sábado, 23 de setembro de 2023

Comentando Perdida (Brasil/2023): Uma fantasia escapista que homenageia Jane Austen

Ontem, assistir ao filme brasileiro Perdida, baseado no livro homônimo de Carina Rissi.  Não li o livro, nem o lerei, mas o filme é uma comédia romântica boba e  simpática e que não deixa nada a dever a similares norte-americanos, isto é, o fato de ser brasileiro não é justificativa para avaliar de forma mais dura o material.  Cheguei a rir em alguns momentos, sei que alguém viu Lost in Austen antes de escrever o livro, ou fazer o filme, e, provavelmente, logo irei esquecer de maiores detalhes da história, mas deixo registrado que Perdida é o melhor exemplo de uso de elenco color blind que assisti ultimamente.  Mas vamos ao resumo.

Sofia (Giovanna Grigio) é uma jovem moderna e independente, por ter sofrido algumas decepções amorosas, ela abomina (teme) a ideia de casamento.  A moça  trabalha em uma editora e está profundamente envolvida na produção de uma edição de luxo de Orgulho & Preconceito de Jane Austen.  Especializada em literatura inglesa, ela ama as obras da autora e os romances em seus livros são os únicos nos quais acredita.  Sofia tem seu projeto criticado por um colega de trabalho, que considera Jane Austen ultrapassada.  Ela estava interessada no rapaz e se decepciona.  Seu chefe também não parece muito empolgado com o projeto ao qual a mocinha havia se dedicado intensamente.  

Depois do embate pelo projeto, ela está furiosa e derrama café e estraga o seu celular, além de molhar um envelope com um original que uma estranha mulher havia lhe entregado mais cedo.  Para piorar, quando está em um barzinho depois do expediente, sua melhor amiga (*não consegui localizar o nome da atriz*) avisa que vai se mudar para a Austrália com o namorado e Sofia termina não recebendo bem a ideia.  As duas se desentendem.  Voltando para casa, Sofia pega um Uber e acaba em uma conversa louca com a motorista (Luciana Paes), que ela já tinha encontrado antes, mas não se lembra direito.  Como havia estragado o seu celular, a mulher lhe empresta o seu e vai embora deixando Sofia com o aparelho.

Este aparelho é mágico, a mulher, que se chama Abigail, é sua safada madrinha (*é o que está no celular dela*), e Sofia acaba sendo transportada para um outro mundo, ou seria o passado?  Lá ela encontra com um jovem chamado Ian Clarke (Bruno Montaleone), que a ajuda e, percebendo o estado de confusão mental da moça, a leva para sua casa. Conforme os dias vão passando, Sofia e Ian se apaixonam perdidamente um pelo o outro, mas a mocinha não sabe se deseja ficar, ela está confusa e dividida entre o seu mundo, a tecnologia, e o amor que acredita que pode ser verdadeiro.

Aviso que darei spoilers, não acho possível comentar o filme de forma apropriada sem revelar informações que podem, sim, tirar o prazer que algumas pessoas sentem ao assistir um filme.  Perdida investe pesadamente naquele clichê da mocinha obcecada por Jane Austen e, por conseguinte, por Mr. Darcy (*e sua encarnação como Matthew Macfadyen*); peguem Lost in Austen, ou Austenland e confirmem.  Há os que apontam dentro do próprio filme que acham o material de Austen antiquado, ou Mr. Darcy chato, mas pouco importa, nossa mocinha, como qualquer fã da autora, não está nem aí.  

Sofia é simpática, isso é fundamental para que a gente goste da protagonista.  Patricinha, meio sem noção, mas definitivamente boa gente.  E ela é uma profissional de verdade, seu emprego é importante e querido para ela, não é como a média das protagonistas desse tipo de história, que são mulheres frustradas no trabalho e na vida amorosa.  Ou seja, mesmo que o filme não explore isso de forma mais profunda, a escolha entre o presente e o passado é difícil.  Sim, verdade, mas ela é órfã, aparentemente sem irmãos ou irmãs, ou mesmo um animal de estimação, sua melhor amiga está indo embora, ou seja, não há quem deixar para trás.

Falando em passado, não é bem passado, a fada madrinha deixa isso muito claro.  Sofia não voltou para o Brasil de 1830.  No filme, é como se ela estivesse dentro de uma realidade alternativa na qual, inclusive, Jane Austen NUNCA existiu.  Sabemos disso, porque o mocinho, Ian, tem uma vasta biblioteca, inclusive com autores modernos para a época, e um nome inglês que sugere a origem de sua família, mas ele desconhece em a autora de Orgulho & Preconceito e qualquer de suas obras.  É Sofia quem termina por lhe dar a amostra da edição que está produzindo e o introduz ao universo de Austen.

Algo importante, só ouvi o nome de um país o filme inteiro, Inglaterra.  É lá que mora a tia de Ian e sua irmã, Elisa Clarke (Nathália Falcão).  Onde estamos?  É um Brasil de romance de época moldado a partir de uma Inglaterra misto de Regeência e Era Vitoriana aos moldes das toneladas de romances populares que estão no Amazon, e sem referências políticas evidentes.  É um lugar onde os marcadores raciais não existem.  Não é como em Bridgerton, que tenta de forma pífia explicar por qual motivo não existe racismo e escravidão.  Em Perdida, as pessoas de fato parecem não ter cor, isso é color blind de verdade.  Claro, o mocinho e a mocinha são atores brancos, isso fala muito sobre a produção do filme, mas isso não influi na dinâmica da história no mundo de fantasia criado pela fada madrinha.  

Perdida se passa em um mundo de fantasia inspirado nos romances de Austen, com dupla moral e mulheres com poucos direitos, classes trabalhadoras invisíveis e, no caso do filme, sem que as pessoas se perguntem de onde vem o dinheiro.  Neste caso, está tudo dentro do esperado desse tipo de produção.  Racismo é anulado, questões de gênero, não.  E a mocinha escolhe onde deseja estar movida pelo amor, porque a ideia do filme é vender que os sentimentos estariam acima da razão e do medo.  Diferentemente, do que ocorre em A Rosa Púrpura do Cairo, a mocinha escolhe o sonho.  

Claro, que o filme poderia ter nos oferecido uma visita de Ian ao nosso mundo contemporâneo, como ocorreu com o protagonista do filme de A Rosa Púrpura do Cairo e com Mr. Darcy em Lost in Austen.  Seria divertido.  Aliás, acho que Perdida poderia render uma boa série com quatro episódios.  Haveria tempo para aprofundar a história e criar algumas situações divertidas.

O conjunto de personagens do filme não é muito extenso.  Há os do presente (*melhor amiga, colega de trabalho escroto, chefe*), há os do passado (*em maior número*) e a que transita entre mundos, a fada madrinha.  Os do passado são os meus importantes.  Nathália Falcão é uma gracinha e estava linda com o figurino de época, as cenas que mostram sua fascinação pelos óculos escuros da mocinha ficaram muito boas.  Bia Arantes, que estava linda, também, era uma cópia da irmã de Mr. Bingley em Orgulho & Preconceito (2005), cabelo, figurino, postura, só que um pouco robótica, infelizmente.  Emira Sophia, a neta da personagem de Lucinha Lins, poderia ter rendido mais se fosse uma minissérie, a má influência da mocinha sobre a menina reprimida ficou evidente, mas poderia ser melhor.

E o mocinho?  Ai... Ai... Bruno Montaleone é muito bonitinho, fica bem em roupas de época, mas ele é fraco como ator.  Pode ser que melhore, talvez não tenha se adaptado bem a um papel de época, mas ele me lembrou Rodrigo Santoro no início de carreira.  Eu dizia que ele era como uma planta ornamental, linda, mas sem expressão.  Pior, é que eu só ficava me lembrando do Fábio e da Larissa do Coisas de TV chamando o moço de "Matheus Pinto de Ouro" em suas resenhas de Verdades Secretas II.  

Falando nisso, há uma cena de sexo bem casta no filme.  Eu realmente não esperava.  Achei que ela veio cedo demais e o mocinho não se comportou como deveria.  Primeiro, não se preocupou com a reputação de Sofia e a colocou fora de seu quarto de forma discreta; depois, não lhe fez uma proposta de casamento de imediato no dia seguinte.  Acredito que as deficiências dramáticas do ator não ajudaram muito a criar um clima.  E há toda uma pressão da sociedade, especialmente, através do conservador e preconceituoso Dr. Almeida (Hélio de la Peña) para que ele se case para dar exemplo e preservar o bom nome da família.  Sendo Ian tão jovem, dono de suas propriedades, bom administrador, ele não teria que se preocupar com essa urgência em um mundo como o da história.  Ficou estranho isso.

A protagonista, Giovanna Grigio, está muito bem.  A atriz é bem competente e até se sairia melhor se o roteiro exigisse mais.  Me incomoda, no entanto, que ela saiba dançar e montar à cavalo com tanta desenvoltura.  Ela deveria cometer algumas gafes, a única que é explorada de forma mais convincente é a falta de papel higiênico mesmo.  Falando em Bechdel Rule, o filme cumpre, sim, tem várias personagens femininas com nomes, elas conversam entre si e não somente sobre um homem, até porque, Sofia, a forasteira de hábitos estranhos, que fala de forma esquisita, é o principal assunto de todo mundo no filme.

Já caminhando para o fim, preciso falar de figurino.  No geral, as roupas das personagens principais são muito bonitas, salvo as de Emira Sophia, eu diria.  Nathália Falcão ficou particularmente linda em seu vestido azul do baile.  Bia Arantes também tem alguns vestidos muito bons, especialmente o verde do baile.  Agora, o vestido de baile de Sofia ficou estranho, mas o resto das roupas era OK.  Achei curioso que optaram por colocar todos dançando da mesma maneira e ela e Ian de forma diferente.  Agora, mesmo bonito, o figurino era uma salada.

Deram a data, 1830, mas os vestidos das protagonistas pareciam de vinte anos antes.  Eram mora Império/Regência, não dos anos 1930.  Por qual motivo não colocaram o filme entre 1810-1815? Lucinha Lins parecia estar vestindo roupas do final do século XVIII e me lembrei de Lady Catherine de Burgh em Orgulho & Preconceito (2005). Mas eis que no baile de Elisa, ela aparece usando um típico penteado maluco dos anos 1830.  E havia pelo menos uma figurante no teatro com uma roupa que gritava década de 1890. Sei lá, a falta de coerência me incomodou um tanto.

É isso.  Não sei se Carina Rissi é mais precisa em sua história e geografia nos livros, não os li.  Já escrevi sobre as acusações que lhe fizeram por omitir a escravidão e oferecer ZERO diversidade.  Só que isso, no filme, da forma que foi construído, não vem ao caso, é irrelevante, porque salvo a data, nada nos obriga a tentar imaginar que estamos do Brasil da mesma época, ou em qualquer lugar de nosso mundo.  

Perdida é uma peça escapista que celebra Jane Austen (*há uma carta muito importante na história, nada mais austeniano*) e que não tem vergonha de defender que um mundo de fantasia (*não o passado, vejam bem*) sem direitos para as mulheres, tecnologia, vacinas é a melhor opção para uma patricinha entediada se o boy for moreno, rico e gostoso.  Agora, a fada madrinha avisou que a escolha seria definitiva, sem volta.  Já era.  É basicamente isso e é ótimo ver uma comédia romântica brasileira descerebrada conseguindo um lugar ao sol.

1 pessoas comentaram:

Assisti o filme e gostei, apesar de algumas coisinhas. Achei que é um filme leve, para não ficar pensando muito.

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