Se você caiu aqui de paraquedas, saiba que eu sou historiadora de formação, com graduação, mestrado e doutorado na área. Sou medievalista aposentada, por assim dizer e especialista em Estudos Feministas e de Gênero. Obviamente, nada disso me impediria de escrever e falar groselhas, mas acho que eu sou uma profissional relativamente responsável. Vamos falar de História, então! Saiu uma matéria no jornal O Globo chamado “Seios e pênis grandes eram objeto de ridículo na Roma Antiga, diz historiadora espanhola” e decidi comentá-la.
O livro “Cunnus: Sexo y poder en Roma”, da historiadora Patricia González Gutiérrez, saiu este ano, é novinho, portanto. A matéria destaca o desinteresse dos romanos pelos seios das mulheres, ainda que não pontue que na própria imagem escolhida para ilustrá-lo tenha uma mulher com os seios cobertos, algo comum em afrescos e mosaicos de mulheres reais produzidos por esta civilização; informa que a mulher por cima era algo anormal aos olhos dos romanos e que a prostituta da imagem (*descoberta em Pompéia*) deveria receber mais para estar nessa posição; e pontua a aversão dos romanos pelo sexo oral.
Parece novidade, mas boa parte das informações da matéria sobre o livro já eram acessíveis na minha época de universidade, ou seja, uns trinta anos atrás, porque meu primeiro contato com os textos sobre o assunto datam da época que eu estava fazendo Antiga I e as optativas de Grécia. “Nos Submundos da Antiguidade”, da Catherine Salles, e o capítulo assinado pelo Foucault, primeira coisa que li dele, sobre Roma no livro “Sexualidades Ocidentais”, já nos trazem discussões sobre isso. “Sexualidades Ocidentais” já era um livro antigo em nossa língua, ou a galera pegava muito o exemplar na biblioteca, lá em 1994. Eu tenho um exemplar dele e do livro da Salles em casa. Além disso, essa história dos romanos não se interessarem por seios está em um livro comemorativo da história do sutiã, não é um material acadêmico, vejam só, foi feito (acho) por encomenda da Duloren, chamado "Sutiãs E Espartilhos - Uma Historia De Sedução".
Não sei o que o livro mais recente traz de novo, nem o índice está disponível no Amazon, mas gostaria de dar uma olhada nele. É importante pontuar que práticas sexuais são culturais e a gente só sabe o que não era a norma, porque havia quem a transgredia. Exemplo, sexo oral era visto como algo indigno se praticado por um homem livre em um parceiro ou parceira, ou que fosse algo pedido a uma esposa, PORÉM, não havia lá grande problema se este mesmo homem livre recebesse de um escravo, ou uma prostituta, ou um prisioneiro de guerra. A ideia era de dominação, se impor sobre o outro. Sexo não era visto como troca, mas como exercício de poder.
Como os romanos adoravam atacar seus oponentes, há historinhas que ficaram para a eternidade acusando adversários, ou suas esposas de práticas sexuais desviantes. O problema é quando as pessoas ignoram a perfídia e a difamação e tomam como verdade. Aliás, o filme A Favorita, que não é sobre Roma, se constrói todo em cima de uma difamação tomada como verdade pelos roteiristas e diretor.
No fim das contas, o que está na mesa, ou na cama, não é o que se faz entre quatro paredes, mas quem está na posição de domínio e, o que é mais importante, se a coisa se torna PÚBLICA. No sigilo, ninguém tinha nada a ver com isso. Parece um pouco com nossos dias, não é? A imagem pública do romano, especialmente os de boa família, era muito importante para ele mesmo e para o clã. Estamos falando de papéis de gênero (*expectativas de comportamento masculino e feminino em uma dada sociedade*), mas, também, de poder econômico e político.
De resto, houve mudanças com a introdução do cristianismo, mas mesmo nos discursos medievais, o que continuava em jogo era a mesma ideia, quem faz o que com quem, quem está em posição de domínio. Tanto que as penitências eram diferenciadas a partir das práticas e dos sujeitos envolvidos. E recomendo o livro “Sexuality in Medieval Europe: Doing Unto Others”, da historiadora Ruth Mazo Karras. Deve ter em *.pdf por aí, aliás, os outros dois que eu citei, são fáceis de achar em português para baixar na internet.
De qualquer forma, destacar que o exercício da sexualidade é histórico e, não, natural, parece ser importante em um momento como o nosso, afinal, vivemos um embate público entre grupos que querem naturalizar comportamentos, gostos, desigualdades roubando-lhes a sua historicidade. Vamos torcer para que o livro da espanhola saia em português. Só há versão Kindle no Amazon e está bem em conta, eu diria.
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