Vale Tudo, de Gilberto Braga (*porque a grife é dele, apesar do Aguinaldo Silva e Leonor Bassères*), é vista como a melhor novela do autor e, para alguns, a melhor novela da Globo em todos os tempos. O fato é que a telenovela de 1988-1989 é lembrada até hoje como um marco na TV, especialmente, por algumas de suas personagens e cenas icônicas. As vilãs Odete Roitman (Beatriz Segall) e Maria de Fátima (Glória Pires), o igualmente vilão Marco Aurélio (Reginaldo Faria), o amoral César (Carlos Alberto Riccelli). Mesmo tendo sido talvez pioneira por ter uma mocinha que não era jovem, Raquel (Regina Duarte), foram os maus, como normalmente acontece nas novelas mais importantes, que mobilizaram a audiência.
Remake é algo mais comum do que a gente gosta de admitir, mas é realmente muito complicado refazer uma obra que é considerada modelo. Deve ser um peso muito grande para um ator ou atriz encarnar uma personagem que se fundiu ao seu intérprete. De todas as personagens da novela, Odete Roitman é Beatriz Segall. Para quem não viu a novela na sua exibição original ou nas suas muitas reprises, tratava-se de uma empresária e herdeira que odiava o Brasil, os brasileiros, era elitista ao extremo e despejava toda sorte de atrocidades. A graça é que há quem veja Odete como o modelo para a Senhora dos Absurdos do Paulo Gustavo, mas o fato é que está cheio de Odetes Roitman por aí. Odete seria uma bolsovelha chique, não precisaria de atualização nenhuma.
Eu consigo imaginar a personagem tecendo comentários elitistas e racistas sobre Lula sem problema algum, aliás, de tudo o que há na novela, Odete Roitman seria a coisa mais fácil de atualizar. O problema é quem iria encarná-la. Renata Sorrah seria a minha aposta. Acredito que a atriz, que fez a Heleninha, filha alcoólatra a vilã na novela original, é a melhor escolha para ser colocada nessa fogueira. Um aspecto que o vídeo do Coisas de TV apontou é a idade das personagens, que os melhores atores e atrizes para os papéis seriam bem mais velhos do que os que viveram as personagens nos anos 1980.
Odete Roitman tinha por volta dos 60 anos, menos até, apesar de seu ar classudo a fazer parecer mais velha, Raquel teria 40 anos. Não vejo como um problema, as mulheres, basta pegar as estatísticas, tem filhos mais tarde hoje. Poderiam fazer uma atualização das idades das personagens e não seria uma questão. Agora, mais difícil será escalar atrizes negras para Odete, Raquel e Maria de Fátima, como parece ser a vontade da emissora.
Vamos lá, se colocarem Odete Roitman como uma atriz negra, ela teria que ser uma negra racista que ascendeu por casamento, ou herança. Se veria como uma exceção meritocrática, talvez. Mas quem seria a Odete Roitman negra? Só que não parece ser ela, Odete, que querem colocar como negra, então, a coisa fica realmente complicada, porque a vilã, mantidas suas características, JAMAIS aceitaria uma nora negra. Odete Roitman era racista até o fundo da alma e mesmo que Maria de Fátima fosse um daqueles casos de pessoa socialmente branca filha de mãe negra, ela não a aceitaria, porque seus netos poderiam nascer negros. Entendem o ponto? Ou Odete Roitman é negra, e toda a sua família teria que acompanhá-la, ou nenhuma das três pode ser. Isso não significa que o elenco principal precise ser branco como o original.
Solange, a jornalista que namorava Afonso, o filho de Odete Roitman antes de Maria de Fátima e era desprezada pela vilã, poderia ser negra. O racismo poderia ser um fator a mais nessa rejeição. Clara Moneke, que eu preferia que escalassem para a Mariana de Renascer, poderia ser colocada para ser a Solange e certamente faria um ótimo trabalho. Marco Aurélio, César (que chegou a ter um caso com Odete), Ivan (par romântico de Raquel) também poderiam ser negros. Todos são personagens importantes na trama. Enfim, para escalar Raquel ou Fátima negras, porque elas são pobres, ou começam a trama assim, teriam que mexer na estrutura da novela; se é para mexer no trio de protagonistas, teriam que começar por Odete Roitman e isso não vai acontecer.
O fato é que remake de uma novela contemporânea é algo muito complicado. Quando a gente se aproxima de uma Vale Tudo, ou uma Elas por Elas, estamos assistindo uma novela de época, porque é assim que o material acaba parecendo. Uma novela que foi pensada para ser de época é muito mais fácil de atualizar, porque, efetivamente, o original já está falando de um passado distante. Em uma novela contemporânea que sofre remake é preciso pensar em atualização das tecnologias, das relações étnico-raciais, de gênero etc. Muitas leis mudaram, ou foram criadas, inclusive impactando a trama original.
Por exemplo, Marco Aurélio morria de medo que seu filho, Tiago, fosse gay. O rapaz não era, mas poderia ser em uma nova versão, ou será que não? Se não havia negros no elenco principal da trama, também não havia ninguém que não fosse hetero. Sim, eu sei, eu sei como foi o final do César, mas ele não conta, ele faria tudo por dinheiro. Também não estava evidente que a irmã de Marco Aurélio tinha uma companheira, era algo tão velado que muita gente só entendeu no final do que se tratava. a Valéria criança só descobriu nos últimos capítulos da trama. Aliás, hoje, a trama da herança quando uma delas morre não seria um problema como era nos anos 1980. Bastaria que elas tivesse se casado. Percebem que a atualização é algo delicado.
Enfim, queria comentar sobre isso, primeiro, porque acredito que é um trabalho colossal querer atualizar uma trama como a de Vale Tudo; segundo, porque tenho pena das atrizes que pegarem Maria de Fátima ou Odete (*Raquel é mole*); terceiro, porque vai ser muito problemático enfiar diversidade racial nesse trio. Por outro lado, aproveitando a viagem, a Folha de São Paulo trouxe uma matéria sobre a presença da Julia Quinn, de Bridgerton, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. A autora disse o seguinte em entrevista:
"Quando eu mostro pessoas negras passando na TV, isso simplesmente está ali, faz parte da cena. Eu teria que fazer isso muito de propósito num livro, chamar muita atenção. Teria uma sensação de ‘por que você está descrevendo tanto esses personagens, está tentando provar um ponto?’" É uma preocupação em evitar esfregar demais o nariz dos leitores no assunto, quando na TV isso pode ser delineado de forma mais natural. Além disso, ela diz não querer "fazer diversidade pela diversidade". "Se for para fazer, quero fazer bem. Para entrar na cabeça de uma personagem como só um livro entra, você tem que saber da forma mais sensível e respeitosa possível como certas questões históricas afetaram as pessoas não brancas. Se você fizer isso mal, pode causar muito mais dano."
Os livros dela, pelo menos os que eu vi da série Bridgerton, são somente medianos. Tendo lido muitos livros desse tipo que ela escreve, o que eu posso dizer é que ela faz a mesma farofa sempre. Não ousa quase nada, além de reproduzir uns papéis de gênero bem arcaicos, mesmo sendo bem moderninha quando lhe interessa, aliás, fiz texto sobre isso. Tentar criar um enredo com um elenco diverso a obrigaria a lidar com dramas maiores do que "me surpreenderam com o boy rico e lindo do livro em uma situação comprometedora e tendo que casar com ele".
E, sim, havia negros e gente de outras etnias circulando na Inglaterra da época dos livros dela (Regência). Se Jane Austen criou uma mocinha mestiça e rica em Sanditon (*livro inacabado da autora*), ela conseguiria, também, no século XXI, com toda a bagagem e evidências históricas disponíveis fazer o mesmo. Criar um romance de época com um mocinho negro, ou indiano, ou uma mocinha mestiça, ou qualquer coisa que saísse desse padrão branco que ela escreve. Ela somente não quer, ou não se importa. Seria mais honesto, e isso eu respeito, ao invés de dar desculpas ridículas, dizer que não quer escrever histórias diversas, que se sente mais confortável usando das fórmulas que deram certo com ela. Estaria tudo bem e o dinheiro continuaria entrando na conta de qualquer jeito.
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