domingo, 22 de outubro de 2023

Sobre acolhimento de bebês, mulheres abandonadas e o retorno do Estatuto do Nascituro

Faz tempo que não escrevo sobre temas que escapem da cultura pop e sinto falta disso, porque o Shoujo Café para discutir questões do mundo social que impactem a vida das mulheres, também.  Vou comentar uma matéria muito boa que saiu no Metrópoles recentemente, ela se chama "Os motivos que levaram 21 mães a entregar seus filhos para a adoção. Em 2023, 56 mulheres procuram a Vara da Infância e da Juventude do DF para fazer a entrega legal dos filhos, o que permitido por lei".   Vejam bem, MÃES, não são decisões conjuntas, é a ação de uma mulher sozinha e que, no máximo, tem uma família que não está disposta, ou tem condições, de apoiá-la e ajudá-la a cuidar de seu bebê. 

Em primeiro lugar, é preciso marcar que este programa de acolhimento de mulheres, porque várias delas não se sentem mães, não queriam ser mães, que queiram doar seus bebês é muito importante.  Não é abandono, não é egoísmo, é uma possibilidade de dar uma vida melhor para uma criança.  Jogar um bebê fora é crime, mesmo quando se trata daquele abandono que, para os especialistas, é fruto do desespero, isto é, quando as mães deixam o bebê enroladinho, em uma caixa, perto de um lugar onde ele será encontrado rápido, às vezes com mensagem dizendo "Ele/a se chama XXX." ou "Eu amo meu bebê, mas não posso cuidar dele.".  Sabe a história do bebê Moisés?  Ela ilustra bem isso.  Joquebede não queria se livrar e seu filho, ela foi obrigada a isso, preparou um cestinho, o colocou no rio em um lugar onde não haveria perigo e ele seria resgatado, e ainda deixou Miriã, a irmã mais velha, vigiando (Êxodo 1:15-22, 2:1-10).  Agora, o que me deixa impactada, são os motivos citados e a falta o silêncio da matéria quando se trata de dimensionar cada um deles.

E quais são os motivos mapeados pela matéria?  Vulnerabilidade social, ambiente de violência doméstica, pobreza extrema, conflito familiar, depressão, ansiedade, vítima de violência sexual (*curioso não ter dependência química*). Percebem que essas histórias não precisavam terminar com a entrega de bebês?  Que essas mulheres efetivamente desejavam maternar seus filhos? São mulheres que precisavam e ajuda, ou por estarem sozinhas, ou por estarem cercadas de gente muito pobre e em condição tão vulnerável quanto, ou estarem rodeadas por pessoas ruins ou, talvez, de criminosos mesmo. A sociedade e o Estado falharam com estas mulheres, ou meninas, porque deve haver adolescentes nesse balaio.

Vejam, existir uma rede para que mulheres entreguem bebês em adoção é fundamental, mas não é este o ponto, o que me incomoda são os motivos. Por exemplo, uma mulher estuprada que não deseje exercer o seu direito, não que seja obstruída, vejam bem, de interromper a gestação dentro da lei, deveria ter todo o suporte para entregar a criança e dar-lhe possibilidade de um futuro melhor, de ser amada, de ter uma família (*que esperamos, seja boa para ela*). Foi o que a atriz Klara Castanho fez e eu fiz um Shoujocast que eu terminei revendo sobre isso, porque sabia que tinha comentado o caso, mas acreditava que tinha sido em texto.  O vídeo está abaixo e acreditem, foi um excelente programa, apesar de ser tecnicamente péssimo.

Extrema pobreza, violência doméstica não deveriam ser motivos para entregar um bebê, na verdade, são prováveis atos de desespero. A mãe que o faz é movida pelo amor, não discuto isso, mas a doação é resultado do abandono por parte do Estado. Isso é cruel, isso não deveria ser aceito e/ou celebrado.  E não estou recriminando os profissionais envolvidos, estou somente apontando os problemas do sistema.

Mas e quando uma criança não é posta em adoção quando bebê?  Bem, ela tem menos chances de ser adotada, o que se agrava se ela tiver irmãos e irmãs, porque o sistema favorece a manutenção desses laços.  Nos últimos anos, as coisas têm melhorado, porém, as chances de um bebê, especialmente menina, e saudável, ser adotado são muito maiores.  Enfim, e crianças são abandonadas o tempo inteiro. A UOL publicou uma matéria apontando que oito crianças são abandonadas todos os dias no Brasil e pelos mais diferentes motivos, inclusive absurdos e criminosos, mas o abandono do Estado continua sendo um deles.  

Mulheres sozinhas, que já foram abandonadas pelo parceiro, abandonam seus filhos, ou algum de seus filhos, talvez, para ter o que comer ou dar de comer para os demais.  Sabe a Escolha de Sofia?  Não conhecem o filme?  Uma mulher judia carrega a culpa por ter sido levada a escolher entre seu filho e sua filha.  Se ela não se decidisse, ambos seriam mortos.  Quem lhe deu a ordem foi um oficial nazista.  Ela escolhe o filho, ainda assim, perde as duas crianças.  "Escolha de Sofia" passou a ser um termo aplicado a qualquer escolha muito difícil e feita sob forte pressão.  Por exemplo, as mulheres com filhos são as que mais dificuldades tem para se inserir no mercado de trabalho, a coisa piorou com a pandemia.  Talvez, algumas mulheres tenham sido obrigadas a escolher e isso sempre é horrível.

Há casos nesta matéria da UOL que eu já havia lido, o que mais me impactou foi o do menino de 9 anos que saiu para jogar bola e, quando voltou, sua mãe tinha ido embora levando os irmãos menores.  Minha filha completou dez anos semana passada, eu só pensava em como ela ficaria desesperada se ela fosse abandonada.  Se eu demoro demais para voltar para casa, ela já fica ansiosa.  Verônica Abreu, a diretora de um abrigo relata o seguinte:  "É um trauma, porque é um abandono emocional e físico. A criança chega no abrigo arrebentada. Não quer comer, às vezes fica com febre, saem erupções na pele.(...) A criança quando sofre esse abandono fica num casulo ou extravasa, bate nos colegas, quebra coisas."

Nesses sentido, ser entregue em adoção é uma bênção, ou assim esperamos.  E defender que esses programas de acolhimento existam e que o Estado e a sociedade devam ajudar essas mulheres abandonadas, feridas, doentes isso não quer dizer que a discussão sobre o direito de aborto deva ser abandonada.  Mas muito mais urgente é impedir o avanço das discussões sobre o Estatuto do Nascituro.  

Trata-se de um texto que proposto no Congresso em 2007 com o PL 478/2007 e cuja pauta voltou a ser discutida nas comissões da Câmara dos Deputados,  da mesma forma que a tentativa de confisco do casamento igualitário (*e vou falar disso em outro momento*) voltou a ser assunto.  O retorno do Estatuto do Nascituro, no entanto, está ligada à discussão sobre a constitucionalidade do aborto até a 12ª semana, que deve ser discutida em breve no STF.  

A lei atual permite a interrupção da gravidez nos seguintes casos: estupro, risco de vida para a pessoa gestante e em casos de fetos com anencefalia. O Projeto de Lei em trâmite no Congresso, o Estatuto do Nascituro, prevê a revogação dessas autorizações, o que, na prática, implicaria na criminalização do aborto em toda e qualquer situação.  Além disso, poderá conceder direitos de paternidade a um estuprador e proibir pesquisas com células tronco de embriões e inseminações artificiais.  Há vários desdobramentos possíveis, porque se aprovado, o Estatuto do Nascituro reconhecerá a personalidade jurídica de embriões e fetos, ao mesmo tempo em que reduzirá mulheres e meninas à condição de incubadoras.  Seria um retrocesso pavoroso.

Enfim, nisso tudo, quem perde são as mulheres.  Elas perdem seus filhos e filhas desejados por não poderem criá-los.  Não pode haver desespero, lamento, ou coerção na entrega de uma criança em adoção.  Ao mesmo tempo, essas situações de desespero podem ser acrescidas se os mínimos direitos reprodutivos que temos forem retirados e se uma vida em potencial se tornar mais importante do que a da mulher que a está gestando.  O Brasil é bem cruel com as mulheres e pode se tornar ainda pior.

1 pessoas comentaram:

O estatuto do nascituro é uma aberração.
Mas vindo de um congresso povoado por aberrações, nada me espanta.

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