sexta-feira, 21 de julho de 2023

Comentando Barbie (EUA/2023): O filme mais debochado e viajado que eu já vi na minha vida

Assisti Barbie, hoje, de manhã.  Sim, as sessões já estavam tão lotadas que 11h15 abriram uma sala a mais legendada, assim como uma dublada às 11h.  E lá fui eu ver o filme que, quando anunciado, me pareceu um grande absurdo.  "Como assim um live action a Barbie?!  Esse povo não tem noção do ridículo?"  Raras vezes me diverti tanto no cinema.  Sim, é um filme absurdo e caótico.  É uma aventura de verão, é um musical, é uma crítica brutal ao patriarcado e, o mais importante, é um filme que debocha de si mesmo o tempo inteiro.  

De forma muito competente, a audiência é guiada por vários gêneros tanto do cinema mais tradicional, quanto da propaganda.  Há cenas absurdas e outras comoventes, tudo sempre em alta velocidade, porque, claro, o objetivo não é, que ninguém se engane, que você tenha tempo para pensar muito.  E o elenco, e isso já escrevi em outras resenhas, parece estar se divertindo.  Eu realmente gosto de assistir filmes nos quais eu imagino que os atores e atrizes que estão em cena não estão sofrendo, mas participando da diversão.  Mas o que é o filme Barbie?

Na Barbielândia, o mundo mágico das Barbies, todas as versões da boneca vivem em completa harmonia e todo dia é um dia feliz. Porém, a Barbie chamada de Estereotipada  (Margot Robbie), a única que não tem uma profissão, começa a se questionar sobre o sentido de sua existência e coisas estranhas começam a acontecer, como, por exemplo, seus pés ficarem chatos.  Ela então procura a Barbie Esquisita (Kate McKinnon), que vive isolada das demais.  Ela é uma pária e, ao mesmo tempo, uma espécie de sábia local e aconselha Barbie a deixar a Barbielândia e partir para o mundo real em busca de respostas. 

Apesar de Barbie recusar companhia, Ken (Ryan Gosling) se esconde em seu carro e vai com ela.  A boneca precisa encontrar a menina triste que a levou o desequilíbrio para a Barbielândia.   Forçada a viver no mundo real, Barbie se surpreende dele ser tão diferente do seu, especialmente, pelo fato dos homens estarem em todos os lugares e nas posições de poder.  Já Ken fica fascinado por este mundo no qual os homens são tão importantes e descobre o patriarcado.  Os dois terminam se separando e quando Barbie acredita que encontrou a menina certa, ela se depara com novos desafios, como impedir que a Barbielândia se torne algo totalmente diferente do que ela costumava ser.

Mesmo sem ter as bilheterias da estreia, Barbie é um sucesso.  Nunca vi um filme com tatas sessões, aliás, algumas abertas pela manhã, porque as normais já estavam lotadas.  No shopping onde estive, todas as lojas e restaurantes tinham comidas no tom rosa Barbie (*pantone rosa 219C*), além disso, vi até senhoras idosas vestidas de rosa literalmente da cabeça aos pés.  A Barbie Mania estava em todo lugar e deve trazer um lucro fora do comum para muita gente e revitalizar as vendas da boneca, que não andavam lá muito boas.  

O que eu estou dizendo é que o marketing em torno do filme foi muito bem sucedido e que o capitalismo agradece, mesmo que o filme critique de alguma forma alguns aspectos do sistema, como o consumismo.  Não se enganem com críticas que vendem o filme como contra o sistema, Barbie é um filme de um grande estúdio e mesmo debochando o tempo inteiro do capitalismo, é uma crítica permitida exatamente porque os donos do capital sabem que se trata de algo inócuo, eles não acreditam que o público  vá fazer uma revolução cor de rosa inspirado pelo filme de Greta Gerwig e Margot Robbie.

Comecei mal a resenha?  Desculpem, mas eu precisava alertá-los disso, porque há gente muito empolgada por aí.  Isso não quer dizer que o filme não seja extremamente divertido, aliás, eu não me sentia tão feliz no cinema em muito, muito tempo.  Barbie é uma homenagem à boneca mais famosa do mundo e, ao mesmo tempo, faz uma crítica ao que ela significa para muita gente, um modelo de perfeição, obviamente, inalcançável.  A Barbie Estereotipada representa a boneca despida do "tudo o que você quer ser" e precisa encontrar um sentido na vida.  A partir daqui, talvez tenhamos spoilers.

No nosso mundo, Barbie descobre que cada vez menos meninas brincam com a boneca.  O filme não busca explicar isso.  As meninas crescem, ou outros brinquedos são mais interessantes?  Será que o mundo rosa da boneca está saindo de moda, ou muita gente desconheça o quão diversas as Barbies podem ser?  Esse último aspecto é muito explorado no filme, assim como o fato de, por motivos mercadológicos, algumas Barbies e Kens (*como o Sugar Daddy Ken*), ou mesmo Allan e Midge (*a amiga grávida da boneca*), não tenham dado certo.  

Dar certo é vender bem e, ao mesmo tempo, se enquadrar em certas expectativas.  Por exemplo, todas as Barbies e Kens são assexuados, ainda que os corpos da maioria deles pareçam desejáveis.  Eles e elas não podem escolher o se quer ser nesse aspecto, na verdade, Barbies e Kens não têm escolha, bonecas são brinquedos de criança.  E, que fique muito claro,  bonecas não devem, pelo menos na concepção norte-americana, se remeter a nada que lembre atividade sexual. Por isso, a amiga grávida foi excluída, segundo os pais e mães dos Estados Unidos, a boneca poderia estimular a gravidez precoce em um país onde deve ter gente dizendo para criança que elas foram trazidas por cegonhas.  

Já Ken quer passar a noite na casa de Barbie, mas ele não sabe o que fará com ela e a boneca tampouco parece interessada. Quando em nosso mundo, Barbie se sente muito desconfortável ao ser abordada por assediadores.  A Barbie deste filme é a personagem mais assexual que eu já vi em qualquer mídia.  E ser assexual nada tem a ver com capacidade de expressar sentimentos.  A boneca é capaz de criar vários tipos de laços, mas a personagem tem ZERO interesse por sexo.


A Barbielândia é, na lógica da história, um matriarcado, as mulheres são o centro de tudo, estão nos lugares de poder e prestígio e executando mesmo os trabalhos mais pesados (*eu nunca vi Barbie pedreira, mas vá lá...*).  Os Ken não têm direito à profissão, eles orbitam em torno das Barbies tal e qual insetos atraídos pela luz.  Lembrando Toy Story,  Ken é um brinquedo de menina e só existe por causa da Barbie.  Essa estrutura é opressiva e, para Ken, o contato com o mundo real é como descobrir que tudo pode ser diferente.  

Ken acha curioso aquele mundo no qual os homens podem tanto e as mulheres não são o centro de tudo e ele começa a ter ideias. Já para Barbie, é um choque muito grande descobrir que a invenção da boneca não foi um divisor de águas na história da humanidade, mudando o sentido da vida das mulheres.  Aliás, dentro do próprio filme, a menina Sasha (Ariana Greenblatt) e suas amigas apontam o quanto a Barbie (*supostamente*) atrapalhou o empoderamento feminino representando um ideal fascista de beleza.  A forma como as meninas a confrontam, magoa profundamente a boneca.

O filme fala de revolução, mas ela é feita por Ken que tendo descoberto o patriarcado, retorna para a Barbielândia para libertar os outros homens e colocar as mulheres nos seus devidos lugares.  É um patriarcado festivo até que eles descobrem que o sistema tem ônus e bônus.  E Barbie precisa reunir aliados para recolocar as coisas nos seus lugares.  Eu não achava que Allan (Michael Cera), o boneco amigo do Ken que foi descontinuado por dar a entender que ele e o namorado da Barbie poderiam ser mais que isso, teria tanta importância na história.  O ator está muito bem e a trajetória de Allan, um excluído, é uma das mais interessantes do filme.  America Ferrera, como a especialista em Barbies e mãe da Sasha, também tem seus momentos.  Ela dirigindo perigosamente foi divertidíssimo.  E Simu Liu está maravilhoso como o Ken que antagoniza a versão de Ryan Gosling o mesmo boneco.

E, sim, Barbie consegue restaurar a ordem na Barbielândia, mas isso não resolve as suas angústias.  O final do filme é até surpreendente, porque abandona o tom de galhofa e torna-se em drama, para depois retornar ao deboche.  Eu realmente não esperava que o final de Barbie fosse aquele e, de uma certa maneira, a última piada destrói qualquer esperança aloprada de que o filme rompe com expectativas de gênero.  Na verdade, a Barbie Estereotipada parece só querer ser uma mulher comum, como as outras.  E ser mulher como todas as outras em nosso mundo não é bem uma coisa legal, o próprio filme mostra isso.  E mais, ser Ken, ou ser a Barbie Esquisita, ou as Babies que não deram certo, não é algo legal na Barbielândia e não vai se tornar muito melhor para o grupo depois que Barbie conserta as coisas com a ajuda de suas aliadas humanas, bonecas e Allan.  Veja o filme e confirme isso.

É um filme para crianças?  Não, não é.  Há muitas piadas de duplo sentido ao longo do filme.  Um humor para adultos que vai escapar mesmo para quem já tem 12 anos, a classificação indicativa do filme.  Apesar de colorido, o filme não conta uma história simples que pode ter camadas para adultos e crianças, ele não faz concessões, é bobo, mas é bobeira para gente grande.  As letras da músicas, e há muita cantoria, estão carregadas do tom debochado, crítico e caótico do filme.  As cenas musicais não são supérfluas, elas ajudam a contar a história.

Uma das melhores piadas do filme é quando a Barbie Estereotipada fica deprimida, e Margot Robbie vai caindo no chão como se fosse uma boneca mesmo, e ela diz para Gloria que é feia.  E uma voz por trás, que não sei se é da narradora (Hellen Mirren), ou da Barbie Esquisita, adverte que os produtores devem estar doidos se acreditam que uma Barbie com o rosto de Margot Robbie é feia.  E há muitas referências.  Toy Story 3, claro, na cena das roupas, mas ainda acho que o Ken da Pixar é insuperável.  Temos uma brincadeira com Spartacus de 1960. Quando os Kens cantam e dançam, é fácil, lembrar de Grease. 2001: Uma Odisséia no Espaço é o ponto de partida do filme e vimos parte da sequência no trailer.  Matrix é referenciado, também, claro, olhe a cena do sapato e a papete.  E a melhor de todas, a Barbie deprimida assiste e reassiste Orgulho & Preconceito 1995.  Eu quase dei um berro, porque essa Barbie sou eu.

Isso é meio que uma piada que somente as fãs mais hardcore das adaptações de Jane Austen vão entender.  Só faltou aparecer o Mr. Darcy do Collin Firth com a camisa molhada, mas ele está no filme, seco e vestido, assim como Jennifer Ehle, como Elizabeth Bennet.  Se o filme já não tivesse me ganhado, eu me entregaria ali e Barbie pode ajudar a criar uma nova geração de fãs para a melhor adaptação do livro mais famoso de Jane Austen.  E Barbie também me fez refletir sobre a relação que eu tenho com a minha filha.  Vendo o afastamento entre Gloria e Sasha, fiquei pensando no meu futuro com a Júlia.  Será que eu estou fazendo certo?  Sim, é um filme que atira para todos os lados e pode provocar múltiplos sentimentos, eu fui da gargalhada ao quase choro.  Querem ver?  Uma das cenas mais tocantes é quando Barbie encontra uma idosa e fica fascinada.  Com toda a diversidade de Barbies, acho que não temos uma que seja velha.  Aliás, bonecas podem ser destruídas, ou danificadas, vide a Barbie Esquisita, mas não envelhecem como os humanos.

Há algo ruim no filme?  Olha, se aqueles sujeitos que comandam a Mattel, e são todos uns idiotas, não estivessem lá, talvez fosse melhor para o filme.  As piadas produzidas no confronto entre o CEO da Mattel (Will Ferrell) e os caras que trabalham com ele e Barbie não enriqueceu o filme.  A parte de recolocá-la na caixa poderia ter sido melhor desenvolvida, mas a ida dos sujeitos para a Barbielândia não fez diferença alguma na história.  Barbie poderia ter seu encontro com a criadora construído de outra forma.  E a conversa final entre as duas pareceu muito com a conversa entre Dumbledore e Harry Potter no último filme da franquia.  A forma como a sequência é construída, eu digo.  Outra aparição que não trouxe nada para o filme foi a do marido de Gloria.

Aliás, e isso está dando nos nervos de alguns homens, o filme não é nada gentil com os homens.  Não é um filme contra eles, mas é uma película que critica o tempo inteiro a forma como as mulheres são depreciadas e obstruídas na sociedade.  Daí, o mundo perfeito das Barbies parecer tão opressor para os homens, porque ele é um tanto parecido com o sonho que muitos tem de uma sociedade ideal, só que em uma versão patriarcal.  Em dada cena, Ken conversa com um homem em nosso mundo e elogia o patriarcado.  O sujeito diz que o patriarcado continua vivo e forte, mas que é bom não falar isso em voz alta, porque as mulheres podem ouvir e não pega bem.  Mas vejam, o filme debocha, também, do sistema vigente na Barbilândia, debocha de tudo e, por isso, o filme é tão divertido.  

Para quem está preocupado com papéis de gênero e identidade de gênero.  Sim, realmente, temos uma Barbie interpretada por uma mulher trans (Hari Nef), mas eu duvido que alguém a identifique no meio das outras mulheres, ela é uma Barbie como outra qualquer.  E esta mensagem é importante.  No meio dos Ken, há um que me parece mais interessado no Ken de Ryan Gosling, do que em qualquer Barbie, mas pode ser somente impressão minha.  E o final do filme me parece mais uma reafirmação de expectativas tradicionais de gênero do que qualquer outra coisa, especialmente, quando tivemos uma cena anterior muito inspirada na qual Barbie diz que não tem vagina.

Concluindo, Barbie realmente me surpreendeu, porque eu achava a ideia de um filme live action da boneca algo muito insano.  Fora isso, eu tenho uma grande má vontade com a Greta Gerwig, detestei Lady Bird e achei seu Little Women somente mediano.  Este filme da Barbie, por outro lado, me conquistou, se Júlia quiser assistir, eu vou com ela e vejo de novo.  Por outro lado, apesar de ser Barbie, não é um filme para crianças.  As piadas podem ser bobas, mas são piadas bobas de gente grande.  Não sei se minha filha de 9 anos iria conseguir aproveitá-lo bem.  Quanto a ser um filme feminista, tenho cá minhas dúvidas, quem o fez certamente domina os discursos feministas midiáticos de empoderamento, mas o filme não aprofunda nem acrescenta nada nesse sentido.  É isso.  Margot Robbie, Ryan Gosling entregaram um filme memorável. 

4 pessoas comentaram:

Em breve verei o filme !
1 pena que a música "Barbie Girl" não fez parte da trilha sonora !

Fui assistir hoje com 6 amigos (4 garotos e 2 garotas) e eu amei o filme, um dos meus amigos que se acha mais cinéfilo terminou falando que foi ruim a autoconsciência cínica, só achei que na segunda parte deram muito tempo de tela para os Kens, fora isso, só o fato de ter gente da extrema direita mandando não ver o filme faz ele já merecer ser visto

Aaaah, fiquei mais animada ainda para ver Barbie agora. Obrigada pela resenha.

Eu vi o filme e a música "Barbie Girl" surge nos créditos!

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