi o primeiro luchador exótico, que se recusou a assumir o papel de vilão e alívio cômico, além de ter assumido publicamente a sua homossexualidade. Trata-se de um filme que fala de empoderamento, representatividade e se foca no Cassandro vitorioso, encarnado de forma magnífica pelo ator Gael García Bernal. O resumo do filme é o seguinte:
No final da década de 1980, o lutador gay Saúl Armendáriz (Gael García Bernal) mora com a mãe, Yocasta (Perla De La Rosa), em El Paso, Texas. Ele ajuda a mãe nas suas costuras e entregas de roupa que ela lava e passa para fora, além de trabalhar em outros empregos que pagam muito mal. Durante várias noites por semana, Saúl cruza a fronteira para Ciudad Juárez, no México, onde participar de lutas de lucha libre. Ele luta como El Topo, cuja função é perder para o lutador local mais importante.
Insatisfeito, sua vida começa a mudar quando ele até conhece, Sabrina (Roberta Colindrez), a lutadora Lady Anarquía, que se torna sua treinadora e lhe sugere que ele deveria competir como um exótico. Só que um exótico, lutador que se monta como uma drag queen, é sempre o vilão, sempre derrotado. Saúl termina por aceitar a proposta, mas ele não quer ser coadjuvante, não quer ser sempre o perdedor, ele quer vencer, ele quer brilhar e é isso que ele irá conseguir.
Esta resenha terá duas partes, na primeira, irei comentar o filme em si. Na segunda, irei pontuar o quanto Cassandro se afasta da sua personagem original. Começando, independentemente de sua fidelidade à história do lutador Cassandro, o filme do diretor Roger Ross Williams é bem redondinho e se ancora em excelentes interpretações. Temos o uso dos flashbacks de forma muito afiada, sempre pontuando a estrutura familiar complicada de Saúl. Seu pai lhe incutiu o amor pela luta livre, a admiração pelo grande lutador El Santo (*que aparece em Viva, a Vida é uma Festa!*), mas o pai não o acolheu quando o garoto saiu do armário aos 15 anos. Ele foi embora.
A mãe é o centro da vida de Saúl. Ela ama o filho, ela elogia seu talento com a costura, o fato dele ser trabalhador, deseja em voz alta que ele encontre um rapaz que o ame. Mas o filme é extremamente feliz em desenhar uma mãe complexa e contraditória, pois Yocasta, mesmo amando intensamente o filho e acolhendo sua orientação sexual, o culpa pelo abandono. O marido a deixou por causa do filho. Só que o próprio filme mostra que ela nunca teve um marido, ela sempre foi "a outra" de um homem adúltero, mas muito religioso. No fundo, no fundo, ela sabe que o filho não é culpado, no entanto, se aceitar isso, ela irá perceber que o homem que ela acredita amar nunca valeu nada.
Se Yocasta ama demais o ex-marido, Saúl segue em seus passos. Ele também é o outro na vida de um homem que jamais o assumirá, que só o recebe quando a esposa está fora e, ainda assim, não lhe permite entrar e sair pela porta da frente de sua casa, afinal, os vizinhos não podem ver um gay frequentando a residência dele. A vida de Saúl começa a mudar quando ele conhece Sabrina, sua treinadora. Ela começa a refinar o estilo de Saúl, lhe ensina os truques da luta livre mexicana, que é um grande teatro e serve de ponto de apoio para ele. Pensei que Saúl viraria as costas para Sabrina depois de conhecer Lorenzo, que se torna seu empresário e fornecedor de cocaína, mas não é o que ocorre.
O ápice de Cassandro no filme, porque a história é cortada em determinado momento, é quando ele é convidado a participar de uma luta na Cidade do México com o Hijo del Santo (*interpretado por ele mesmo*) e é mostrado dando entrevista no programa de TV do lutador. Quem desprezava Cassandro em sua cidade natal, ou em Cidade Juarez, muda de ideia. Agora, o lutador é uma celebridade, reconhecido pelo maior astro da luta livre do país. É durante o programa que temos a cena mais emocionante do filme e que Cassandro fala de sua futura turnê mundial. O lutador tornou-se um grande ativista tanto da luta livre, quanto da causa LGBTQ+.
Mesmo quando elevado a celebridade, o filme continua reforçando o quanto a cidade em que Saúl mora é conservadora e hipócrita. Cassandro é seu filho mais estimado, mas a orientação sexual de Saúl é um problema, é algo que ofende. Seu amante, que tinha inveja dele, jamais irá se separar da esposa. É contra tudo isso que Cassandro, a personagem criada por Saúl, luta e triunfa, porque efetivamente ele conseguiu romper com a ideia de que o exótico é sempre o vilão. Cassandro se torna modelo de representatividade e esperança, que, mesmo que limitada, faz diferença na vida de vários jovens.
O sistema pode só ser arranhado, mas vidas podem ser salvas, sua autoestima resgatada, famílias são resignificadas e tem seus laços reforçados. E o filme Cassandro não é piegas, ou defende que se ofereça a outra face, vitorioso, o lutador não mendiga as migalhas de afeto do pai que o abandonou. E termina em glória, aclamado pelo público dentro e fora do México.
O filme é muito bom e bem redondinho, mas realmente não entendi por qual motivo reconfiguraram tanto as origens de Cassandro. Ele nunca foi El Topo, ele usou dois nomes antes de virar Cassandro, Mr. Romano (debut) e Rosa Salvaje. O nome que o tornou famoso não veio de uma telenovela, mas foi tomado de empréstimo de uma cafetina de Tijuana, no México, conhecida por doar parte de seu dinheiro às crianças de rua e famílias de baixa renda. Seria tão legal isso aqui, mas preferiram se apegar a um clichê que os americanos adoram, que é o de que todos os mexicanos são absolutamente apaixonados por suas telenovelas.
Cassandro também tinha pelo menos irmãs por parte de pai e mãe, porque, no filme eles aparecem nas fotos dos créditos. Na película, Saúl fez uma roupa inspirada em uma blusa da mãe, mas, segundo o G1, ele "entrou no ringue vestindo uma blusa da mãe e a cauda do vestido da festa de 15 anos de sua irmã.". Por qual motivo cortaram o resto da família. Quando a mãe de Cassandro morre, aparecem várias pessoas em sua casa, mas não é dito se são vizinhos, amigos, parentes, ou o quê.
Outro ponto, Sabrina não existiu. A personagem é, na verdade, uma junção dos primeiro treinadores de Cassandro e uma forma de colocar mais diversidade no filme. O vídeo do Gay Nerd, que foi a gota d'água para eu ir atrás de Cassandro, diz que Sabrina é uma lutadora lésbica. Não vi nada no filme que marcasse isso. Ela é mãe solteira. Ela não aparece com nenhum par amoroso. quando Cassandro brinda aos homens, ela não faz nenhum comentário do tio "e às mulheres". Enfim, para criarem Sabrina, apagaram Baby Sharon, um lutador exótico que, diferentemente dos seus contemporâneos, se assumia como homossexual, quando os demais diziam que vestiam uma personagem, ele também costurava muito bem.
Baby Sharon foi fundamental para Cassandro, abriu caminhos para ele, por qual motivo reconfigurar quase que totalmente as origens do lutador? Além disso, nesse processo de reconfiguração, parece, pelo menos para mim, que a carreira de Saúl começou mais tarde. Ele se lançou aos 18 anos. Só que Garcia Bernal já está com bem mais de 40. Difícil convencer como um garoto, então, o filme me pareceu investir que ele não era mesmo, que já era um homem perto dos trinta. Em dado momento, antes do seu encontro com o Hijo del Santo, Saúl é mostrado completando 36 anos. Escolhas do filme que, repito, é muito competente no que se propõe a fazer.
Nesse sentido, o título da resenha da Folha de São Paulo foi perfeito, trata-se realmente de um tributo afetuoso, muito humano, muito sensível, mas que quer mostrar um Cassandro inspirador. O filme inclusive para antes de mostrar que Cassandro, após a morte da mãe, mergulhou nas drogas e no álcool e teve que lutar contra esses dois inimigos. E ele venceu e está ativo e continua fazendo um ativismo que serve de referência em um esporte marcado pela homofobia.
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