Ontem, consegui meu selo Barbenheimer, porque, finalmente, assisti ao filme sobre o físico que liderou o Projeto Manhattan e que produziu a primeira bomba nuclear. A película, um projeto pessoal do seu diretor, produtor e roteirista, Christopher Nolan, é um filme difícil em vários aspectos. Primeiro, é complicado enquadrá-lo em um só gênero, não é somente uma cinebiografia, mas, também, um drama de tribunal, um thriller. Além disso, é longo e com um ritmo irregular, há momentos primorosos e outros que poderiam ser repensados. Ainda assim, ou por tudo isso, trata-se de uma grande produção hollywoodiana como há muito não se via nas grandes telas, um tipo de filme que, talvez, esteja em extinção.
Com uma narrativa não linear e feita de idas e vindas, o filme revisita a vida de J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy) a partir da audiência se de segurança da United States Atomic Energy Commission (AEC), em 1954, feita para analisar a fidelidade do físico aos Estados Unidos da América. Em pleno Machartismo, Oppenheimer, um homem com grande influência política e científica tinha envolvimento com vários indivíduos ligados ao movimento ou partido comunista. Seria ele um espião? Um traidor? Como confiar nele, mesmo tendo sido consagrado como o herói que apressou o final da 2ª Guerra?
A partir da audiência, revisitamos o passado de Oppenheimer, seus estudos de doutorado na Europa, sua genialidade, os físicos que conheceu, seu engajamento em causas sindicais, sua posição contra a segregação racial, o apoio aos refugiados da Guerra Civil Espanhola (1936-39). Há uma montagem da equipe do Projeto Manhattan, que raramente aparece por nome, normalmente, usam a localidade para se referir a ele, Los Alamos, além das dificuldades em compor uma equipe de especialistas, o desenvolvimento da bomba em si, as das questões éticas e o que veio após o sucesso da operação. O filme atenta, também, para a vida pessoal de Oppenheimer, seu apego ao irmão, Frank (Dylan Arnold), e o trágico romance com Jean Tatlock (Florence Pugh).
Eu não sou uma entendida em física, muito menos no cinema de Christopher Nolan, então, não vou me dar ao desfrute de ficar comprando os filmes do diretor, ou rotulando Oppenheimer a partir de outras obras dele. Por exemplo, dizem que ele não sabe construir personagens femininas, quando for analisá-las, porque o farei, não terei em mente outros filmes de Nolan, mas o que eu assisti em Oppenheimer.
O que posso dizer de cara é que o som é um dos destaques do filme, mesmo em uma sala meia-boca como a que eu estava, houve momentos em que me senti envolvida pelos efeitos sonoros da produção. A cena da explosão teste da bomba é o auge, eu diria. Da mesma forma, na cena do confronto entre Oppenheimer e o promotor, Robert Robb (Jason Clarke), a música é tão intensa que, ao invés de ajudar na tensão, me irritou muito. É um barulho desnecessário.
Outro detalhe do filme é que ele mistura preto & branco e colorido. As cenas centradas no vilão, e peço desculpas se é um spoiler, mas é o que a personagem de Robert Downey Jr. é no filme, são todas sem cor. Curiosamente, as memórias ed Oppenheimer, o passado, é sempre colorido. Talvez, a intensão seria mostrar o quanto Lewis Strauss, o presidente da AEC é uma pessoa seca, sem imaginação e mesquinha. Quando Strauss está com Oppenheimer, tudo é colorido, talvez, porque ele seja contaminado, ou envolvido pela genialidade do outro. Enfim, Downey Jr. deve ser indicado ao Oscar de coadjuvante, para mim, é certeza. Ele está espetacular em Oppenheimer.
O filme é longo, isso todo mundo já sabe. Poderia ser mais curto? Realmente, não sei. Agora, é engraçado que os 20 minutos para a detonação da bomba no deserto são de fato 20 minutos, é uma sequência longuíssima. Não há concessões. Temos os preparativos, as várias estações de observação, as minúcias de um momento que foi o coroamento do trabalho de uma grande equipe (*de homens brancos*). Após o teste, o filme mostra o quanto que os cientistas perdem qualquer poder de decisão, a questão é militar, em quem a bomba será jogada, quando, não é mais um assunto de Oppenheimer e seus companheiros, alguns deles, com sérias questões de consciência, afinal, eles tem ideia do que poderá ocorrer e a nova arma não será usada contra os nazistas.
Agora, o que eu achei notável é que apesar de ser Oppenheimer o nome do filme, ele não cai em uma armadilha típica do cinema americano, que é transformar um trabalho de equipe em uma ação de um gênio, ou herói isolado. A bomba é um trabalho de equipe e é difícil até não se perder no meio de tantos cientistas que são reais. Acredito que para quem é da área, da Física, em especial, seja particularmente delicioso acompanhar as discussões e descobertas, a interação, mesmo que algumas cenas tenham sido inventadas para o filme, entre os inúmeros cientistas.
O filme poderia fazer concessões, eliminar alguns dos cientistas, mas não o fez, é muita gente no filme de verdade. E, ao longo da película, as diferenças entre eles, as dúvidas sobre como fazer a bomba e como ela será utilizada, as discussões éticas, elas estão na película. Oppenheimer é apresentado como gênio, ele é o diretor do projeto, mas ele não fez a bomba sozinho, ainda que tenha lucrado em termos de atenção pública (*positiva e negativa*) e em influência política. Cenas isoladas de Oppenheimer poderão ser utilizadas para discutir História da Ciência ou até ética nas escolas e universidades e isso é muito legal.
O Antissemitismo aparece em vários momentos. Oppenheimer é judeu, outros cientistas também o são. Algo que é muito bem apresentado, em cenas que são pequenas, estão aqui e ali, mas são bem elucidativas, é destacado o quanto a Alemanha estava na frente das pesquisas que poderiam levar à bomba, só que, por motivos ideológicos, Hitler perseguiu muitos dos cientistas judeus que faziam pesquisa de ponta, houve um verdadeiro êxodo de cérebros. Houve, também, a tentativa de desacreditar os estudos de Einstein. Alguns deles estiveram ligados ao Projeto Manhattan. O filme mostra Oppenheimer comprometido com a produção da bomba também como uma forma de se vingar dos nazistas. Não é algo central no filme, mas está lá.
Agora, há umas duas patriotadas que poderiam não ter ficado de fora, mas acredito que não seria cinema americano e este tipo de filme se coisas assim não estivessem lá. Oppenheimer tem um encontro fictício com Einstein (Tom Conti), o último entre os dois, no qual o pai da Teoria da Relatividade, fala da sua saída da Alemanha. Einstein sugere que Oppenheimer deve partir dos Estados Unidos, porque ele está sendo cruelmente perseguido e merecia mais que isso. Oppenheimer recusa a possibilidade, porque é um verdadeiro norte-americano. Mais tarde, na audiência de Strauss no Senado, que eu não vou detalhar, o nome de Kennedy, o futuro presidente, aparece para mostrar que ele entendia a grandeza de Oppenheimer e sabia reconhecer outro grande patriota quando via um. É a forma como o diretor compreende a História Norte-Americana inserida no filme.
Por fim, e isso é História, então não é spoiler, vamos para o futuro ver a reabilitação de Oppenheimer. Talvez, isso não precisasse estar no filme, mas a abordagem é interessante. A ideia é que ao reconhecer a injustiça para com Oppenheimer, os políticos e o governo dos Estados Unidos estavam aliviando a sua consciência, nada tinha a ver com o físico, mas com a necessidade de mostrar ao mundo que eles, os políticos, eram gente boa. A Caça às Bruxas atrapalhou e destruiu a vida de muita gente. O filme cita o irmão de Oppenheimer, impedido de lecionar e mesmo de deixar o país, porque lhe negaram o passaporte, e do físico Giovanni Rossi Lomanitz (Josh Zuckerman),que até ser reabilitado trabalhou até como operário.
O filme é muito competente em mostrar que a perseguição aos comunistas é coisa anterior à Guerra Fria, que a animosidade aos soviéticos não esperou a derrota alemã, e como o FBI estava de olho em muita gente no pais desde (*pelo menos*) os anos 1930. Atividades sindicais poderiam tornar alguém suspeito, as reuniões as quais o sujeito atendia poderiam determinar seu futuro profissional. Oppenheimer parece atrair comunistas, talvez, ele mesmo fosse um, e não tinha muito tato ao expressar ideias suspeitas e que se tornaram ainda mais após o fim da 2ª Guerra. Verdade, ou não, parte do esforço do filme é de apresentar Oppenheimer como alguém que lutou sinceramente pelo controle das armas nucleares, que não tinha a postura belicista de outras personagens ao seu redor. Sua queda está ligada a isso.
E, como estamos em um site feminista, preciso falar das mulheres. A graça é que todas as que tiveram relevância na vida de Oppenheimer eram comunistas com carteirinha do partido e tudo mais e o filme dá destaque para duas, a esposa do físico, a bióloga Katherine (Emily Blunt) e a psiquiatra Jean Tatlock (Florence Pugh), apresentada no filme como o grande amor do protagonista. Primeira coisa a pontuar, o filme é sobre Oppenheimer e sobre a bomba, não é sobre essas mulheres, por isso, não cabe exigir que elas tivessem maior importância no filme do que tiveram. A questão, pelo menos para mim, é sempre como elas aparecem.
Por exemplo, o roteiro precisava ser mais claro sobre a importância de Jean Tatlock para Oppenheimer, de como eles tiveram que se separar por motivos políticos. A ênfase é muito mais no quanto eles eram sexualmente compatíveis do que em qualquer outro aspecto da relação entre os dois. A sequência que revoltou os direitistas indianos, pois usa um livro sagrado, o Bhagavad Gita em uma cena de sexo, poderia nem estar no filme. A meu ver, não tem função na narrativa, pois não ficou claro que o livro tivesse a importância que teve na vida do físico, mas Pugh está pelada e é assim que ela aparece em suas cenas mais importantes do filme.
E, cabe pontuar, quando eles se conhecem e discutem por motivos políticos, sua visão sobre o comunismo, Oppenheimer faz questão de dizer que leu os três volumes do Capital de Marx em alemão. Essa carteirada é intelectual, como se ler no idioma original tornasse a compreensão de um trabalho melhor, ou pior (*há idiotas que dominam muitos idiomas*), mas é, também, uma forma de mostrar o quanto Jean era insignificante como mulher diante de um homem e como intelectual frente Oppenheimer. E, curiosamente, é a cena que dá início ao romance entre os dois.
A forma como as poucas personagens femininas são apresentadas é complicada, salva-se a esposa do Oppenheimer, e Emily Blunt está muito bem em todas as suas cenas, mas, de resto, tenho muito a reclamar. E a presença fantasmagórica dela, já que Tatlock cometera suicídio, na sala de audiência foi constrangedora. Oppenheimer nu, como metáfora da humilhação, não seria um problema para mim, mas a aparição da atriz nua em uma cena de sexo foi mero fanservice. Oppenheimer se lembra de várias pessoas durante a audiência e temos flashbacks, não a figura de seu passado se materializando diante dos seus olhos.
O roteiro não é muito enfático sobre a pressão do governo norte-americano para que Oppenheimer, que era mulherengo e adúltero, se separasse de Tatlock. Certamente, o FBI tinha responsabilidade no agravamento da saúde mental da personagem de Pugh. Da mesma forma, o filme se omitiu em relação à depressão da esposa de Oppenheimer, enquanto residia em Los Alamos. Katherine é apresentada como alcoólatra, o que ela era de fato, mas desde antes do casamento dos dois. O agravamento parece estar, pelo menos no filme, muito mais ligado ao peso da maternidade aos moldes da década de 1940, do que à pressão imposta à família pelo FBI.
Ainda assim, eu considero que a esposa de Oppenheimer é uma das personagens mais importantes do filme. Salvo nas cenas de quando conhece Oppenheimer, que são um tanto decepcionantes, Emily Blunt brilhou. E sua personagem é a única que percebe que Oppenheimer foi traído e se recusa a aceitar que ele se deixe massacrar em uma audiência de cartas marcadas. Mas quem vai ouvir uma mulher, ainda mais uma alcoólatra, quando todos os homens parecem acreditar que a causa poderia ser vencida? Dentro de um filme tão masculino, O filme foi bem correto em apresentar a coisa toda dessa forma.
Agora, uma crítica séria. Todos os cientistas do Projeto Manhattan eram homens. Eles têm várias juntos. De repente, lá pelas tantas, uma mulher aparece no meio deles e Oppenheimer a chama de Lilli (Olivia Thirlby). É coisa rápida, ela não tem falas. Fiquei com a pulga atrás da orelha e, ao chegar em casa, fui ver quem era a tal Lilli. Enfim, trata-se da química Lilli Hornig. Ela tem uma fala, quando é contratada como datilógrafa da equipe, mas conseguiu ter suas capacidades reconhecidas e foi promovida. Por qual motivo o filme não criou uma cena mostrando transição? Não há mulheres cientistas no grupo e, de repente, uma está lá e fazendo muita coisa, mas sempre em silêncio.
Seria uma forma de mostrar que havia mulheres cientistas em destaque no Projeto Manhattan, Hornig não era a única, mas ciências exatas são coisas de menino. Aliás, havia cientistas, homens e mulheres, que eram negros no Projeto Manhattan (*além de gente de outras etnias, vide a física chinesa Chien-Shiung Wu*). Aparece um cientista negro, mas eu não lembro de seu nome ser dito, ele entra no filme junto com o físico britânico que era espião soviético, e não há nenhuma outra pessoa negra entre os cientistas que aparecem em destaque no filme, menos ainda no fundo. Se vocês olharem minha resenha de Dunquerque, do mesmo Nolan, apontei o mesmo problema, o apagamento dos não-brancos que eram parte das tropas britânicas encurraladas na praia pelos alemães. Se o cinema não mostra, ainda mais um filme dessas proporções, é como se eles e elas não existissem.
Muito bem, o filme é baseado no livro Oppenheimer é baseado no livro Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano (American Prometheus: The Inspiration for the Major Motion Picture OPPENHEIMER), de Kai Bird e Martin J. Sherwin. Prometeu é um titã, uma personagem da mitologia grega surgida antes dos deuses. Ele, compadecido dos homens, teria roubado o fogo dos deuses (*a razão*) e lhes dado. Os seres humanos não se tornaram melhores, tampouco mais felizes, ainda que tenham conseguido se tornar inventivos e capazes de fazer coisas antes imaginadas. Prometeu foi punido pelos deuses, acorrentado em um rochedo, todos os dias uma águia lhe comia o fígado, que crescia para que a tormenta começasse no dia seguinte.
A analogia entre Oppenheimer e Prometeu se liga ao fato do cientista, orgulhoso de seus conhecimentos, ter dado à humanidade uma arma capaz de destruí-la. A visão dada pelo filme, talvez influenciado pelo perigo real de uma guerra nuclear em virtude do conflito entre Rússia e Ucrânia, é bem catastrofista, mas é bom dizer que Oppenheimer não recorre a um clichê comum do cinema norte-americano que é o de pintar cientistas como homens (*porque geralmente são apresentados como o sexo masculino*), que estão brincando de serem Deus, sim, o com "D" maiúsculo. Melhor assim.
É isso. Oppenheimer é um filme interessante, certamente, há questões no filme que me escaparam. Não sou física, mas como historiadora, me pareceu uma obra muito decente. Escorrega aqui e ali, há artigos na internet apontando as invenções do filme, mas consegue ser um espetáculo interessante. Poderia se r ais enxuto, poderia não tentar falar de tanta coisa, mas o resultado, no geral, foi muito bom. Apesar das críticas que vi, não considero que Nolan foi particularmente ruim ao retratar as mulheres, como se a maioria dos diretores do cinema norte-americano fossem brilhantes nessa área. Poderia ser muito melhor, mas conhecendo Hollywood, poderia ser muito pior. E, sim, Barbie e Oppenheimer movimentaram os cinemas, ainda estão, na verdade, e criaram o primeiro fenômeno de bilheteria pós-pandemia. O cinema vive e não depende somente e continuações de franquias.
2 pessoas comentaram:
1 dia desses verei o filme . Saber como começou a era nuclear.
1 dia poderiam abordar no cinema Von Braun...o criador dos mísseis balísticos V-1 e V-2... (embriões dos mísseis intercontinentais) do 3º Reich. Mais tarde Braun seria recrutado pela NASA... e levou os EUA ao espaço.
A gente não deve assistir filmes para estudar História, no máximo, para compreender um pouco do momento em que o filme foi produzido.
Postar um comentário