Finalmente, consegui assistir a primeira grande adaptação de Orgulho & Preconceito feita pela BBC. Durante anos, li a ladainha de que a série tinha se perdido e que só restavam um ou dois episódios preservados e fragmentos dos demais. Mesmo fotos da produção são difíceis e de baixa qualidade. Mas eis que os capítulos inteiros, ainda que com baixa qualidade (*Quem se importa?*) apareceram no Youtube e a querida Jéssica me passou o link. A minha intenção original era fazer duas resenhas comentando três episódios em cada uma delas, mas vai tudo de uma vez.
Para quem não conhece o básico da história de Orgulho & Preconceito, o livro, publicado em 1813, tem como protagonista Elizabeth Bennet (Celia Bannerman), uma jovem que mora com sua família em Longbourn, uma vilazinha rural no sul da Inglaterra. Lizie, como é chamada pelos íntimos, tem cinco irmãs (*nesta série uma delas, Mary, foi eliminada*), o pai (Michael Gough), que a tem por filha favorita, e uma mãe (Vivian Pickles) um tanto descompensada e que se preocupa muito com o futuro das moças, porque a propriedade paterna não seria herdada por elas, pois estava atrelada à linhagem masculina da família. Quando o pai faltasse, todos os bens imóveis dos Bennet passariam para um primo da família, Mr. Collins (Julian Curry), recém-ordenado pastor e à procura de uma esposa. As possibilidades de casamento das moças é um tanto restrita, porque a fortuna de seu pai é pequena e isso impactará o dote das jovens, algo que credenciaria a um matrimônio vantajoso.
Os Bennet pertencem à pequena nobreza rural (gentry), por isso, se relacionam com gente que tem condições econômicas superiores às suas. Chegam à Longbourn um grupo de pessoas ricas, dentre eles, dois jovens solteiros e em idade de casamento, Mr. Bingley (David Savile) e Mr. Darcy (Lewis Fiander). Bingley cai de amores por Jane (Polly Adams); já Elizabeth atrai a atenção contrariada de Darcy. A moça, no entanto, desenvolve uma animosidade em relação ao sujeito que julga orgulhoso e acredita nas histórias que outro recém-chegado, Mr. Wickham (Richard Hampton), lhe conta sobre ele, mais tarde, a coisa piora, porque Elizabeth fica sabendo que Darcy foi peça fundamental para a separação de Bingley e Jane. Ainda assim, com o passar do tempo, Elizabeth termina por compreender que seu julgamento foi equivocado e passa ver Mr. Darcy com outros olhos, mas até que eles fiquem juntos muita coisa irá acontecer nessa história.
Orgulho & Preconceito de 1967 foi produzida para marcar os 150 anos da morte de Jane Austen, falecida em 18 de julho de 1817. Com seis episódios de 23 minutos, na média, a série tem a duração de um longa metragem, o que pode não ser suficiente para contar bem a história do livro, mas foi um grande investimento da TV pública inglesa e abriu caminho para todas as adaptações que viriam depois, inclusive as das obras de Jane Austen do início dos anos 1970, e eu comentei pelo menos uma delas, Emma, de 1972 (*parte 1 e 2*). Outro aspecto importante desta adaptação é que ela foi dirigida (Joan Craft) e roteirizada (Nemone Lethbridge) por mulheres. É algo inédito, ainda mais raro por ser nos anos 1960, e o resultado foi excelente, dadas as limitações da época.
No geral, a história do livro foi seguida, mas como o tempo é reduzido, houve algumas partes do texto que foram enxugadas e reescritas, além disso, diálogos foram mudados de lugar sem prejuízo para o geral da série. Citando um exemplo dessas alterações, a primeira declaração de amor de Darcy, aquela absolutamente desastrada, quando ele lamenta estar apaixonado por alguém tão inferior a ele, foi condensada. Ficou ruim, não, mas perde o seu impacto e esta cena, em especial, é meio que um termômetro para avaliar o desempenho do ator que faz Mr. Darcy.
Quanto a isso, eu tenho sentimentos contraditórios em relação à Lewis Fiander. Acho a interpretação dele muito boa, gosto da sua voz, e ele imprime uma personalidade própria ao seu Darcy. Ele é orgulhoso, mas, ao mesmo tempo, tem um ar um tanto sarcástico, e o texto, o que foi selecionado dele e ajustado pelo roteiro, valoriza a sua inteligência e o coloca como alguém que aprecia a impertinência de Elizabeth, porque ele mesmo teria um senso de humor um tanto provocativo, desde que estimulado. E ele sorri, chega até a gargalhar. Estranho que seja, eu me convenço de que ele é Darcy, a leitura dele da personagem foi muito competente e segura.
E quando conversa com a mãe de Elizabeth, já no final da série, criam uns diálogos deliciosos entre a Mrs. Bennet, e Vivian Pickles está excelente no papel, no qual Darcy parece gentil, mas está dando umas cortadas super afiadas na futura sogra e a deixando mais confusa que o meme da Nazaré que ficou famoso na internet mundial. Enfim, desde o comecinho, Darcy parece encantado pos Elizabeth. Está evidente seu interesse, mas sem aquela afobação da personagem no filme de 1940, na qual Laurence Olivier só faltava lamber o chão que Elizabeth pisava.
E a adaptação dá a entender que ele imaginava que Elizabeth havia se casado com Mr. Collins e ao encontrá-la em Rosings e ver a confusão desfeita, o olhar dele é muito eficaz em transmitir a surpresa e o prazer. A moça ainda está disponível, para o bem ou para o mal. Cortaram, infelizmente, a fala de Darcy sobre o que é necessário para que uma mulher seja bem educada e a resposta de Elizabeth. De todos os diálogos suprimidos, este foi o único que considero que realmente fez falta para narrativa.
E Fiander é um Darcy que não se faz de rogado. Há a tensão erótica, porque é, vamos dar nome aos que tem nome, impulsos que deveriam ser reprimidos dentro da boa sociedade, mas o Darcy de 1967 é capaz e demonstrar seu interesse e suas emoções sempre como um cavalheiro, que fique bem claro. Quando Elizabeth recebe a carta contando da fuga de Lydia, uma garota de 16 anos, com Wickham, a cena é mais curta que na versão de 1995, mas ele se despede da mocinha aos prantos beijando sua mão (*isso ele pode fazer*) com grane devoção e angústia antes de partir, que é como se ele a estivesse abraçando mesmo para consolar (*algo que ele não pode fazer*).
E, já no final, quando temos a nova declaração, reduzida e modificada que seja, ele vai lá e beija a moça. Eu me revolto até hoje que em 1995, Elizabeth e Darcy sequer tocam as mãos. Falando em 1995, sempre aparece que esta série foi pioneira em mostrar Darcy fazendo coisas que somente imaginamos. Surpresa! Em 1967, Darcy é mostrado confrontando Wickham e o convencendo a casar com Lydia. Isso tudo com sue desprezo estampado no rosto, além de demonstrar repulsa quando Lydia deseja tocá-lo, emocionada, quando sabe que vai se casar. "Guarde seus afetos para seu futuro marido, Miss Bennet!", eu imagino Darcy dizendo isso. Não está no livro, mas a cena é muito verossímil.
Já Celia Bannerman junta-se ao grupo as melhores Elizabeths, na minha opinião. Ela tem uma vivacidade, um senso de humor muito aguçado. Ao mesmo tempo, se necessário, ela mostra todo aquele senso de modéstia e refinamento (*que faltava à mãe e às irmãs mais jovens*) que a personagem possuía. Bannerman realmente consegue passar o arrependimento de Elizabeth quando ela começa a perceber que julgou mal Mr. Darcy. Uma pena nesta versão é que Darcy e Elizabeth meio que duelam na cena que deveria ser somente a mocinha lendo a carta na qual ele conta por qual motivo separou Jane e Bingley e conta as desventuras de sua irmã. Foi uma das escolhas ruins da série. Eu não imagino Darcy contando aquilo diretamente para a moça. Como são dois excelentes atores, a coisa consegue fazer sentido dentro da lógica interna da série, mas desvia muito da obra original. Nesta versão, Wikham ousa ir ao baile dado por Bingley e é escorraçado por Darcy, isso rompe com o livro, também, mas se presta a exacerbar a animosidade de Lizie pelo mocinho.
Preciso falar de outras personagens, porque há várias que terão destaque na série, algumas com um sabor bem diferente da maioria das adaptações. Comecemos pelo Bingley de David Savile. Em primeiro lugar, ele é o ator mais bonito da série, lindo de se ver. O segundo ponto, é que ele faz um Bingley decidido e que enfrenta as irmãs, porque a série colocou as duas, inclusive apontando que a origem do dinheiro de sua família é o trabalho, que eles podem ser parte das "classes ociosas", mas não devem esquecer de onde vieram. Mais tarde, quando ele descobre que Jane esteve em Londres e ele foi enganado, ele solta os bichos na irmã e Darcy sai de fininho para não sobrar para ele. É um Bingley muito, muito, muito diferente do que costumamos ver.
Falando de Caroline (Georgina Ward), a irmã solteira, a atriz é muito bonita e tem um ar superior, além de ser má. Não existe dúvida de que ele é cruel, maliciosa, se acha superior e fará o possível para tirar Elizabeth do seu caminho. Também não há nenhuma sombra nela de carinho complacente por Jane, ela despreza os Bennet. Louisa (Karin MacCarthy), a irmã casada de Binsgley, age como minion da irmã, aparecendo bastante, e seu marido Mr. Hurst (Vivian James) tem menos o ar de bêbado de outras adaptações e mais a postura de cavalheiro rico e esnobe mesmo. E uma criação da série foi colocar Lady Lucas (Diana King) como informante de Caroline Bingley.
De todas as adaptações, esta é a que dá mais destaque para a mãe de Charlotte (Kate Lansbury), ela sabota Mrs. Bennet, ela quer promover sua filha, inclusive há uma cena dela arrumando a moça para o baile e querendo colocar em destaque a beleza que ela não tem. Lady Lucas vilã é algo que não aparece em nenhuma outra adaptação. Já a Charlotte dessa série parece ser a que tem mais consciência da sua situação desesperadora, ela está passada da idade de casar, seu dote é pequeno e ela não é bonita, além disso, para sua sorte, há os que a julgam pouco inteligente. Ela é amiga sincera de Lizie, mas sai atrás de Mr. Collins sem pensar duas vezes e surpreende a todos ao conseguir ser "escolhida" por ele como esposa. Kate Lansbury é uma excelente Charlotte.
O Mr. Collins da série também é muito convincente, Julian Curry consegue estar próximo da personagem original, enquanto é um tiquinho perverso e maldoso, talvez, até um tanto pervertido, talvez. Colocam-no inclusive chegando no ouvido de Elizabeth e sussurrando, "tudo isso poderia ser seu", quando lhe apresenta sua casa com Charlotte. O problema é que ele teria que vir junto. Quando Lydia "se perde", sua carta em versão reduzida é muito enfática em dizer que seria melhor que ela estivesse morta.
A Lady Catherine de Sylvia Coleridge é boa, mas não se destaca como a de outras adaptações e ela tinha os dentes ruins que acabavam me distraindo quando eu olhava para ela atuando. Mr. e Mrs. Gardiner (Hugh Cross e Eithne Dunne), os tios sensatos de Elizabeth, foram bem utilizados na trama, inclusive em cenas criadas para correr com a história por falta de tempo. Poderiam incluir alguns diálogos e colocar Mrs. Gardiner contando o que Darcy fez (*na série é Lydia quem diz tudo*), mas os dois estão muito bem.
Não vejo nada a se destacar em Lydia (Lucy Fleming) e Kitty (Sarah Taunton), elas agem como uma dupla e não há o contraponto de Mary, que foi cortada. Na verdade, há menos cenas com as irmãs interagindo do que a média das adaptações. O destaque para Elizabeth é muito maior que a média. Agora, as duas são um bom exemplo dos problemas de cabelo e figurino, comuns à época, acredito. Kitty e Lydia estão sempre de cabelo solto e parecendo moças inglesas de 1967. Na verdade, os cabelos da série estão muito mais próximos da época em que a série foi produzida, assim como as roupas, algumas tem até o zíper visível, fora a silhueta que lembra essa virada dos anos 1960 para o 1970.
Dois pontos antes do fim, não entendi por qual motivo Darcy usou "lawyer", termo muito genérico para advogado em inglês britânico, quando deveria usar "solicitor", porque seria o advogado responsável por contratos e coisas assim, que iria procurar Wickham. Se quiser saber mais sobre isso, recomendo o vídeo do Tecla Sap sobre o assunto. E houve um corte de cena realmente confuso quando Darcy chega de surpresa em sua casa e encontra Elizabeth admirando seu retrato com os tios. Para quem não sabe, alguns dos espaços das grandes casas poderiam ser e são até hoje abertas para a visitação pública. No livro e em todas as versões da BBC, eles se encontram do lado de fora. Nesta versão, cortam direto de dentro de casa para a beira do rio, parece que passou muito tempo, Darcy está com outra roupa, mas é muito abrupto, foi erro de continuidade.
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