O primeiro dia do ENEM foi no domingo passado e, mesmo mantendo a estrutura padrão, algumas mudanças já foram sentidas. As mais evidentes foram as questões sobre Ditadura Civil-Militar, tema banido durante o governo do agora inelegível, mas, também, a volta de Getúlio Vargas, porque apesar dos leigos não perceberem, tentar esquecer e/ou desqualificar Getúlio é muito mais urgente quando se trata de avanço de uma agenda neoliberal. Em meus dez anos consecutivos no 3º Ano, sempre que um aluno me perguntava o que poderia cair, eu dizia "Vargas cai.". Era lei, mas nenhum assunto ligado aos seus governos apareceu nos últimos ENEM. Agora, colocaram o retrato do velho de volta. Mas o texto é para falar de outra coisa, o tema de redação.
Muito bem, apesar de achar a frase um tanto confusa, o tema "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil" é simples de abordar e muito urgente. Muita gente ao ler a frase pensou em trabalhos domésticos. Sim, as mulheres, as mães, as esposas, as avós, as irmãs, são as principais responsáveis pelo serviço doméstico. Mas não é só isso, há o cuidado com as crianças, algo que ainda é tratado como atividade feminina, se um pai se faz presente na vida de suas crianças, ele é elogiado, se a mãe faz o mesmo, é somente obrigação. Se há idosos na família, espera-se que uma mulher assuma os cuidados. Mulheres são educadas desde cedo para cuidar, acolher, é fundamental assumir cedo essas funções para ser minimamente amada e respeitada.
E, ao mesmo tempo, trata-se de um trabalho invisível, porque ele não é remunerado, ainda que seja fundamental para o sistema capitalista. As feminista socialistas chamavam isso de "modo de produção doméstica", na qual o trabalho doméstico das mulheres era apropriado pela classe dos homens como dom e, claro, os livrava para se tornarem indivíduos mais produtivos e úteis ao capitalismo. Das mulheres espera-se, também, que elas abram mão de oportunidades de trabalho e estudo pela família. Conheço mais de uma mulher que atrasou seu mestrado e doutorado para que o marido fosse antes e, bem, elas terminaram sendo abandonadas depois, trocadas por alguém mais interessante, menos cansado e assoberbado por trabalho, tarefas domésticas e filhos.
Como a maioria de nós trabalha dentro e fora de casa, nos sentimos sobrecarregadas, mas precisamos seguir com a rotina até que enfim, a saúde nos cobre o preço. E, ainda assim, mesmo doentes, as mulheres seguem cuidando. Como abandonar um filho a própria sorte? Que mãe seria você? É o que se espera delas. Inclusive, as profissões de cuidado - professoras de educação infantil, enfermagem, cuidadores de idosos etc. - ainda são eminentemente femininas e mal pagas, porque, bem, as mulheres fazem isso "por amor".
Mas e quando uma mulher adoece? Muitas vezes, ela é abandonada, antes disso, talvez seja traída, afinal, homens tem necessidades e uma mulher incapacitada de fazer sexo, ou com menos desejo, não tem lá tanto valor. Veja o caso recente de Preta Gil, que foi amplamente publicizado. Ela pode, também, ser trocada por outra, mais jovem, saudável, e que pode cuidar e não precisa ser cuidada. A humorista Giovanna Fagundes abordou o tema em um vídeo que se tornou viral e comemorou no Twitter o tema da redação. Será que foi inspirado nele? O vídeo está abaixo.
E se uma mulher é presa? Normalmente, ela é abandonada pela família, pelo companheiro, às vezes, pelos filhos. E não estou falando das crianças, elas não tem autonomia, mas de adultos mesmo. Enquanto há filas nos presídios masculinos, mulheres com presentes, dispostas a dar carinho e oferecer até sexo, nos femininos, impera o abandono. Elas cuidam, eles não foram ensinados a fazer isso. Este papel de cuidadora nos é incutido desde a mais tenra infância, quando recebemos nossa primeira boneca e somos induzidas a tratá-la como um filho, ou filha. Quando nos presenteiam como brinquedos que reproduzem tarefas domésticas. Brincar de casinha, porque lá é o seu lugar principal, é seu futuro, mesmo que você tenha uma profissão. Tudo tem uma função pedagógica, mas e aos meninos? O que lhes é oferecido? Os meninos também deveriam poder brincar de bonecas em paz e aprenderem a cuidar.
Seria fácil oferecer soluções possíveis para o problema proposto no tema. Afinal, a ideia da redação do ENEM é obrigar o estudante a se posicionar e oferecer soluções. Não gosto desse modelo, mas é o que é. Se a pessoa não conseguisse abrir sua visão, e os cartunistas que coloquei aqui parecem atrelados a essa ideia de funções do lar mesmo, poderia falar em divisão das tarefas domésticas. Não sobrecarregar suas mães, irmãs, avós. Se o candidato tiver uma reflexão sobre o tema, poderia falar de papéis de gênero. Que é preciso educar os homens para que eles cuidem também e as mulheres para não verem com normalidade essa atribuição de cuidar dos outros o tempo inteiro. Há vários caminhos possíveis, mas, o que eu quero registrar, é que o tema foi muito pertinente.
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