Não sei onde eu vi a capa de A Queda do Patriarcado (*o título é grande, vou ficar só com a primeira parte*), acho que foi em um post da Dani Marino. Trata-se de um quadrinho norueguês do selo Seguinte, selo ou ramo da Cia das Letras. Chegou rapidinho, li no mesmo dia e estou me demorando para fazer a resenha, porque ando muito ocupada. O volume saiu na Noruega em 2021 e já está em nossas livrarias. As autoras, a jornalista Marta Breen (roteirista) e Jenny Jordahl (desenhista), já eram conhecidas no Brasil, pois seu álbum anterior Mulheres na luta: 150 anos em busca de liberdade, igualdade e sororidade foi lançado pela Cia das Letras em 2019. E eu não conhecia, nem tenho em casa, mas me pareceu não cair em um dos problemas que eu vi em A Queda do Patriarcado, talvez o recorte temporal tenha ajudado, mas eu preciso ler ainda e o farei.
Sim, sinalizei que vi problemas em A Queda do Patriarcado, vi, sim, e não são poucos, mas trata-se de um bom quadrinho, com um traço interessante e que permite que a gente reconheça muitas das mulheres célebres desenhada. Para quem quer ter um panorama de alguns temas (patriarcado, casamento, virgindade etc.) e como as mulheres foram oprimidas, difamadas e, ainda assim, lutaram contra o sistema, é uma leitura interessante. Agora, apesar dos painéis com mulheres de várias culturas, as que recebem atenção no volume são principalmente brancas e europeias.
A falta de diversidade, inclusive na discussão da orientação sexual e de identidade de gênero, me decepcionou, exatamente porque a capa e o início do volume sugerem outra coisa. Além disso, classe e raça ficam de fora das discussões das autoras. Trata-se de uma opção complicada, porque não é possível descolar as lutas das mulheres, sejam elas declaradamente feministas, ou não, dos imperativos de raça e gênero. Pronto, se você quiser parar a leitura aqui, tem meu parecer geral da obra, em uma escala de 0-10, ela ganharia um 6. O texto daqui para adiante irá esmiuçar o volume e será longo, estou já no terceiro dia de redação parando e retomando.
Vamos lá, o volume começa com uma série de manchetes da luta das mulheres ao redor do mundo e, a seguir, temos duas cientistas brancas, talvez a representação das próprias autoras, que guiarão todo o quadrinho, tentando definir o que é patriarcado e elas dão como significado "predomínio da autoridade do pai", e as lutas de diversas mulheres contra o sistema. A partir daí, didaticamente, elas vão mostrando o que isso significa na prática para as mulheres, menos poder, menos riqueza, menos autonomia etc.
Em seguida, passamos para as origens da sociedade Ocidental, que elas situam na Atenas clássica, mostrando como Platão e Aristóteles discordavam em relação ao papel das mulheres, mas que foi o segundo, que considerava as mulheres machos incompletos, quem deixou marca mais profunda no pensamento europeu e, por tabela, no resto do mundo sobre o tema. Eu costumo brincar que tudo no pensamento ocidental parece ser ainda um embate entre Platão e Aristóteles, por isso, compreendo a escolha.
As duas cientistas então fazem um apanhado ao longo dos séculos de frases de teólogos, filósofos, artistas, cientistas sobre a inferioridade das mulheres. Ideias misóginas que continuam no nosso imaginário até hoje. Obviamente, alguns dos citados são muito famosos (Agostinho, Thomas de Aquino, Rousseau, Freud etc.) e outros mais locais, caras lá do Norte da Europa que não tem impacto muito além das fronteiras da Escandinávia, mas que estão em consonância com o pensamento misógino dominante. E as autoras citam falas ligadas ao mundo islâmico, judaico e mesmo budista, só que sem dar o nome do santo. Ora, por qual motivo identificar os ocidentais e deixar como algo genérico ou anônimo as falas misóginas de outras religiões? Não entendi e não gostei da opção.
Depois disso, temos páginas mostrando como é possível manter o patriarcado privando as mulheres de educação adequada e obrigando-as a cumprir inúmeras funções sempre enfatizando o serviço aos homens e a família. Corretíssimo, mas preciso pontuar que a mulher hipotética pré meados do século XX ali mostrada é branca e de classe média pelo menos. As mulheres pobres e não-brancas não estavam restritas, em muitos casos, ao espaço doméstico, aliás, se o estavam era como criadas de famílias abastadas. Sim, vou pontuar essa falta de visão de classe e raça praticamente o tempo inteiro, porque é um dos calcanhares de Aquiles dessa obra muito interessante.
Passamos então a um lindo painel com mulheres importantes desde o século XIX, balões com suas falas, uma diversidade de mulheres e eu bati o olho e reconheci várias, como a egípcia Nawal El Saadawi (1931-2021), Malala, Emma Goldman (1869-1940), Soror Juana Inés de la Cruz (1651-1695), até a nossa Bertha Lutz (1894-1976) está lá. Agora, se não reconhecer alguém, não tem problema, porque há uma lista com o nome de todas elas no cantinho.
No meio de tantas mulheres, temos um homem John Stuart Mill (1806-1873), filósofo, economista, membro do parlamento britânico e defensor dos direitos das mulheres. Ao seu lado, sua esposa Harriet Taylor (1807-1858), ela também era filósofa e escreveu a primeira petição pelo direito de voto das mulheres; seu marido defendia a proposta, também. Se as autoras colocaram um homem no meio das mulheres, seria interessante explicar o que ele está fazendo lá, ou não? Só que não explicam. Virando a página, temos as feministas ou ativistas dos direitos das mulheres que não sobreviveram. É impactante, porque cada lápide traz o nome de uma delas, mas a mensagem é clara "Nunca esqueceremos de vocês!".
Depois disso, vem um dos momentos brilhantes do volume, quando as autoras explicam como as mulheres (*ricas*) subverteram o impedimento de ocuparem o espaço público transformando suas casas em lugar de encontro de sábios. O papel das salonistas durante o Iluminismo é muito importante e a personagem em destaque é Madame de Staël (1766-1817) com destaque para seus problemas com Napoleão. A seguir, as autoras mostram que uma das estratégias usadas pelas mulheres para poderem publicar suas ideias e obras era o anonimato. Dá-se destaque para Emily Dickinson (1830-1886), que publicou pouco, mas produziu muito e em segredo. O caso dela não é bem de anonimato, vamos combinar...
Mas o problema aqui, nem é Dickinson, mas incluir na pilha de livros de autoras que usaram o anonimato, como Jane Austen ("A Lady"), ou nomes masculinos para esconder sua identidade feminina e terem maiores possibilidades de sucesso e aceitação, J.K. Rowling. Você deve estar me achando louca, mas não é esse o caso. Tampouco estou reclamando de Rowling estar lá por ela esta envolvida em uma guerra contra as pessoas trans, mas porque a autora aparece na pilha como Robert Galbraith e, não, como J.K. Rowling. Autoras abreviam suas iniciais para esconder que são mulheres. Rowling, usa J.K. para esconder o nome "Joanne Kathleen", pois seus editores acreditavam que Harry Potter, uma série de fantasia juvenil, não venderia se soubessem que a autora era uma mulher. Logo, se Rowling estivesse na pilha por esse motivo, se esconder atrás de iniciais, OK, corretíssimo, mas não como Robert Galbraith, porque as escolha desse nome para sua série de detetives foi simplesmente para separar a autora de Harry Potter da sua série de romances policiais.
Rowling não precisou esconder sua identidade neste caso, trata-se uma escolha, porque qualquer coisa que ela, já então uma escritora renomada e com um imenso fandom, fizesse atrairia a atenção. Acredito que usar Robert Galbraith como exemplo junto com casos concretos de anonimato foi até ofensivo às mulheres que de fato tiveram que se esconder, ainda mais quando a própria Rowling foi uma delas. Esta parte termina com o anúncio de que algumas mulheres tiveram que se vestir de homem para ter mais liberdade. E segue uma lista de algumas delas. Não conhecia duas delas, uma artista plástica, Rosa Bonheur (1822-1899), e Petra Herrera (1887-1917), heroína da Revolução Mexicana. Herrera aparece na capa, aparece em outras imagens detro do livro e, o que é frustrante, sua história não será contada no volume. Como pode ser isso? Pois é, pode.
E há um erro na lista de mulheres que se vestiram de homem para ter liberdade de criar, lutar, trabalhar. As autoras incluem a marquesa Émilie du Châtelet (1706-1749), intelectual iluminista e renomada matemática e física, que foi reconhecida em vida. Achei estranho, porque há mais de um quadro de Châtelet, sempre com símbolos que sugerem sua atividade intelectual e científica, e sempre em roupas femininas. Fui investigar e descobri que ela se vestiu de homem aparentemente uma única vez na vida para entrar em um café frequentado por intelectuais e que proibia a presença de mulheres. Resumindo, ela nunca precisou de fato se esconder, ou usar roupas masculinas, para ter liberdade, para ser uma cientista.
Havia outros exemplos, eu poderia citar mais de um, nossa Maria Quitéria (1792-1853), Katalina/Antonio Erauso (c. 1585/1592-c.1650), ambas mulheres soldado; Isabelle Eberhardt (1877-1904) exploradora, jornalista e ativista contra o colonialismo francês no Norte da África; ou ainda a médica Enriqueta Favez (c. 1791-1856), que teve sua identidade feminina exposta de forma dramática e teve que arcar com as consequências.
A escolhida para o destaque nessa parte da obra é a faraó Hatshepsut (c. 1508-1458 a.C.), um exemplo notável de mulher que virou a mesa em cima dos homens, que governou de forma competente, mas quase teve sua memória apagada. Ela é a única mulher não-branca a receber um grande destaque no volume. A única. E aproveita-se nesta parte para se vender a ideia de que mulheres sempre buscam a paz, enquanto homens fazem a guerra, por isso, o governo de Hatshepsut foi pacífico e marcado pelo comércio e grandes construções. Trata-se de um estereótipo complicado, fora a necessidade de se olhar o contexto da época para compreender esse período de paz gozado pelo Egito.
Depois temos a discussão do casamento como prisão, há falas de feministas sobre o tema (Camilla Collett, Simone de Beauvoir, Kate Millett) e a personagem de destaque é a Rainha Kristina da Suécia (1626-1689). Eu amo esta personagem e falei bastante dela em uma resenha sobre o filme The Girl King. Aqui, as autoras enfatizaram o intelecto de Kristina, o fato de ser uma workaholic e sua rejeição ao casamento. Sim, dois pontos corretos. Ao falar do seu gosto por se vestir com roupas masculinas, omitiram o fato de que o pai da rainha tinha deixado em testamento que ela deveria ter sido educada como um príncipe, ou seja, sua educação foi masculina.
Não falaram que ela teve uma amante Ebba Sparre e que seu primeiro-ministro moveu os pauzinhos para afastá-la da corte, como tinha feito antes com um sod pretendentes da rainha para favorecer seu próprio filho. O que as autoras enfatizam é que Kristina não se interessava por homens, quando há evidências de que ela teve alguns favoritos, inclusive um cardeal, mesmo que nenhum deles tenha ocupado o papel de Sparre na sua vida. Trata-se de meia verdade, ela sabia bem, ao que parece, o que significaria o casamento para ela. Já no final da parte de Kristina, as autoras falam que ela foi acusada de ser hermafrodita, com nota explicando que poderia ser intersexo. E poderia mesmo, mas que um exame tinha provado o contrário. Olha, o exame mostrou que ela era XX, nada se sabe sobre a genitália da rainha que foi confundida com um menino ao nascer (*olhem a minha resenha*), mas terminam dizendo que uma autópsia nada poderia dizer sobre ela ser trans.
Não sei o que se quer dizer com trans nesse caso. Homem trans? Pessoa não-binária? Kristina foi ensinada desde muito jovem a desprezar o que era feminino, a se sentir uma mulher acima das mulheres, assim como a rainha Elizabeth I, a quem admirava e em quem se inspirava. Isso é discutido na biografia da rainha escrita por Veronica Buckley. Ora, Kristina tinha muito poder, mesmo depois de renunciar ao trono com míseros 23 anos, e podia fazer quase tudo o que desejasse. Transitar entre papéis de gênero, isto é, expectativas sociais e históricas sobre o comportamento masculino e feminino nada fala de identidade de gênero.
Parece que houve uma necessidade de mostrar preocupação com diversidade forçando uma personagem dentro de um molde. A graça é que o que sempre escapa nas análises sobre Kristina é sua possível bissexualidade. Acredito que de todas as letras da sigla LGBTQIAPN+, o "B" é a mais negligenciada. Fora, claro, que os rótulos que temos hoje para identidade de gênero e para orientação sexual certamente não faziam sentido antes de meados do século XIX e isso vale para a heterossexualidade, também. Vou parar por aqui, ou vira um texto dentro do texto.
Depois de Kristina, entre Wooddy Allen e temos uma discussão sobre "male gaze", termo da feminista Laura Mulvey, que é a perspectiva masculina sobre as mulheres marcada no cinema, na verdade, um "(...) olhar triplo (do público, da câmera e dos personagens) que olha para as mulheres de um ponto de vista masculino e as considera meros objetos (sexuais)." (Fonte) Além de apresentar as mulheres como passivas e os homens, ativos. As mulheres, segundo as autoras, são categorizadas a partir desse olhar masculino (*a mãe, a esposa, a amante, a musa, a prostituta, a virgem*), sempre coadjuvantes e em função do olhar masculino. As autoras falam então do valor da virgindade, das vestais romanas e de como as mulheres que escapam são chamadas de vadias e promíscuas. Daí, escolhem uma série de personagens que ficaram assim conhecidas e as colocam em fotos como as "mugshots", aquelas usadas em arquivos policiais norte-americanos.
Em seguida, elas falam que as mulheres que não se enquadram sofrem slut-shaming em seu tempo (*e, muitas vezes, continuam sendo vítimas nos livros de história*). Slut-shaming é a prática de criticar pessoas, especialmente mulheres e meninas, que violam expectativas de comportamento e aparência em relação a questões relacionadas à sexualidade. As escolhidas para ilustrar esse estigma são Charlotte Corday (1768-1793), que matou o agitador revolucionário Marat, Mary Wollstonecraft (1759-1797), a precursora do movimento feminista e que viveu intensamente aquilo que defendia. E elas passam meio batido em Olympe de Gouges (1748-1793) para ilustrar que a ação de Corday desencadeou uma reação contra as mulheres, com o fechamento dos clubes políticos femininos e outras personalidades que não se conformavam aos papéis de gênero.
Logo em seguida, temos a discussão sobre a influencia de Wollstonecraft sobre a primeira onda feminista, no século XIX, a importância de seus escritos, em especial, Reinvindicação dos Direitos da Mulher. Temos um salto e uma nova biografia, a da revolucionária comunista, feminista e primeira mulher ministra de estado e embaixadora, Alexandra Kollontai (1872-1952). As autoras marcam que ela é uma revolucionária como foi Wollstonecraft e Corday, mais de cem anos atrás, e falam rapidamente de sua amizade com Clara Zetkin (1857-1933), feminista alemã. E o quadrinho faz questão de mostrar que Kollontai foi responsável pelas modernas leis favoráveis às mulheres no início da URSS relativas ao aborto, divórcio, licença para a amamentação, salários iguais, proposta de gestão coletiva dos trabalhos domésticos e cuidados com as crianças.
Com o tempo, Kollontai passou a ser um problema mesmo para os seus companheiros comunistas. O livro faz questão de mostrar críticas feitas por Lênin e Trotsky (*dessas não sabia, procurei rápido e não achei nada*) e, depois, de Stálin, que suspendeu parte da legislação (*não toda, como o quadrinho coloca*). O que o volume não diz é que a seção feminina do partido comunista soviético foi fechada por Stálin. Enfim, ainda assim, Kollontai não foi eliminada por Stálin, como muitos dos que começaram a construir a URSS, ela é exceção. Ela morreu de morte morrida.
Já chegando no final, as autoras discutem como a História está cheia de gênios, que eles são sempre homens e tomam Goethe (1749-1832) como exemplo. A ideia, suponho, é discutir o privilégio masculino. Gênio seria "alguém declarado como tal pelas pessoas ao seu redor". Elas então falam que ao longo dos séculos as mulheres foram perseguidas, difamadas e mortas, mas que, hoje, as coisas melhoraram muito, há internet, maior acesso à educação e maior capacidade de organização não somente local, mas global. Otimista, bem otimista. O capítulo fecha com uma coletânea de falas de mulheres célebres de nosso tempo, a maioria branca, a maioria do centro do capitalismo (Europa/EUA) nenhuma trans, tampouco uma feminista radical, nenhuma comunista ou anarquista ou realmente crítica ao capitalismo. E, no final, temos o ranking do maior misógino da História. Leiam para descobrir quem ficou com ouro, prata e bronze.
Concluindo, me senti um tanto decepcionada com o volume. A minha leitura pode ter sido crítica demais, certamente foi, mas eu esperava mais de um quadrinho com o título tão grandioso de A Queda do Patriarcado - O Combate ao Machismo Através do Tempo. Senti falta de classe, de raça, de Ásia, de América Latina, de África (*Egito antigo está fora*). Na verdade, não houve articulação, caso em raros momentos, da experiência individual das mulheres célebres citadas para empoderar outras mulheres. Tudo parece muito individualista, ou seja, se tivesse que rotular, seria um quadrinho alinhado ao que é chamado de Feminismo Liberal.
Se quiserem um material que esteja na contra mão de A Queda do Patriarcado, recomendo (*e nunca resenhei*) Uma Breve História do Feminismo no Contexto Euro-Americano, que delimita as coisas e não se propõe a fazer o que não vai executar. É isso. A Queda do Patriarcado - O Combate ao Machismo Através dos Séculos está por um bom preço no Amazon e vale a leitura, mesmo que eu tenha feito tantas críticas ao material, ele é bonito, colorido e bem didático. A Júlia, minha filha de 9 anos leu e entendeu uns 80%, aproveitei para discutir o material com ela.
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