sábado, 9 de dezembro de 2023

A FUVEST lançou uma lista de leituras obrigatórias só com mulheres e isso parece incomodar.

Quando prestei vestibular, Rio de Janeiro, 1992, nenhuma das universidades públicas (*eu só tentei para elas*) tinha lista de leituras, mas a FUVEST, na época, já fazia a sua.  Fora isso, no meu Ensino Médio (*antigo Segundo Grau*), não li nenhuma autora brasileira, meu excelente livro do José de Nicola só começava a falar delas no século XX.  Eram todas mulheres socialmente brancas, bom marcar: Raquel de Queirós, Lygia Fagundes Telles, Cecília Meirelles, Clarice Lispector.  Só lembro mesmo dessas quatro. Criava-se a impressão de que não haveria escritoras mulheres antes do terceiro ano do ensino médio e, mesmo assim, elas eram muito poucas.  

Fui conhecer várias autoras já na faculdade e na pós-graduação, minha área é de Estudos Feminista e de Gênero, então, a gente tropeça nessas coisas e começa a refletir sobre os motivos da exclusão.  Acho que poucos casos de invisibilidade me indignaram tanto quanto o da romancista Júlia Lopes de Almeida, que ajudou a criar a ABL, mas terminou sendo deixada de fora por ser mulher.  Como consolação, deram uma cadeira para seu marido, considerado um poeta menor.  Tivemos que esperar muito tempo para que editoras, primeiro independentes, inclusive a antiga Editora Mulheres, começasse a publicar essas mulheres brancas; só muito mais recentemente, as autoras negras começaram a receber atenção.

Estamos em 2023 e a USP anuncia algo revolucionário e chocante, uma lista formada por 100% de mulheres autoras.  Ela ficará em vigor por 100 anos?  Não, não, somente três, 2026, 2027 e 2028.  Não acompanhei o incômodo no Twitter, deve ter acontecido alguma gritaria, mas esbarrei em uma matéria da Folha de São Paulo intitulada "Escritoras criticam lista do vestibular da USP só com livros de mulheres", logo a seguir, um reforço "Editora feminista diz que excluir autores dos séculos 18 e 19 pode mascarar o machismo da literatura da época; professores cobram transparência na escolha das obras.".  

Olha só!  Uma feminista não gostou da lista!  Ela deve ter problema, certo?  Feministas, aliás, vocês sabem, são sempre chamadas para opinar e são ouvidas.  Professores também não gostaram!  Eu, como professora, sei o quanto somos convidados para interferir nesse tipo de coisa, afinal, somos fundamentais no processo de ensino e aprendizagem.  Espero que entendam a ironia, mas rarissimamente professores do ensino básico são ouvidos para qualquer coisa, pois não somos tratados como especialistas em educação, mas executores de políticas de quem realmente sabe o que a gente tem que fazer em sala de aula e quais são os currículos a serem ensinados.

No fim das contas, somente duas mulheres vistas como qualificadas falam na matéria.  Vou reproduzir-lhes as falas, mas não irei escrever os seus nomes, eles estão na matéria.  A que mais é ouvida, começa logo assim: "E eu sou superfeminista, milito por mil coisas para as mulheres, de aborto a sistema prisional. Mas, nessa questão da lista, acho que há pontos importantes a serem refletidos" e segue "A lista da Fuvest realmente teve a predominância de homens por muitos anos. Mas, ao mesmo tempo, fazer agora uma lista só com obras de mulheres exclui autores fundamentais e fundantes da literatura brasileira."  Depois, continua com "Agora, finalmente, Machado é reconhecido como um autor negro, depois de anos em que isso foi omitido" e arremata "No tempo de Machado, havia menos mulheres escrevendo do que homens. Uma lista da Fuvest só com mulheres, de certa forma, mascara o machismo daquele período (...) hoje em dia, as mulheres têm mais espaço na literatura, daqui a 30, 50 anos, vamos ter essas autoras refletidas em uma lista de cânones".

Começo tendo que comentar que professores são inúteis, porque não devem comentar em sala de aula que as mulheres eram obstruídas nos cursos secundários e superiores, casavam-se cedo no Brasil (*com exceções*) e eram tolhidas, quando de boas famílias, de exercerem atividades profissionais.  Imagino que, na cabeça da entrevistada, a lista com 100% de mulheres não será lida como um manifesto, mas como cortina de fumaça.  Mas a coisa vai além disso, claro!

Então, que tal, da próxima vez, uma lista só com escritores negros e negras, ein?  Quanto ao sentar e esperar, porque as mulheres estão tendo mais visibilidade, é negócio risível, afinal, a introdução das autoras no cânone não se deu sem disputas, sem pressão, sem uma série de obstáculos que se materializam nos livros didáticos e nas poucas mulheres na ABL.  Para essa superfeminista, talvez os direitos das mulheres tenham sido dados e, não, conquistados.

Voltando para a última fala dessa entrevistada, que é dona de editora, ela diz o seguinte: "Por que não priorizar as mulheres, deixá-las, por exemplo, com 70% da lista? Ou então aumentar essa lista, inclusive acrescentando mais autoras, em vez de torná-la excludente?"  Sim, sim, claro!  Eu até poderia concordar parcialmente, manter alguns homens poderia dar uma melhor ideia da literatura brasileira, mas a acusação é de exclusão.  Uma lista só com mulheres é excludente, uma só com homens será que geraria esse incômodo todo?  Parem para pensar.  

A outra entrevistada é uma professora da UNICAMP, porque, como pontuei lá em cima, quem dá aula no ensino médio não seria chamado a opinar em assunto tão sério.  Ela estuda práticas de leitura no Ensino Médio e é especializada em Machado de Assis.  Ela começa com o seguinte: "Ao negar a inserção de obras criadas por homens na lista das leituras, a decisão é excludente, não só em relação aos homens, mas também em relação a outros gêneros".

Gêneros textuais?  Identidades de gênero?  De que estamos falando aqui?  Ainda bem que esta não se identificou com um "sou super feminista".  Alívio, né? De qualquer forma, supondo-se que sejam gêneros textuais e, não, dar visibilidade a autores e autoras trans, vão parar de ensinar Barroco e Arcadismo por causa disso nas escolas de Sâo Paulo?  Vão parar de ler os Românticos, Realistas, Naturalistas, Parnasianos, Simbolistas por causa da FUVEST?  Vai sair do currículo?

Sim, talvez uma lista 100% feminina não dê conta da literatura brasileira, e eu ainda estou sentindo falta da Maria Firmina dos Reis (Úrsula), primeira romancista brasileira, mulher negra, mas por qual motivo isso incomoda tanto?  Mais ainda, por qual motivo o jornal tem que chamar mulheres para externá-lo?  Simples, malandramente o jornal percebeu que se fossem homens falando ficaria evidente que a rejeição não se pauta por critérios técnicos, mas por machismo e/ou misoginia.  Mulheres especialistas, uma delas se identificando como feminista (*Ela é a favor do aborto, gente!*) dá legitimidade ao conteúdo da Folha.  Sim, minorias políticas são excelentes para cumprir esse papel.

A professora da UNICAMP vai além (*ou a Folha selecionou trechos muito específicos de sua entrevista*) e ataca a comissão que fez a lista:  "é preconceituosa em relação às próprias escritoras mulheres, cujas obras não dependem de um processo seletivo de vestibular para serem valorizadas e para afirmarem sua qualidade estética", "a decisão da Fuvest é um equívoco que desconhece a natureza e a função da literatura". "A obra literária resulta da reflexão de seu autor ou de sua autora sobre experiências humanas, situando-as em determinado tempo e lugar, e oferece ao leitor a possibilidade de vivenciar outros mundos, de exercitar o conhecimento próprio." "Para a seleção de obras literárias, afirma, o fato de o autor ser homem ou mulher "não pode se sobrepor à capacidade humanizadora"".  

Imagina esses argumentos sendo utilizados quando os autores selecionados são todos homens... As autoras escolhidas são ruins?  É isso?  Será que uma Nísia Floresta ou uma Júlia Lopes de Almeida, ou qualquer das mulheres da lista não se qualificam para integrá-la? Elas não expressão as ideias e sentimentos de sua época?  De sua classe social?  Homens escrevem do seu lugar masculino de privilégio e são lidos por todos e todas, porque as mulheres não podem ser?  Ou homens não escrevem do seu lugar de homem?  Eles seriam neutros em relação ao seu sexo, formação intelectual, classe social? Será que as leituras de literatura brasileira no Ensino Médio não são direcionadas de sala de aula?  É escolha eletiva?  Não parece ser assim como as gerações de alunos que acompanhei, nem era bate com a minha experiência de estudante.  Na maioria dos casos, salvo raras exceções, a gente depende que o professor ou professora nos apresente o autor.  

Querem ver, todos os meus alunos conhecem Maria Firmina dos Reis, porque, até esse ano, ela estava na lista da UnB.  Deve sair para o ano que vem.  Se não estivesse, talvez, não tivesse sido apresentada a eles e elas. Tenho alunos e alunas que leem muito, mas por vontade própria raramente são livros de autorres e autoras nacionais. Quando eu era estudante, li por obrigação: Iá Iá Garcia (Machado de Assis), A Viuvinha e os Cinco Minutos (José de Alencar), O Guarani (José de Alencar), Esaú e Jacó (Machado de Assis) e O Cortiço (Aluísio de Azevedo).  Isso no 1º e 2º Ano, porque no 3º era Pré-Vestibular e, no Rio, bastava saber as características dos autores.  Mas eu amava o meu livro de literatura e pedi para a minha mãe O Ateneu (Raul Pompeia) e Helena (Machado de Assis).  Na minha casa, já havia Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis).  Foi o que eu li a mais da nossa literatura.  As Três Marias, li aos 9 anos, porque minha mãe me deu, mas não é leitura para criança e tive que reler adulta para saborear o livro, tem resenha no blog.  Ou seja, até a universidade, só li uma autora brasileira, Raquel de Queirós, e mal, porque no momento errado.  Não consigo engolir essa história de excludente e impositivo, quando toda a dinâmica do ensino de literatura é assim desde, sei lá, sempre?

Ninguém vai esquecer de Machado de Assis, porque ele vai ficar fora da FUVEST por três anos, ele é muito maior que qualquer vestibular e deveria continuar sendo ensinado em sala de aula.  Ou em São Paulo as coisas são diferentes do Rio e de Brasília?  Só ensinam o que está na lista, é isso?  O problema, então, leitores e leitoras, não é a lista, é o ensino de literatura no Estado de São Paulo. Agora, certamente, as editoras podem lucrar menos se certos figurões estiverem fora das listas do maior vestibular de São Paulo.  Será que não é essa a razão de tanta indignação por parte do jornal e, talvez, das entrevistadas?  Se a FUVEST não pede o cânone e tudo gira em torno dele, alguém vai perder dinheiro, vai lucrar menos.  

E quem sabe a essa lista 100% feminina se segue uma somente com negros e negras?  A matéria não deu voz à reclamação de que somente agora (*caramba, isso não tem pelos menos uns 15 anos?  Eu lembro da propaganda polêmica da Caixa Econômica.*) descobriram que Machado de Assis é negro.  Seria legal, não seria?  Dava para recolocar Machado em seu merecido trono e, ao mesmo tempo, dar espaço para outros autores e autoras negros de relevo. Resumindo, o problema da lista não é a lista.  O problema está em outros lugares.


P.S.: Mais um texto da Folha de São Paulo (10/12): Vestibular feminista: Expandir leitura de escritoras é louvável, mas política não deve superar cânone. Editorial é a voz do jornal, ou seja, a Folha condena a lista de autoras e vende a ideia de que o cânone literário nasceu pronto. De repente, foi criado por Deus antes da independência do Brasil. Virou campanha mesmo, o incômodo deve ser grande.

2 pessoas comentaram:

Nunca esperei uma entrevista assim. Admito que sei pouco tanto sobre as listas de autores quanto sobre as autoras brasileiras, e concordo com o ponto de que talvez somente elas não deem conta de toda a literatura brasileira. Mas seu ponto sobre a escolha no mínimo questionável de quem seriam os comentaristas ou entrevistados reflete bastante essa falta de critérios na crítica que fazem.
Obrigada por trazer essa notícia!

Belo texto, adorei suas reflexões.

A unica coisa que discordo é de seu argumento para rebater a afirmação de "Por que não priorizar as mulheres, deixá-las, por exemplo, com 70% da lista? Ou então aumentar essa lista, inclusive acrescentando mais autoras, em vez de torná-la excludente".

Você responde com "Uma lista só com mulheres é excludente, uma só com homens será que geraria esse incômodo todo?".

Eu acho importante destacar que a escolha dos livros não é apenas técnica, ela é também política. É evidente que uma lista só com homens não incomoda, a Academia é um reflexo da sociedade, machista em cada fresta que puderem ocupar.

A lista só com mulheres nos obriga a pensar e a refletir, ela é também pedagógica. E como você bem pontuou, Machado de Assis não vai perder nada ficando fora da lista por uns anos... Quem sabe até ganhe folego e desperte novos olhares.

Enfim, como você argumenta, essa lista é importante e ela ser 100% composta por mulheres é uma oportunidade para se compreender ainda mais o que é a exclusão das mulheres na literatura. Em vez de clamar por uma cota de 70%, a autora deveria refletir sobre por quê 100% incomoda tanto.

Bom não conhecia seu blog, mas amei ler suas reflexões!

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