Terminei ontem de assistir ao décimo segundo episódio da série Os Outros, do Globoplay. Eu não estava disposta nem a começar, porque os trailers eram yão insistentes e intrusivos que estavam me irritando. "Dona Cibele, estão batendo no Marcinho!", era a frase que se ouvia logo no início do trailer mais recorrente e eu ficava brincando com a minha filha e repetindo a frase, porque ela também já estava aborrecida. Quando abria um capítulo de Vai na Fé, a novela das sete da Globo no aplicativo, sempre entrava um trailer de Os Outros e se você não assistisse um número X de segundos, quando tentasse entrar no que você desejava ver, lá vinha de novo.
Não bastava o banner logo na entrada da plataforma, ou os trailers antes dos vídeos do Youtube. Enfim, a estratégia de marketing abusiva não funcionaria comigo se o Nilson Xavier não tivesse feito um vídeo sobre o início de Os Outros, ali, fiquei interessada. A série começa de um jeito, o conflito entre as famílias por causa de uma briga de dois adolescentes, e, depois, vira um trem desgovernado com uma série de situações muito violentas e angustiantes, até se tornar outra coisa perto do final.
Estou dizendo que é ruim? De forma alguma! Se eu não tivesse achado interessante, teria largado antes da metade. A cada capítulo, salvo os dois últimos, confesso, era um misto de quero desligar e quero ver o resto. Com dois capítulos semanais, a gente ficava sempre na ansiedade pelo que vem depois, fora isso, as interpretações são, em sua maioria, excelentes. Aliás, os problemas que me incomodaram imensamente, e que estarão somente no final desse texto, sequer aparecem nas resenhas da crítica especializada, que se concentra em interpretação, roteiro e direção. Agora, meu olhar feminista ficou atento a algo que é central na história, um clichê recorrente, mas tão recorrente, que a gente nem conta mais. Enfim, segue o resumo que está na Wikipedia com acréscimos meus.
Os Outros mostra o embate entre os casais de vizinhos Wando (Milhem Cortaz) e Mila (Maeve Jinkings); e Cibele (Adriana Esteves) e Amâncio (Thomás Aquino), por conta de uma briga de seus filhos, Rogério (Paulo Mendes) e Marcinho (Antonio Haddad), gerando consequências absurdas. Enquanto isso, Sérgio (Eduardo Sterblitch), um homem que sabe passar desapercebido entre as pessoas, se infiltra com carisma e sedução pelos grupos sociais, mas não dedica tanta atenção à filha, Lorraine (Gi Fernandes). Sérgio acaba vendo uma grande oportunidade de obter vantagens ao se envolver na briga entre os casais vizinhos e travar boas relações com Dona Lúcia (Drica Moraes), a síndica do Barra Diamond.
Apesar da proposta original, de como a história foi vendida, Os Outros é uma série sobre maternidade e como esse "dever" escraviza emocionalmente as mulheres, mantendo-as, inclusive, em casamentos infelizes. Pode mudar de rumo, pode parecer outra coisa, pode falar de milícia, mas o roteiro sempre retorna à temática da mãe. No centro desse drama, temos Cibele, defendida com intensidade por Adriana Esteves, uma mulher que vive para seu filho, só tem olhos para ele, o mantém em uma redoma. Mais adiante, e vou evitar spoilers, saberemos o motivo de tanta obsessão. A outra mãe é Mila, ela se submete a um marido machista e abusivo, interpretado magnificamente por Milhem Cortaz, para ficar perto do filho, que ela acredita estar perdendo para a daninha influência paterna. Mila tem uma relação difícil com sua própria mãe e queria fazer diferente com seu filho.
Rogério, e o jovem Paulo Mendes é a melhor descoberta dessa série, parra mim, está sendo criado pelo pai para ser como ele, só que um vencedor, alguém que vá além do que ele mesmo conseguiu. Ao longo a série, há os altos e baixos da personagem, no início, é fácil odiá-lo, depois, o compreendemos melhor, já na reta para o fim, o garoto mostra que é muito mais do que aquilo que o pai queria fazer dele e se reconecta com a mãe. Rogério foi a personagem que melhor evoluiu dentro da série, eu diria.
E há uma outra mãe, extremadíssima, aliás, Dona Lúcia, só que ela é mãe de pet. O vilão, Sérgio, percebe muito bem que a mulher amarga e corrupta só tem dois amores na vida, o marido preso (Guilherme Fontes) e a cadelinha Gigi. Quando Sérgio quer se vingar de Lúcia, quando ela não se mostra capaz de fazer o que ele deseja, ele vai atingir Gigi em uma cena que é uma releitura de outra famosíssima de O Poderoso Chefão. E Lúcia quer pagar na mesma moeda, uma filha por outra filha, mostrando que ela é tão ou mais descompensada que Cibele.
Falei em Sérgio várias vezes e é preciso ressaltar que Eduardo Sterblitch está muito bem. Conhecido por ser comediante, ele entregou um vilão quase impecável, porque lhe faltou alguma nuance, alguma dubiedade. Todas as outras personagens (*menos Marcinho, mas nem quero comentar*), mostram afeto e até conseguem esquecer suas desavenças em algum momento, menos Sérgio. Se eu pudesse propor alguma coisa, eu teria colocado um tiquinho mais de afeto, talvez algo até possessivo, na relação dele com a filha. Mesmo quando ele toma atitudes aparentemente para protegê-la (*do modo torto dele*), ele não parece amá-la. Enfim, acredito que Sterblitch corre o risco de virar opção para vilão em filmes, séries e novelas próximas.
A graça de Os Outros é que as personagens, mesmo um Sérgio, que fique claro, eram críveis. Todo mundo conhece, ou já conheceu, pessoas como aquelas. Um Wando, por exemplo, pode ser aquele seu vizinho bolsominion. Da mesma forma que relações abusivas como as e Cibele e Amâncio, porque ele sofre na mão dela, sim, ou de Mila e Wando são bem mais comuns do que a gente crê. E a série explorou muito bem esses pares feitos de opostos para criar situações ao longo da trama. Mila e Amâncio querem conciliar; Wando e Cibele desejam a guerra. Da mesma forma que expôs que mesmo quem parece compreensivo, cordial, pode, como no caso de Amâncio, assumir atitudes machistas em relação à companheira, também, porque estamos em uma cultura que é machista, que fique claro, e ninguém paira acima do social, mas está imbricado nele.
Garanto, caso você ainda não tenha começado a assistir Os Outros, que você será fisgado pelos dois primeiros episódios, os que efetivamente se centram na briga entre os garotos. A partir daí, a briga dos moleques começa a ficar no passado e temos outras tramas, como a da corrupção no Barra Golden, a revelação de que Sérgio é um miliciano, o adultério envolvendo os dois casais, até chegarmos no final, com um improvável Romeu & Julieta com desdobramentos trágicos como no original.
Eu não queria segunda temporada. Acredito que as personagens que ficaram pelo caminho vão fazer falta, aliás, já fizeram no próprio andar da temporada, mas o autor da série, Lucas Paraizo, avisou que já está com os doze próximos episódios rascunhados. Pelo que vimos do final da primeira temporada, o drama da maternidade extremada será explorado ao máximo. Isso é bom? Olha atrela as mulheres a sua condição materna é sempre ruim, mesmo que o material valha a pena, porque reduz às mulheres à capacidade de engravidar, parir e maternar. As três mulheres adultas da primeira temporada estão absolutamente escravizadas ao seu papel materno, uma ocupação integral e solitária em grande medida, é isso que as move boa parte do tempo, no caso de Cibele, o tempo inteiro.
A partir daqui, vou dar spoilers e entrar naquilo que mais me incomodou de fato. Pode ficar chato, mas se a série é realista, ela não podia sair delirando como delirou, se desconectando da realidade socioeconômica do país somente para colocar em cena um bairro conhecido da maioria dos brasileiros que vê TV e assiste noticiário, a Barra da Tijuca. Sabe o ex-presidente inelegível e seus amigos milicianos? Então, eles viviam no Vivendas da Barra. Acredito que a escolha derive daqui.
Pessoal, morar no Rio é caro, morar na Barra da Tijuca não é nada barato (*aluguel médio de 4 mil reais*), especialmente em um condomínio o nível do Barra Golden. Se além de você morar lá, ainda coloca seu filho em uma escola de elite, a onde Marcinho e Rogério estudam (*até que a escola some da série*) tem piscina olímpica coberta, você precisa ganhar muito bem. Só que os roteiristas queriam colocar em cena personagens da classe média baixa que pudessem estar mais próximos da (*suposta*) audiência da série, imagino. Daí, temos duas famílias com características suburbanas morando em um condomínio de quase luxo na Barra da Tijuca. Quer ver?
Amâncio é vendedor de eletrodomésticos em uma loja de shopping. Achei um site que estima o salário médio de um vendedor das casas Bahia em R$ 2.969 por mês (16/06/2023), não sei se com, ou sem, comissões, mas acredito que conta com elas. Como alguém como Amâncio arcaria financiamento de apartamento, condomínio, sustentaria carro, pagaria escola de filho, mais adiante na série, ele sai de casa e aluga um segundo apartamento no condomínio para si. Se a série é realista, coisas assim não poderiam acontecer. No primeiro episódio, sabemos que Cibele é contadora, mas ela é mostrada trabalhando ali e não mais, porque sua função na série é ser mãe de Marcinho.
Wando é, no início da série, vendedor de uma concessionária de veículos, procurei e achei o seguinte: "No cargo de Vendedor de Veículos se inicia ganhando R$ 2.653,00 de salário e pode vir a ganhar até R$ 4.908,00. A média salarial para Vendedor de Veículos no Brasil é de R$ 3.621,00." Pode ser que seja sem comissão, mas, de qualquer forma, Wando sustenta a casa sozinho, porque proíbe a esposa de trabalhar, além disso tem condomínio, escola do filho, aula de judô, mas seu apartamento é próprio. Depois, ele se torna Uber, que é o típico emprego de quem perdeu espaço no mercado de trabalho. Em um dado episódio, ele comemora que conseguiu 400 reais em um dia. Se trabalhar todos os dias, se ganhar mais ou mesmo o mesmo, descontados os encargos da empresa, o custo do carro... Sobra quanto?
Se formos para o condomínio com (aparentemente) mais de uma dezena de blocos, cada um com uma média de vinte andares, quase um bairro, a coisa continua esquisita. Dona Lúcia é a síndica dessa mini cidade e comanda tudo de uma maneira muito informal. O próprio Nilson Xavier comentou que condomínios assim são administrados por empresas contratadas. Não entendo disso, não, mas é estranho uma só síndica, um só porteiro (Rodrigo Garcia) trabalhando 24/7 aparentemente sem folga e reuniões de condomínio que pareciam as do meu antigo prédio que só tinha 12 apartamentos. Imagina?
De novo, se a série é realista, ela tinha que ter cuidado com isso, a ficção pode tomar liberdades, mas tudo poderia estar "OK" se a ação estivesse em outro bairro do Rio. Um condomínio de classe média em Campo Grande, por exemplo. Toda a Zona Oeste é dominada pela milícia. Poderiam colocar a ação na Zona Norte, mas, não, tem que ser em um bairro de cartão postal, todo mundo morando perto da praia, e com um condomínio que beira o luxuoso. Se você releva essas coisas, eu não consigo, elas ficam buzinando no fundo da minha cabeça.
Pior foi chegar nos últimos episódios, quando Marcinho (*Argh!*) foge com a filha de Sérgio, a menina funkeira estereotipada, e vão para o bairro da Penha, na Zona Norte. Lá, Marcinho a leva para a casa onde morou na infância, antes de ir para a Barra. A casa está vazia, abandonada. Uma casa vazia na Penha?! Não tem dono? Ninguém invadiu? Eu tinha uma tia-avó de classe média que morava na Penha em um apartamento. Era uma rua com vários prédios e algumas casas. Lá em cima, bem longe, se via a favela. Da última vez que estive lá, mais ou menos uma década atrás, antes de minha tia morrer, a favela tinha descido, a rua antes bonitinha e pacata havia se tornado perigosa, havia uma barricada no final dela. Quem manda na Penha é o tráfico, não é a milícia.
E, a cereja do bolo, a filha de Sérgio diz para Marcinho que seu pai é miliciano. O garoto, nascido no Rio, vivendo sempre na cidade, pergunta "O QUE É UM MILICIANO?". Se esta cena estivesse no primeiro capítulo e, não, no penúltimo, eu desligaria e não voltaria mais. Impossível um adolescente, ou qualquer um, que reside no Rio de Janeiro, capital, grande Rio, interior, onde quer que seja no estado, desconhecer o que é milícia.
O que passa pela cabeça dos roteiristas nessas horas, eu não sei. E, pior, Marcinho deveria ter morrido, é absolutamente incoerente que Sérgio lhe tenha poupado a vida, mas, sabem como é, a próxima temporada poderia despirocar de vez e colocar Cibele armada e perigosa indo caçar o miliciano, mas a opção vai ser o drama de uma mãe correndo atrás do filho e cuidando do neto. Eu realmente não espero nada de muito bom da segunda temporada de Os Outros.
4 pessoas comentaram:
curioso que as emissoras rivais da Globo não emplacaram bem um serviço de streaming
A Globo tem dinheiro e planejamento e futuro. As outras emissoras não tem condições de tentar pegar uma fatia desse mercado.
Imagino isso. Bom, quero ver se a Globo consegue fazer alguma produção "inovadora" no "streaming"... (suspense, sobrenatural, ação, policial etc)
Um colega comentou que a segunda temporada seria focada em outras famílias, apenas com participações de alguns personagens da primeira. Não sei onde ele conseguiu essa informação e se ela procede, mas acho que poderia ser assim mesmo porque, para mim, essa história deveria se encerrar na primeira temporada mesmo e também não achei coerente o Marcinho ter sobrevivido.
Achei curioso como comecei a série com pena dele e detestando o Rogério e, da metade para o fim, isso meio que foi se invertendo. O ator que faz o Rogério é muito bom. Inclusive está na novela das 18h em um papel bem diferente.
E concordo com você quanto ao aparente poder aquisitivo das famílias não combinar com aquele condomínio.
Postar um comentário