Saiu por esses dias, acredito que esta semana, o trailer da série Cleópatra da Netflix. Será um docudrama, isto é, teremos a parte encenada entrecortada com a fala de historiadoras, coloquei no feminino, porque somente mulheres falam no trailer. A estreia está prevista para o dia 10 de maio. A primeira coisa que preciso escrever é que eu espero que a série não siga na linha da sobre o último Czar da Rússia e sua família, enfim, que seja um trabalho sério.
Um segundo ponto é que decidiram pintar Cleópatra como mulher culta e governante capaz e destemida, coisa que ela era, mesmo as fontes que lhe são desfavoráveis não negam isso. Escrevi sobre Cleópatra duas vezes neste blog, acho, uma delas em um post sobre o futuro filme estrelado por Gal Gadot e no meu post sobre a etnicidade da Pequena Sereia, quando começou a gritaria por causa o live action da Disney. O problema até o momento, pelo menos para mim, é que o trailer mostra Cleópatra como uma guerreira. Como escrevi na minha resenha do filme Super Mario Bros. (*sim, foi lá*), a cultura pop convencionou que uma personagem feminina forte precisa lutar, ser guerreira.
Nunca tropecei em nenhuma informação, e se alguém a tem, me corrija, por favor, de que Cleópatra fosse como as Candaces, as rainhas guerreiras da Núbia, suas contemporâneas. Mas é a tentação de sempre, uma mulher forte, "badass", precisa se aproximar da imagem masculina de força, tem que pegar em armas, matar com as próprias mãos e por aí vai. Ainda assim, nem todos os homens fortes e poderosos eram guerreiros, é de um tipo específico de masculinidade que estamos falando. O que eu sei é que Cleópatra liderou sua esquadra na Batalha de Áccio, ou, pelo menos, estava presente durante a batalha em sua nau capitania.
Rainhas e outras mulheres nobres, esposas de imperadores e generais romanos na época do principado, se faziam presentes nas guerras, às vezes, vestiam armaduras e/ou couraças adaptadas, mas não era comum que elas liderassem suas tropas de espada em punho na frente de batalha. Elas davam suporte às tropas como estrategistas, incentivadoras, ou negociando com os líderes inimigos, quando eram de fato guerreiras normalmente, isso despertava a atenção dos contemporâneos e o registro costuma estar nas crônicas e outros textos de época, seja como elogio, crítica, ou deboche. Este foi o caso das candaces contra os romanos, de Artemisia I da Cária na Batalha de Salamina, de Matilda de Canossa e Isabel de Conches, na Idade Média, só para citar alguns exemplos. Mas eis que a Cleópatra da Netflix pega em armas, como já sinalizei, não me recordo de ter visto informação sobre isso em qualquer lugar. Precisávamos de uma Cleópatra guerreira para que ela tivesse todo o seu valor reconhecido? Minha opinião é "NÃO".
E, claro, teremos a controvérsia sobre a etnicidade de Cleópatra. Os Ptolomeus, que governavam o Egito, eram gregos descendentes de um dos generais de Alexandre e praticavam endogamia loucamente, ao bom estilo dos faraós. Cleópatra, para efeito de propaganda, se fez representar com roupas gregas e com roupas egípcias, além de aparecer em baixos relevos tradicionais como faraó. Fato é que Cleópatra não deveria ser uma mulher branca, salvo se você divide o mundo entre brancos e pretos somente, ela negra não deveria ser, também. Há quem defenda que os restos mortais de uma mulher nobre encontrados em Éfeso, atual Turquia, pertenciam à Arsione IV, irmã de Cleópatra. O exame dos restos mortais apontou que a mulher teria características físicas muito semelhantes às minhas, apontando para uma mistura com povos do Oriente Médio, ou mesmo negros do continente africano com a linhagem grega. Só que nem certeza de que Cleópatra VII e Arsione IV dividiam a mesma mãe nós temos, ou que os restos sejam realmente da irmã da faraó, ainda que os indícios sejam fortes.
No Egito, segundo este artigo, a série causou mal estar. Para muitos egípcios atuais, as teses afrocêntricas, que defendem que o passado negro do Egito foi apagado, são invenções ocidentais que defendem que a população atual do país não tem ligações com os antigos habitantes da região. Fato é que a iconografia do antigo Egito apresenta uma diversidade grande de traços, há os negroides e os que visivelmente não são, outro testemunho das feições da população local são os espetaculares retratos o Fayum (*imagem acima*), já da época romana, eles se parecem com a maioria dos egípcios atuais que eu vejo em documentários, noticiários, fotos e filmes. Fora isso, o influxo de população de origem árabe, ou de outras regiões do mundo islâmico não seria tão grande a ponto de suplantar a população anterior, supostamente negra, substituindo-a.
E há um abaixo assinado feito por gregos contra a série dizendo que ela falsifica a História, ao abraçar, sem evidências, teses afrocêntricas. Sim, é isso que a série faz, ao que parece. Uma das historiadoras que fala no trailer, uma mulher negra, afirma a negritude de Cleópatra com orgulho. Veja, toda a discussão passa pelo viés da afirmação de identidade, da busca de personagens históricas com as quais se identificar e os negros e negras foram privados disso em muitos aspectos, apagados, silenciados, não esqueçamos esse ponto. Cleópatra é um símbolo forte demais, uma mulher muito marcante e a disputa sobre ela reside aí. Agora, se Cleópatra não era negra, dificilmente seria branca como Elizabeth Taylor, ou Vivien Leigh, ou boa parte das 40 atrizes que a interpretaram. Por qual motivo uma mulher negra não poderia representar o mesmo papel?
Também me incomoda essa necessidade de promover Cleópatra como uma mulher negra, porque há muitas histórias de mulheres negras, rainhas inclusive, que foram de fato guerreiras, a serem contadas, mas essa gritaria sobre a etnicidade da personagem dificilmente seria feita se escalassem uma atriz branca, ou latina, ou árabe, enfim. Além disso, sou solidária com os egípcios, se os restos mortais de Arsione são efetivamente dela, talvez Cleópatra parecesse muito mais com os atuais habitantes do país do que com uma deusa loura idealizada (*como defende o ministro de antiguidades do Egito, aquele senhor que aparece em todo e qualquer documentário sobre os faraós*), ou uma guerreira negra. Enfim, mas o que eu quero mesmo é que seja uma boa série, mas pelo trailer, já consigo mapear muitos problemas. O trailer está logo abaixo.
10 pessoas comentaram:
Bem, as reclamações sobre o Cleópatra não são feitas por nerds reaças, há uma questão histórica envolvida, uma disputa política mesmo por uma personagem que de fato existiu.
Quanto a Saint Seya, não há compromisso algum com verossimilhança, como não havia em relação às representações de várias personagens da mitologia grega.
Quanto a Jesus e Maria, há ícones de diversas regiões do mundo nas quais eles aparecem com feições negras, orientais, eles foram apropriados e reinterpretados em várias culturas. A disputa maior se cria em relação ao cinema hollywoodiano, que bebe muito em imagens que foram criadas no século XIX. As primeiras representações iconográficas de Cristo e as da Idade Média e Moderna, tendiam a representá-lo como moreno. Já Maria poderia ser representada até de pele escura, mas loura, porque lourice era signo de beleza, inocência e juventude.
Então ela era negra porque só existe África subsaariana? A mulher com Black Power. Os egípcios e mediterrâneos tem o direito de reclamar. E existem tantas rainhas do antigo egito comprovadamente negras, façam filmes sobre elas.
E se me botam Cleopatra como Shena a princesa guerreira, sem evidências históricas consistentes sobre isso, o material está longe de ser "maduro" ou minimamente sério.
Seria tão bom se houvesse uma uniformidade: ou documentários (incluso desse tipo) tem que ser fiel à história - e aí tem que ver o que dizem os estudos, e que eu saiba ela não era branca - ou então dá-se liberdade artística para escolher quem quer que seja para representar e aí tanto faz como tanto fez a cor da pele....
Porque moramos num planeta onde cor da pele é um pré-requisito determinante de inclusão ou exclusão? 😢
1. Ciro, pelo seu primeiro comentário, parecia que você estava cobrando dos nerds posicionamentos sobre materiais que não lhes interessam; no mais, nenhum reacionário desocupado reclama de branqueamento de personagem.
2. Como o José Eduardo bem pontuou, Cleópatra não está no radar no nerd de bem.
3. Julio há uma questão política em relação à Cleópatra e outras personagens. Defender que ela era branca e loura, como Hawass colocou, não se sustenta; defender que ela era negra, não se sustenta. Como ela seria? Qual significado isso tem em nossos dias, porque é para nós que estão falando. Agora, a resistência ao branqueamento de personagens históricas e a ficção são questões que incomodam ao movimento negro na militância política e aos intelectuais negros na universidade. A questão é que ao se posicionar de forma tão contundente (*"Cleópatra era negra."*), eles assumem que receberão pedradas e receberá atenção. Aliás, está garantida a audiência.
4. Kalili, impossível essa uniformidade. O que eu acredito que um docudrama deveria ter, porque nem será documentário puro, há a parte encenada, é responsabilidade, seja na discussão, seja em assumir que está optando por uma determinada leitura. Só depois de estrear saberemos, PORÉM, a Netflix e os envolvidos têm que aceitar que terão que lidar com as críticas.
Valéria, você poderia explicar por que não gostou do documentário sobre o último Czar da Rússia? Queria saber sua opinião. Da Netflix, eu vi A Guerra dos Samurais e achei um horror. Além do tom sensacionalista, jogam umas informações ao vento sem explicar nada, omitem uns detalhes que eu considero importante, enfim...
Ah, e queria aproveitar a deixa para pedir recomendação de livro sobre os Romanov. Você considera os trabalhos do Robert K. Massie bons? E da Helen Rappaport?
Luiz, nunca li nenhum livro do Robert K. Massie, mas a Rappaport, eu li e fiz uma resenha de um livro dela, mas está no outro blog, o de história
Quanto aos problemas do docudrama dos Romanov, três links: The Last Czars: the historical drama that the whole of Russia is laughing at, "Os Últimos Czares": por que a série da Netflix virou assunto e motivo de críticas e Os 23 piores erros de 'Os Últimos Czares', da Netflix. É um negócio problemático em muitos níveis e esses textos nem aprofundam as questões políticas por assim dizer.
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