Nada tenho contra material "color blind", isto é, filmes e séries que escalam um elenco diverso sem levar em consideração a etnia das personagens originais, porque é como se NINGUÉM tivesse cor. Muito Barulho por Nada do Kenneth Branagh é assim e é muito bom. A série do Channel 5 de Ana Bolena, que eu resenhei aqui, é desse jeito e é ruim, porque não deveria separar os bons e os maus da história a partir da sua cor de pele, sugerindo sentidos que não deveriam estar lá. O novo Persuasão da Netflix é ruim, mas ser "color blind" nada tem a ver com isso. E Bridgerton da Netflix não é "color blind", simplesmente se passa em um linha do tempo de história alternativa no qual o racismo desapareceu, mas somente ele, continuamos tendo machismo, homofobia e diferenças de classe social. Gosto de Bridgerton com muitas ressalvas. Estabelecido isso, uma das notícias que estou na fila para comentar é a escalação de Grazi Massafera e David Junior como protagonistas de Dona Beja, primeira novela brasileira da HBO-Max que está em produção.
Já faz mais de ano que anunciaram que Dona Beja estava em pré-produção e que Massafera seria a protagonista. Até agora, não ficou claro para mim se será realmente um remake da novela da antiga Rede Manchete (*que tinha "i" no nome Beja*), exibida com grande estrondo em 1986, ou será uma nova aproximação em relação à personagem histórica, Ana Jacinta de São José (1800-1873). Vou começar comentando a história da personagem em linhas gerais e seguirei para a minha questão do titulo.
Ana Jacinta de São José não nasceu em Araxá (MG), mas chegou à cidade com os avós e a mãe em 1805. Quando estava na adolescência e noiva (*na novela o nome do rapaz é Antônio, mas o real era Manoel Fernando Sampaio*), o ouvidor da rainha D. Maria I, Joaquim Inácio Silveira da Motta, cai de amores por ela e a sequestra, no incidente, seu avô é morto. A moça, então com 15 anos, é obrigada a se tornar sua amante. Sua beleza é notória e ela consegue acumular grande fortuna, presente do ouvidor e de outros homens (*na novela, ela se vinga colocando-lhe os chifres*).
Dois anos depois, o ouvidor é chamado ao Rio de Janeiro por D. João VI e decide "libertar" Beja, que retorna para Araxá com grande fortuna, mas é recebida, especialmente, pelas mulheres da cidade como uma ameaça, uma sedutora que, entre outras coisas, causou a morte do próprio avô. Impossibilitada de se casar de forma honrada, seu noivo a trocara por outra e não iria se unir a uma mulher manchada, e furiosa com o tratamento recebido, ela decide montar um salão sendo a sua única cortesã. Todas as noites receberia homens na Chácara do Jatobá e ela escolheria se passaria a noite com um deles. A Beja original teve duas filhas, uma com o antigo noivo e outra com outro homem. Beja se envolveu nas revoluções liberais dos anos 1840, que agitaram Minas Gerais e São Paulo no início do governo de Pedro II, e terminou sua vida de forma obscura e convencional na cidade de Estrela do Sul. Já temos muito de romance e fantasia nesse resumo que eu fiz, porque História e lenda se entrelaçam no caso da personagem, mas Beja de fato existiu.
A novela da Manchete foi um grande sucesso e era proibida na minha casa, porque boa parte da propaganda era em cima do apelo sexual de Maitê Proença. Lembro de ter visto um capítulo escondido com os meus dez anos de idade e só fui ver a novela adulta. Ela nem era tão escandalosa assim, mas fazia discussões que eram muito mais avançadas do que as que apareciam nas novelas da Globo, especialmente, em relação à papéis de gênero e falsa moral, além de ser muito mais crua e realista em alguns aspectos, algo típico das produções da Manchete. A emissora também capitalizou em cima do par Maitê Proença e Gracindo Jr., que já tinham atuado junto na minissérie A Marquesa de Santos (1984). Logo, Maitê Proença estaria associada a duas mulheres "malditas", a Marquesa e Beja. OK. O tempo passou, temos a tal proposta de remake de Dona Beija.
Tudo muito bom, acho ótimo, mas eis que a manchete é "David Junior é escalado como galã de Dona Beija e revive casal com Grazi Massafera.", ambos foram par romântico em Bom Sucesso, novela anterior da autora de Vai na Fé (*e meu texto sobre a novela ainda não está pronto*). Ele será Antônio, o noivo de Beija. Ora, Antônio era um poderoso latifundiário, criador de gado e dono de escravos (*assim como Beija*), homem branco, ou que assim era considerado, portanto. Como escalar um ator negro para o papel sem que a novela seja "color blind"? Estou reclamando, não. Para mim, que venham muitas séries, filmes e novelas históricos em que o elenco não seja escolhido para atender critérios étnicos-raciais, o que quero saber é outra coisa.
Se não criarem um Brasil alternativo Bridgerton like, o que vou achar uma pobreza absurda, e estivermos em nossa linha temporal, como irão tratar a escravidão. Pensem comigo, se membros das elites brancas forem interpretados por negros, por qual motivo não colocar atores e atrizes brancos como escravizados? Eu gostaria de ver a ousadia de colocar a atriz louríssima como escravizada, falando de suas raízes no continente africano e sendo abusada por um senhor negro (*talvez?*). Eu acho que irão fazer isso? Não. E não imagino como essa escolha de um ator negro para ser Antônio possa dar certo sem que seja "color blind" de verdade.
Agora, é muito menos complicado criar um material "color blind" em um ambiente no qual não exista escravidão, ainda que tenhamos diferenças de classe, ou status social. Não se cria o mal estar salvo entre os racistas assumidos, ou que não ousam assumir que são. Eu estou pensando em algo mais amplo, como essa história irá se organizar. Porque mesmo um Amor Perfeito, esquecível novela das seis da Globo, estamos em um mundo pós-escravidão. Lá, o racismo é subdimensionado, esquecido até, mas não havia mais a instituição jurídica da escravidão. Em Dona Beija estamos muito, mas muito longe mesmo, da abolição. Vai ser bem estranho isso.
Mas, por enquanto, são somente as minhas encucações. Eu gosto da Dona Beija original. É uma novela com muitos méritos que vão muito além de Maitê Proença imitando Lady Godiva e cavalgando nua pelas ruas de Araxá. Revisitar uma novela que foi subversiva em sua época poderia se prestar a uma série de coisas, inclusive mostrar o quanto as nossas produções se tornaram menos corajosas para levantar alguns temas. Enfim, vamos esperar. Tenho HBO-Max e devo dar uma olhadinha quando estrear. E é bom conseguir escrever um post robusto para o blog. Estou tão cheia de trabalho, que estou sendo negligente com o Shoujo Café.
0 pessoas comentaram:
Postar um comentário