Está rolando faz alguns dias, uma discussão curiosa sobre se quadrinhos são literatura, vejam bem, não se eles têm valor literário, pois uma parte considerável as HQs possuem texto, ou podem ser lidas como um texto, na mesma medida que qualquer fonte imagética (cinema, quadrinhos, propaganda, ilustração, pintura etc.) ou material (roupas, objetos o cotidiano, esculturas etc.) pode ser analisada como um texto, mas naquele sentido mais obtuso e elitista mesmo. Se é popular, se pode ser visto como infantil, é inferior, indigno. Fora, claro, a acusação, comum, principalmente a partir dos anos 1950, de que seria material pernicioso para a juventude, enfim...
E quem levantou a discussão? James Akel em sua entrevista para a Revista Veja. Ele é um dos candidatos à cadeira nº 8 da Academia Brasileira de Letras, a que tem como patrono Cláudio Manoel da Costa e que ficou vaga com a morte da Prof.ª Cleonice Berardinelli. Aqui, a feminista vai fazer uma pausa para um ou dois comentários, espero que compreendam o desvio. Com tão poucas mulheres na ABL, com a tradição misógina da academia, me causa certa agonia ver que só temos candidatos homens (Maurício de Sousa, James Akel e Ricardo Cavaliere) para a cadeira deixada vaga por uma das dez mulheres eleitas até hoje para a Academia Brasileira de Letras.
Alguém poderá reclamar dizendo que Heloísa Buarque de Hollanda, acadêmica feminista, a primeira da ABL, foi eleita esta semana para a cadeira 30, deixada vaga com a morte de Nélida Piñon. Sim, verdade, mas ela é somente a DÉCIMA ELEITA, e foi uma mulher substituindo outra mulher. Seria justo substituir uma mulher por outra mulher, não acham? Daí, algum cretino poderia vir comentar escrevendo que mulheres só começaram a se destacar na literatura e em áreas acadêmicas afins muito recentemente.
Não, você está errado/a, simplesmente houve um grande esforço em invisibilizar a escrita feminina, muitas mulheres escritoras tiveram que se esconder atrás de pseudônimos, por exemplo, porque o que era adequado para um homem em um dado tempo e sociedade (*papéis de gênero é o que chamamos*), poderia não ser para uma mulher. E, claro, houve um esforço ativo em excluí-las, desestimulá-las. Há um livro chamado "How to Suppress Women's Writing", que discute muito bem a questão. O link é do Amazon, mas vocês acham fácil o pdf, para quem quiser procurar.
Falando nisso, há um vídeo do canal literário Ler Antes de Morrer sobre Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), importante escritora em sua época, um dos idealizadores da mesma ABL, fundada em 1897, mas que não pode receber uma cadeira. Motivo? Simples, ela era mulher. Deram o espaço para seu marido, um poeta português de menor importância para a literatura, mas devidamente habilitado, porque tinha pênis. Mais infame ainda é ver que Júlia Lopes de Almeida até hoje não consta nos cânones literários escolares. Aliás, quais as mulheres que aparecem? No meu tempo de escola, tínhamos Rachel de Queiróz (1910-2003), que foi a primeira mulher na ABL, isso somente em 1979, e Cecília Meireles (1901-1964).
Hoje, Maria Firmina dos Reis (1822-1917) é lembrada, meus alunos e alunas precisam ler Úrsula, porque está no programa da UnB, mas ainda entra como exceção, e dupla, mulher e negra. E vocês sabem como é gostoso falar de exceções, não é mesmo? Elas confirmam a regra, o status quo masculino, mas quando a gente começa a discutir as políticas de exclusão, a coisa fica doída, porque é preciso apontar como ativamente mulheres e outras minorias políticas (negros, indígenas, LGBTQIA+ etc.) ficaram de fora dos livros didáticos e dos espaços de prestígio, pois há muito hominho que se ressente e muita gente desses grupos que endossa o discurso dos privilegiados para continuar recebendo as migalhas da mesa dos senhores. Sim, estou meio inflamada, reconheço, e estou pouco ligando.
E eu sei que está ficando longo, preparem-se, mas não terminou aí, não. A primeira mulher a se candidatar a uma vaga na ABL foi Amélia Beviláqua (1860-1946), esposa do jurista e membro fundador da agremiação, Clóvis Beviláqua, em 1930. Amélia Beviláquia advogada, escritora, jornalista e pioneira na luta pelos direitos das mulheres no Brasil. Só isso. Ela não foi aceita (*óbvio*) e os homens da ABL tiveram que admitir que o "brasileiro" no Artigo 2 do regimento ("Só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário.") não era o tal "universal masculino", era masculino mesmo, a mulher, como bem desenvolveu Simone de Beauvoir em seus escritos, é sempre "o outro", neste caso, não contido no universal masculino, nem autorizado a estar nos espaços e prestígio.
E Michele Asmar Fanini nos informa no seu artigo "As mulheres e a Academia Brasileira de Letras" que chegaram a reformar o estatuto em 1951 para deixar isso claro "(...) os membros efetivos serão eleitos, nas condições do art. 2.º dos Estatutos, dentre os brasileiros, do sexo masculino, que tenham publicado, em qualquer gênero de literatura, obra de reconhecido mérito, ou, fora desses gêneros, livros de valor literário". A misoginia, que é uma estratégia de manutenção de espaços de prestígio e/ou poder, sincera é sempre melhor que a hipocrisia, eu diria.
Mas passemos, agora, para o chorume, porque é disso que se trata a entrevista do Sr. Akel. Maurício de Souza se candidatou a uma vaga na ABL. Pelo que entendi, sua candidatura pode ser lançada por você mesmo, ou por outros, Maurício foi lá e colocou seu nome no jogo. afirmou que 'quadrinhos são literatura pura' em sua carta e candidatura. Segundo Akel, isso o teria meio que obrigado a lançar sua candidatura. Meus dois centavos? Ele, um homem da TV, ele o afirma na sua entrevista, foi ator mirim e trabalhou em emissoras como Record, Band e SBT ("Venho da área da televisão. Todas as emissoras do país não chegam nem perto da TV Globo, mas isso não as impede de disputar a audiência. Já tive várias vitórias improváveis na minha carreira, essa pode ser mais uma."), ele deseja se promover em cima de alguém maior, sabe que isso costuma colar nos nossos dias.
A partir daí, ela usa de critérios equivocados para desqualificar os quadrinhos: "Na Justiça, a toga do juiz é parte da liturgia do cargo. Ninguém tira. Da mesma forma, a letra no papel é a liturgia da literatura. Histórias em quadrinhos estão no campo do entretenimento, não da educação, como ele defende. No dia em que acabarem os livros, acabou a literatura. A ABL não pode perder sua essência." Bem, começando com a história o juiz, não é a roupa que faz o magistrado, na verdade, ele só pode usar toga exatamente por ser juiz, não o inverso. Por isso, se um Gilmar Mendes estiver de calções e camisa com estampa havaiana na praia, ele ainda será juiz, tanto quanto eu serei professora da instituição na qual sou concursada. Quadrinhos são entretenimento, tanto quanto o pode ser a literatura, salvo se a gente começar a discriminar, o que é bem elitista e arcaico, a literatura de verdade, um Machado de Assis, por exemplo, de uma que não seria, como Senhor dos Anéis.
Como meu queridíssimo professor de literatura da 3º ano, Sérgio Fonseca, não cansava de dizer, o que hoje (*lá nos anos 1990*) é alta literatura, foi lançado como folhetim. Você lia e podia jogar fora. Muitos dos grandes clássicos do século XIX saíam em fascículos em jornais e revistas para públicos variados. E era entretenimento, também. Quanto ao valor educativo, quadrinhos estimulam o gosto pela leitura e auxiliam na alfabetização de crianças, seja, aqui, no Brasil, ou em outros países, como o México, que condecorou Yolanda Vargas Dulché por ter impulsionado a alfabetização no país nos anos 1940 e 1950 com sua personagem Memín Pinguín. Prometo fazer um post sobre essa mulher, porque ela merece.
Mas se o Sr. Akel tivesse lido o estatuto da ABL, o artigo 2º que eu citei, veria que está lá, com todas as letras, que o candidato precisa ter pelo menos um "livro de valor literário". E Maurício tem, inclusive livro mesmo, ilustrado e em colaboração com gente de diversas áreas acadêmicas. Cito um bem recente em que ele trabalhou junto com a grane historiadora Mary Del Priore sobre os duzentos anos da independência do Brasil. Fora isso, um dos objetivos da ABL é promover a língua portuguesa, algo que os quadrinhos de Maurício de Sousa fazem bem.
Mas James Akel, que defende um modelo tão fechado de literatura, produziu o quê mesmo? Cito a entrevista: "Sua grande contribuição à literatura, nos moldes que o senhor defende, foi um livro sobre marketing no setor hoteleiro. Não é pouco para se tornar imortal?" "JA: Meu livro foi muito elogiado e adotado em vários cursos de turismo, inclusive na USP. Além dele, tenho três peças de teatro escritas. (...)". Vi o povo o design criticando a capa o livro, não irei nessa seara. Tentei encontrar as três peças ele, na Wikipedia só há duas - República das Calcinhas (2014) e Democracia Sem Vergonha (2015) - a outra peça citada é dirigida e produzida por ele, mas assinada por outro.
Tentei achar informações sobre suas peças, vi até alguma coisa sobre República das Calcinhas na rede, mas nenhuma linha sobre a qualidade da peça, todas as notas giravam em torno da estreia de Andressa Urach, antes de sua quase morte e fase evangélica, quando ela ainda insistia que tivera um affair com o jogador Cristiano Ronaldo, como atriz. E é só isso e Akel entende de marketing. Ele é comentarista político, também, bolsonarista, diga-se de passagem, e já saiu em defesa da Ditadura Militar e da tortura. E cito uma parte da matéria que linkei na frase anterior:
"O ataque a Mauricio de Sousa deu notoriedade a James Akel. É uma tática comum do bolsonarismo e da nova direita: elege-se um alvo mais ou menos unânime (vacinas, urnas eletrônicas, a "Turma da Mônica") e, a partir de declarações estridentes e agressivas, ou às vezes apenas absurdas, um candidato obscuro de repente se vê dando entrevistas e sendo assunto nas redes sociais."
Sinceramente? Preferia não saber nada sobre este senhor. Na mesma entrevista, como não poderia deixar de ser, ele ataca Gilberto Gil e Fernanda Montenegro. Gil é letrista de grande valor e tem publicados pelo menos quatro livros; Fernanda Montenegro é autora somente de sua autobiografia, mas prestou grande serviço à promoção da nossa língua com sua carreira brilhante, mas cito a entrevista:
"Não tem medo de se manchar com uma campanha tão polêmica?" "JA: Se estivesse disputando com qualquer um — Fernanda e Gil inclusos —, diria a mesma coisa: tenho mais a agregar à ABL. Pode ser que a maioria dos membros diga que eu não estou correto e não vote em mim. Tudo bem, já trouxe o questionamento para a pauta. Isso era necessário."
Bem, se Maurício de Sousa não merece só elogios, e o Alexandre Link discute isso muito bem no final de seu segundo vídeo sobre essa confusão, ele agrega muitíssimo mais à ABL do que o Sr. Akel. E ele afirmou que sua “candidatura à ABL é para reunir esforços com todos os acadêmicos em levar a importância desta entidade secular para que crianças e jovens conheçam mais a nossa literatura e grandes autores que por lá estão e já estiveram”.
E, sim, ele pode ajudar a promover a ABL e a língua portuguesa, além disso, não se trata de transformar quadrinhos em literatura, mas reconhecer sua função social, seu valor literário, e que quadrinistas merecem ter seu valor reconhecido. Países como o Japão e a França, condecoram seus artistas e poderíamos copiar essas nações neste aspecto. Aliás, os franceses homenageiam os seus quadrinistas e os dos outros, há vários posts sobre isso no Shoujo Café. Maurício de Sousa, sua marca, sua empresa, as personagens icônicas que criou, ajudam a divulgar o Brasil, nossa cultura e nossa língua, aqui, e em vários países. Espero que seja eleito e que a ABL possa se tornar um espaço melhor e, não, pior.
P.S.: Minha tecla "d" está travando. Se, por acaso, ficar faltando esta letra em alguma palavra, por favor, me avisem, porque posso ter deixado passar.
4 pessoas comentaram:
os EUA não condecoram quadrinistas ?
Fico triste com essa misoginia acadêmica. Teoricamente os escritores são pessoas esclarecidas.
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