domingo, 8 de outubro de 2023

Comentando Felicidade aparente – Os Segredos da Família Duggar: o programa acabou, mas suas ideias estão muito vivas por aí

Semana passada terminei de assistir aos quatro episódios do documentário Felicidade aparente – Os Segredos da Família Duggar (Shiny Happy People: Duggar Family Secrets). A série documental está disponível no Amazon Prime, mas digo de saída que será uma jornada muito angustiante.  Felicidade aparente é um mergulho no fundamentalismo norte-americano e como ele é um produto vendido através de vários meios, dentre eles, a televisão e não estou falando de televangelismo, algo que conhecemos bem no Brasil, mas de reality shows, que vendem um modelo patriarcal e hierarquizado de família, pautado (*supostamente*) em valores cristãos conservadores.  

O primeiro e mais bem sucedido desses shows está no título, trata-se 19 Filhos e Contando (19 Kids and Counting) exibido entre 2008 e 2015, quando foi encerrado em virtude de um escândalo sexual envolvendo o filho mais velho da família, e ativista cristão conservador, Josh Duggar.  O documentário, porém, não é sobre eles somente, mas a partir do que foi mostrado sobre essa família falar do projeto ultraconservador para os Estados Unidos, proposto por uma organização chamada IBLP (Institute in Basic Life Principles).  Felicidade Aparente também dá voz às vítimas, isto é, crianças, hoje, adultos, que cresceram dentro deste modelo de família e foram alvo de vários abusos perpetrados por familiares e por membros do IBLP, dentre eles, seu líder e fundador Bill Gothard.

Assistindo aos quatro episódios e pesquisando na internet sobre o IBLP, me senti muito incomodada, porque há uma evidente infiltração das ideias radicais desta organização na maioria das denominações evangélicas e nos discursos religiosos que eu conheço desde a adolescência.  Por qual motivo escrevi adolescência?  Bem, é quando a conversa sobre "quem ama espera", a Teologia da Prosperidade, o discurso radical contra o aborto, a crítica ao feminismo (*sempre no singular*) e outros elementos que fazem parte do arcabouço da organização criada por Bill Gothard chegam às igrejas da Convenção Batista Brasileira.  

Em dado momento do documentário, uma historiadora aponta a infiltração na Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos, até hoje, a maior do país e a mais influente quando se trata de mandar ideias para o Brasil.  Os Duggar são Batistas Independentes, uma linha (*mais*) fundamentalista que rompeu com o ramo principal. O IBLP não é uma igreja, uma pessoa pode enviar seus filhos e filhas para os acampamentos e seminários do grupo, pode comprar o material didático produzido por eles para homeschooling, pode ir as suas convenções.  É por isso que uso o termo infiltração, você introduz ideias, coopta indivíduos e consegue dominar uma denominação, ou igreja de dentro para fora.  A coisa cresce tanto que os preceitos do grupo passam a estar no vocabulário comum dos evangélicos sem que se saiba de onde veio isso.

Citarei um exemplo, esta semana passada, uma jovem ex-apresentadora de programa infantil do SBT teve sua primeira filha.  Ela disse que a menina é "herança do Senhor".  Esta terminologia é comum entre os evangélicos desde, sei lá, talvez as origens, no entanto, ela se referiu a sua menina como "nossa flecha".  Ela obviamente estava usando o termo a partir do que se chama de Movimento Quiverfull, uma doutrina religiosa que rejeita qualquer método contraceptivo.  Ela rejeita a contracepção?  Não sei, nem vem ao caso, o que ela faz é abraçar o jargão de que um filho, ou filha, é alguém que pode ser usado para agir sobre o mundo, levar uma mensagem.  "Quiver" é aljava em inglês e todo esse discurso, que surgiu no final dos anos 1970, mas foi apropriado pelo IBLP, se baseia no seguinte texto bíblico:  "Os filhos são herança do Senhor, uma recompensa que ele dá.  Como flechas nas mãos do guerreiro são os filhos nascidos na juventude.  Como é feliz o homem que tem a sua aljava cheia deles!  Não será humilhado quando enfrentar seus inimigos no tribunal." (Salmos 127:3-5)

Flecha você atira, certo?  Flecha é arma, as flechas/filhos serão usadas para conquistar o mundo para Cristo, ou para o modelo de cristianismo que os fundamentalistas defendem.  O movimento Quiverfull nasce no meio evangélico, é apropriado por Bill Gothard fundador do IBLP e foi propagandeado pela família Duggard no programa de TV que foi para o mundo inteiro.  Começaram com 17 crianças e terminaram com 19, sendo que a vigésima não sobreviveu.  Tudo foi televisionado.  E repito que o Quiverfull é evangélico, porque a doutrina católica não é contra todos os métodos contraceptivos, somente os artificiais (*pílula, camisinha, entre outros*), já os adeptos do movimento dos filhos-flecha não praticam nem a tabelinha.  Só param de ter filhos por questões de saúde e não me fiaria muito nisso, não.

O movimento Quiverfull precisa ser percebido dentro da reação aos feminismos e aos direitos das mulheres como um todo.  As mulheres precisam "voltar para o lar", devem ser donas de casa, ter quantos filhos Deus lhes der, devem ser  absolutamente submissas aos seus maridos e educar suas crianças em casa e submetê-las, também, a autoridade.  Aqui, é importante destacar que os documentários mostraram como as crianças Duggar pareciam felizes e obedientes, muito bem, o IBLP produz amplo material sobre como "treinar" os filhos a serem submissos.   E, sim, o verbo é usado "train" e um dos especialistas compara crianças à animais.  Bater até que se submetam e bater desde cedo.  Em um trecho de uma palestra, uma mulher fala de como espancou sua criança de 14 meses o dia inteiro (*ela fala exatamente isso*) até que ela se submetesse.  A prima dos Duggar fala de como seus primos eram surrados, sempre à portas fechadas e com a voz aveludada do tio ou tia dando os comandos.  Um dos sobreviventes fala das surras que levava da mãe.

A mãe da família Duggar, Michelle, comenta que usava o "blanket training" (*treinamento do cobertor*) desde que suas crianças tinham seis meses.  Em que consiste essa perversidade?  Porque é, não vou nem discutir esse ponto.  Você estende um cobertor (*não se fala em nenhum brinquedo em cima dele, mas há por aí versões que dizem para colocar alguns que a mãe escolheu*), coloca o bebê sobre o pano e um brinquedo que ele ou ela goste muito fora do cobertor.  A cada vez que a criancinha tentar alcançar o brinquedo favorito, ela deve levar uma pancada.  Estamos falando de bebês de SEIS MESES.  Se você é criado dentro de um sistema como esse, certamente você fará de tudo para agradar seus pais.

Enfim, daí vocês tiram que se a mãe pode impor a autoridade aos filhos batendo, que é legítimo ao marido treinar sua mulher da mesma forma.  E os testemunhos apontam para isso.  E a imagem usada no material do IBLP, a dos vários guarda-chuvas circula traduzida na internet brasileira faz tempo.  Vocês  já devem ter visto isso circulando por aí, mas com uma diferença, porque mulher de classe média para cima brasileira não vai fazer trabalho doméstico, a coisa tem que ser adaptada.  Os ensinos de Bill Gothard enfatizam a hierarquia e submissão à autoridade como fundamentais para agradar a Deus.  Ora, se você é criado dentro desse movimento, fica difícil romper com ele sem se sentir culpado, mais ainda se você for uma mulher.

Um dos que participam dos documentários, um pastor-jornalista aponta que o  IBLP surge como reação à luta pelos direitos civis de negros e mulheres, e o fim da segregação nas escolas, que o movimento precisa ser compreendido historicamente. O IBLP tenta vender uma imagem de passado perfeito que precisa ser reencontrado.  Mas perfeito para quem?  Não para negros, mulheres, ou mesmo crianças.  E durante boa parte dos documentários só vi gente branca, somente quando se mostram os grandes congressos da IBLP é que a gente vê alguém diferente do que chamaríamos de WASP (White-Anglo-Saxon-Protestant/Branco-Anglo-Saxão-Protestante) no meio da multidão, ou então, nos centros de treinamento do grupo onde, segundo os testemunhos, há a exploração da mão-de-obra de menores.  Turnos de trabalho de até 16 horas não remunerado para a glória de Deus e enriquecimento de Bill Gothard.

Somente pessoas brancas.  Acima, o guarda-chuva da autoridade.

O IBLP criou todo um sistema de educação domiciliar chamado de Advanced Trainning Institute (ATI).  Cadernos seriados, bem caros, que eram vendidos para às famílias que abraçavam os princípios do Instituto.  Hoje, depois dos escândalos e denúncias, o ATI não é mais tratado como material didático, mas ele foi amplamente divulgado no 19 Filhos e Contando, por exemplo.  Enfim, trata-se de um material doutrinário, com pouca base científica e que instila nas crianças e adolescentes uma série de conceitos sobre moral sexual muito enviesados.  Por exemplo, culpabiliza as mulheres por tudo e apresenta temas como incesto e outras variantes de abuso de forma abrupta como se isso fizesse parte do dia-a-dia das famílias.  E, bem, a julgar pelos Duggar, fazia.  

O 19 Filhos e Contando acabou quando Josh Duggard foi exposto como abusador.  Quando adolescente, ele teria molestado de suas irmãs e, talvez, outras meninas que frequentavam a casa.  Pelas leis do estado onde moravam, e que o próprio pai da família, Jim Bob, tinha ajudado a criar, porque ele fora deputado, ele deveria sofrer penalidades severas por abuso infantil.  Como foi resolvido?  Silêncio, o rapaz sendo mandado para um centro do IBLP para adolescentes com problemas, a divulgação no programa de que ele fora fazer algum trabalho religioso (ministério).  Mais tarde, quando a coisa veio à tona, Josh confessou o pecado, vejam, bem, não crime, mas pecado (*tipo um influencer bolsonarista evangélico fez esta semana... mas deu ruim, ele está preso.*), as irmãs abusadas foram expostas na Fox News e constrangidas a dizer que perdoavam o irmão.  Já os pais defenderam o filho até o fim. 

Já adulto e trabalhando em uma importante organização conservadora, Josh Duggard foi acusado por uma atriz pornô e stripper de ter contratado seus serviços (*enquanto a esposa estava em uma das suas muitas gravidezes*) e sido violento com ela.  Parece que o caso não foi adiante, mas como ele não foi punido e/ou reeducado por molestar as irmãs, terminou por ir atrás de crianças de novo, e foi condenado por posse de pornografia infantil.  A graça é que ele tinha um programa espião feito pelo IBLP que enviava mensagem para outro membro do grupo caso o dono do computador entrasse em sites de pornografia.  Josh Duggar tinha um HD particionado.  Enquanto isso, Jim Bob Duggar se lançou como candidato ao senado e fez acusações aos juízes: foram indicados por Obama, eram esquerdistas, se Trump fosse o presidente jamais permitiria que Josh fosse condenado.  Vocês conhecem o modus operandi da coisa.

Falando ainda do ATI, todos os sobreviventes que deram depoimento comentaram o material e como sentiram dificuldade de se inserir na universidade e no mercado de trabalho.  Uma das mulheres relatou que o pai interrompeu seu ensino de matemática quando ela terminou de aprender frações.  Segundo ela, o pai disse que era o suficiente para que ela soubesse fazer bolos. Quanto menos uma mulher souber melhor, mais dependente ela será do pai e do futuro marido, menos condições terá de abandonar a seita, porque é uma seita.  Acho que é a moça das frações que diz o quanto a leitura do Conto da Aia a impactou, porque a fez entender o quanto o projeto do IBLP era parecido com o que vivera. 

Essa limitação nos estudos é particularmente cruel com as mulheres, porque o IBLP e o movimento Quiverfull valoriza a virgindade e a pureza de forma obsessiva.  O compromisso é que uma jovem mulher passe da autoridade do patriarca para a do marido intacta.  Uma das sobreviventes da seita comenta que se casou sem sequer beijar o futuro marido, sem nenhuma educação sexual e foi violentada três vezes na noite de núpcias, depois, passou a ser, também, espancada.  Quando buscou ajuda, porque há mentores de jovens, casais e por aí vai no IBLP, o que lhe disseram é que era normal e que ela deveria ser uma boa esposa e aceitar o marido como ele era.  Outro sobrevivente fala que o pai foi preso por abusar de um menor, no masculino, e a seita pressionou sua mãe a aceitá-lo de volta e resgatar sua família.  

Quando uma das filhas dos Duggar, Jill, decide falar dos abusos que sofreu e questionar o pai, seu marido recebeu várias mensagens anônimas ameaçadoras, uma delas dizia que ele deveria ser grato ao sogro por ter lhe entregue uma virgem intocada e perfeita, que ele era um ingrato.    O fato é que as duas filhas casadas e maiores e idade dos Duggar descobriram que tinham assinado contratos sem saber, ou o pai assinara por elas, como já fizera antes sem que a própria rede de TV apontasse que era ilegal, comprometendo-se a fazer spin-offs do programa original.  Era isso, ou processo.  A graça é que elas nunca tinham recebido um tostão sequer por seu trabalho, tudo ficava com Jim Bob.

Uma historiadora que participa do programa comenta que tanto o reality das Kardassian, quanto o dos Duggar, vendem modelos de feminilidade, papéis de gênero que são reconhecíveis e aceitáveis para a sociedade.  A diferença é que as Duggar, desde criança, tinham várias responsabilidades (*limpar, cozinhar, cuidar dos irmãos menores/buddy system, enquanto sua mãe estava produzindo outras flechas para a aljava do pai etc.*) e não recebiam salários.  Quando a questão da remuneração apareceu, Jim Bob Duggard anunciou que pagaria salários aos seus filhos homens maiores de idade, afinal, eles serão futuros provedores, mas que seria o salário mínimo do estado, ou seja, a exploração da imagem das crianças não tinha limites.

Já me estendi demais e tenho me encaminhar para o final.  Preciso falar de Bill Gothard, o fundados do IBLP.  Começo informando que ele se afastou da chefia da organização por conta das acusações de abuso sexual contra fiéis.  Ele se retirou para salvar o império, como fizera antes com um de seus irmãos, também acusado de coisas semelhantes.  Os documentários mostram bem como se dava a seleção de jovens para o staff do líder, o perfil escolhido e como elas ficavam à mercê dos assédios.  Enfim, apesar de se apresentar como expert sobre família, educação/criação de crianças e casamento, o Sr. Gothard nunca se casou, nem teve filhos.  Veja, eu acho fantástico isso, porque dentro do meio evangélico/protestante a figura do pastor solteiro é algo muito mal visto até hoje, porque um dos pontos de ruptura com a Igreja Católica foi o celibato dos padres.  

Mas eis que Gothard conseguiu construir seu império sem servir de modelo nem como pai, nem como marido, simplesmente dando e/ou vendendo conselhos supostamente tirados da Bíblia, isso desde 1961.  Ele é uma espécie de precursor da onda dos coaches, por assim dizer, que pululam no meio evangélico.  Querem um exemplo?  Semana passada foi noticiado um curso para que evangélicas encontrem o marido ideal e construir uma família tradicional.  Há palestras, doutrinação e baladinhas que talvez o pessoal do IBLP não considerasse adequadas.  Agora, o detalhe mais interessante da picaretagem, palestrantes que nunca foram casadas e a dona do projeto está no terceiro casamento.  Complicado vender um modelo de perfeição desse jeito? Nada!  Basta vender que, agora, encontrou o homem segundo o coração de Deus e está tudo certo.  As pessoas andam muito perdidas mesmo.  

Voltando ao Movimento Quiverfull, flechas são para atacar.  O documentário mostra o quanto o IBLP vem se esforçando para formar uma nova geração de jovens militantes, seja nos escalões inferiores, mão-de-obra barata, gente que vai para manifestações contra temas vistos como progressistas, e o chamado Generation Joshua (Geração Josué) ou GenJ.  O documentário enfatiza, também, como esses jovens estão presentes nas mídias sociais, com uma roupagem moderna, às vezes, ostentando um visual muito diferente dos Duggar, mas com as mesmas ideias.  Autoridade masculina, submissão feminina (*e melhor se isso for defendido por uma bela moça com roupas com um tiquinho de sensualidade e uma ou outra tatuagenzinha*), LGBTfobia e por aí vai.  Há inúmeros canais do Tik Tok, em especial, nessa linha, brasileiros aos montes, aliás.

Membros do IBLP em 1992.  Procure alguém que não seja branco.

Quanto ao Geração Josué, fundado em 2003 com o objetivo de "take America back for Christ" ("tomar a América de volta para Cristo"), seus membros saem do homeschooling para uma formação universitária sólida, que caminha junto com a doutrinação continuada, a partir daí, são colocados em  gabinetes de políticos conservadores e organizações importantes para o Governo dos Estados Unidos.  Um dos sobreviventes, que pertenceu ao Geração Josué, diz que o objetivo maior não é nem o Congresso, ou mesmo a presidência, mas a Suprema Corte.  E eles já chegaram lá, o direito constitucinal ao aborto (*e os protestos aparecem em vários momentos dos documentários*) as cotas também por critério racial (*e não somente por ele*) foram derrubadas.  

Terminando, são quatro episódios ao todo e eles têm os seguintes títulos: Meet The Duggars (Conheça os Duggard), Growing up Gothard (Crescendo Gothard), Under Authority (Debaixo da Autoridade) e Arrows Activated (Flechas Ativadas).  Enfim, recomendo muito essa série, porque não é somente sobre a família Duggar, mas um império fundamentalista construído como reação às lutas pelos direitos civis, a contracultura e ao fim da segregação nas escolas, e como suas ideias se infiltraram entre os evangélicos norte-americanos e no resto do mundo. Com quatro anos de Bolsonaro e ouvindo Damares falar, vocês reconhecerão, inclusive, a voz treinada ao estilo do IBLP e que é usada por Michelle Duggard o tempo inteiro.  Enfim, é isso, o trailer está abaixo.

1 pessoas comentaram:

Esse é o grande problema. Pessoas mais liberais normalmente cuidam da própria vida e não se unem para muita coisa, mas os fundamentalistas sempre se organizam e buscam poder para solapar os direitos dos demais.
O retrocesso acaba sendo inevitável.

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