Esta imagem acima foi repassada para o grupo do Shoujo Café no Facebook. Pensei em deletar, mas vi uma grande oportunidade de fazer um post sobre os elementos presentes nessa foto, que está circulando no internet brasileira e, claro, tem como origem sites norte-americanos. Achei um post no Reddit com a foto e a mesma legenda, só que em inglês. Sabe, a "Tia do Zap" não foi inventada no Brasil. Enfim, primeira coisa, esta estátua não está no Japão, ele está na cidade chinesa de Heihe (黑河), Heilongjiang. Usando as palavras certas, a gente chega à várias fotos dela em sites de viagem, principalmente. Atribuir a obra de um povo a outro é um roubo, pode ser inocente, mas é um roubo sempre. Agora, por qual motivo dizer que está no Japão?
Bem, para reforçar a representação do povo japonês como sábio, é aquilo que o Normose chamou de "mito do japonês inteligente" (*recomendo o vídeo o canal*), uma representação social construída durante a Guerra Fria. O Japão é aliado dos EUA, a China, não. Criou-se, então, o "bom asiático" em oposição ao que continuava sendo o inimigo. Além disso, a imagem vem somar ao imaginário da internet brasileira sobre o Japão como aquela outra mentirinha (*porque é mentira mesmo*) de que somente os professores não precisam se curvar diante do imperador, porque professores, tão humilhados e agredidos (*caso 1 e 2*) no nosso país, seriam realmente valorizados no Japão. Todo mundo se curva no Japão, é a forma corrente de cumprimentar, o imperador é uma autoridade venerada e todos se curvam diante dele e professores não estão isentos. E, apesar do respeito confucionista às autoridades, a vida de professor não e tão tranquila assim. Sobre o tema, recomendo um post que eu fiz no Shoujo Café sobre como professores são explorados e mal pagos no Japão.
Segundo, bibliotecas inteiras cabem em um celular. Por mais que eu goste e livros físicos, eu sei que o espaço para colocá-los em nossas casas é cada vez mais restrito. Livros digitais são bem-vindos. Não é o celular o problema, mas o uso que se faz do aparelho. Uma pessoa pode ler milhares de livros, consultar enciclopédias e bibliotecas do mundo inteiro somente com esse aparelho. Tecnologia veio para nos ajudar e não deve ser demonizada. É isso que a estátua faz, mas existe um terceiro ponto, que talvez tenha escapado para a maioria, a estátua é gordofóbica.
O homem com o celular é gordo. Desde as vésperas do Renascimento (séc. XIV), no Ocidente, o gordo passou a ser associado à preguiça, falta de inteligência, feiura, desleixo etc. Um dos meus historiadores favoritos, Georges Vigarello, escreveu um livro inteiro sobre o tema. Nunca li nada sobre gordura na sociedade chinesa, mas é fácil encontrar material sobre como a melhora das condições socioeconômicas tem impulsionado a ganho de peso no país, agora, eu sei que na Índia, por exemplo, desde o final do século passado, a influência de representações ocidentais de beleza fez com que ser cheinho, algo que indicava boa saúde, acesso à alimentação e, claro, boas condições econômicas, passou a ter significado semelhante ao que se tem no mundo ocidental em geral. Em outros países nos quais a pobreza e a fome ainda são muito fortes, a gordura como signo de distinção social, beleza, continua presente.
Enfim, o homem gordo com o celular não é somente menos sábio que a menina, ele está vestido de forma relaxada, de bermuda e chinelo. Esses signos estão lá para enfatizar que o celular é a porta e entrada de uma série de males, a obesidade é um deles. Ninguém questiona um magro sedentário sobre sua saúde, afinal, ele é magro e isso é esteticamente agradável. Agora, uma pessoa gorda, seja ela saudável, ou não, seja ela ativa, ou não, será sempre questionada sobre a forma como conduz sua vida. Se uma pessoa emagrece por motivos de doença, muitas vezes recebe elogios e congratulações, afinal, até depressão ou mesmo um câncer pode ser benéfico, não é mesmo? Não é saúde, é estética. Para discussões sobre essa questão, eu recomendo o canal Não Sou Exposição, da nutricionista Paola Altheia.
A estátua pode, também, ter uma conotação misógina, porque em uma sociedade patriarcal, coloca um homem em uma condição ridícula e em desvantagem em relação a uma menina. Ou seja, um homem que não cuida de seu intelecto e sua saúde se torna inferior a uma menina, não é nem a uma mulher, mas a uma criança do sexo feminino. Não se trata de um elogio à sabedoria de uma menina, podem ter certeza. Mas não vou esticar mais. Sim, há muita coisa errada com essa estátua. Muita mesmo.
2 pessoas comentaram:
Muito bom seu comentário. Também gosto de NOrmose.
Ótimo texto. Quando vi esta imagem rodando, apenas pela estética da estátua já sabia que não se tratava do Japão. Todos os pontos sobre ela muito bem colocados. Perfeito!
Fico muito triste que as pessoas desvalorizem o poder da tecnologia bem usada.
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