Acabei de assistir o filme Emily, um drama romântico biográfico inspirado na vida de Emily Brontë (1818-1848), autora de um dos livros mais famosos da literatura inglesa, O Morro dos Ventos Uivantes. Assinado e dirigido por Frances O'Connor, ele tem uma excelente elenco, uma bela fotografia e um figurino que é fiel à época que visa retratar, além de muito bonito. Emily também se propõe a ser um filme feminista e, bem, aqui a coisa começa a ficar complicada, mas comecemos usando o resumo do filme que está no IMDB: "Emily imagina a jornada transformadora, emocionante e edificante para a feminilidade de uma rebelde e desajustada, uma das escritoras mais famosas, enigmáticas e provocativas do mundo que morreu cedo demais aos 30 anos."
Resenha difícil de fazer, porque o filme Emily realmente me deixou com raiva em muitos momentos, mas tentarei separar a película como obra do que temos de concreto sobre a vida de Emily Brontë (Emma Mackey) e sua família. Dito isso, será uma resenha em duas partes; espero que fiquem bem separadinhas, mas sei que isso não deve acontecer.
A proposta da diretora e roteirista com o filme era colocar Emily no centro de sua própria história, Trata-se de uma jornada de autoconhecimento e crescimento, um bildungsroman. A cronologia do filme não é muito clara, mas começamos com Emily morrendo nos braços da irmã, Charlotte (Alexandra Dowling), e um longo flashback que começa na adolescência da autora. Ela é apresentada como uma criatura estranha, uma espécie de ovelha negra da família, em contínua comparação com Charlotte, a irmã mais velha perfeita, que deseja se tornar professora e abandonou qualquer forma de atividade criativa, é dito que elas criavam histórias, e Anne (Amelia Gething), a caçula, segue nos passos da mais velha, sendo uma jovem muito apagada.
O par de Emily seria Branwell (Fionn Whitehead), o único irmão, outra criatura que não se encaixa, ainda que tenha todas as vantagens de ser filho homem. Mesmo ele tem inveja de Charlotte, a quem parece desprezar, porque ela, obediente, disciplinada, reprimida, teria o amor do pai (Adrian Dunbar). O patriarca da família é apresentado como alguém com um sorriso sereno, ideias conservadoras e moralidade severa, tanto Branwell, quanto Emily, têm medo dele, de seus castigos, que incluem espancamentos. Tanto o pai, quanto Charlotte, ameaçam Emily Jane, porque a chamam pelo nome duplo quando a querem intimidar, de que ela não deve envergonhar a família. A tia (Gemma Jones), que ajudou na criação dos irmãos, também fica e olho na protagonista.
Da mesma forma que a cronologia da vida dos Brontë não é respeitada no filme, mas reinterpretada livremente, os acontecimentos também são lidos de forma bem livre. Branwell passa mais tempo em casa e em contato com Emily do que passou de fato, ele é uma presença muito forte na vida da moça e juntos se metem em aventuras pelas charnecas que servirão de modelo para Heathcliff e Catherine. Os dois são, portanto, duas criaturas desgarradas, rebeldes, que se recusam a se conformar. Eles espionam a vida de uma família vizinha, os Linton, que também servirão de modelo para personagens do famoso livro que Emily escreverá.
Outra personagem importante na trama é o pastor auxiliar, William Weightman (Oliver Jackson-Cohen), recém-chegado da universidade. Bonito, culto, inteligente, ele se debate entre o conservadorismo, a necessidade de conformação e a tentação que parece ser a convivência com Emily, uma criatura que busca a liberdade e um lugar próprio no mundo. O pai de Emily o coloca para dar lições de francês para a moça e eles vão caminhar do embate teológico até uma paixão proibida que termina por deixar o jovem reverendo em pânico. Uma das ideias do filme é que Emily não poderia escrever com propriedade sobre o amor, o desespero, e todos os temas pesados que estão em O Morro dos Ventos Uivantes se não as tivesse vivido pessoalmente.
Eu realmente considero isso uma grande bobagem. Os Brontë eram cultos, os membros da família escreviam desde a infância e Emily, mesmo com toda a sua timidez, teve acesso a uma excelente educação para os padrões das mulheres de sua época. Esta ideia de que ela precisava ter vivido o que colocou em seu livro me faz perguntar se esperariam o mesmo de um autor homem. Para escrever Os Assassinatos da Rua Morgue, Edgar Allan Poe precisava vivenciar algo semelhante? Não bastaria ler sobre crimes famosos e usar a sua imaginação? O que me parece muito ofensivo é que quando vivo, Branwell parece ter dito mais de uma vez que ele teria escrito o livro famoso da irmã. O filme não sugere isso, mas dá ao irmão irresponsável, bêbado e viciado em drogas um papel muito grande no desenvolvimento de Emily como autora.
Falando em influência de Branwell, o filme mostra Emily seguindo um percurso bem caricato para se tornar uma autora fora da caixinha, por assim dizer. Ela anda de cabelo solto para cima e para baixo, questiona sua fé, chega a debochar dentro da igreja junto com o irmão (*e é acobertada por Weightman). Branwell lhe oferece bebida alcoólica e ela chega embriagada com ele em casa uma noite, ambos usam drogas, Emily aparece sob o efeito de ópio mais de uma vez ao longo da película. Há quem acredite que para criar algo realmente brilhante, drogas são fundamentais, trata-se de um clichê que envolve, não raro, que o gênio das artes, música, literatura, morra jovem. E Emily chega a fazer uma tatuagem igual a do irmão para mostrar o quanto é rebelde.
Além disso, fará sexo intensamente depois que Weightman se rende à tentação, porque ele a acusará de ser responsável por sua queda, algo compreensível em uma sociedade machista e patriarcal. A primeira vez dos dois é em um estábulo no meio do nada, ou seja, eles estão fora da ordem, mais perto da natureza inculta do que da civilização, afinal, eles não eram casados, estavam transgredindo às regras da boa sociedade. Outra metáfora clichê, eu diria.
Achei interessante nesta cena que mostraram Emily despindo as várias camadas de sua roupa e que seu espartilho estava ajustado, mas não excessivamente apertado, pois a maioria das mulheres não praticava tight lacing. Aqui, fugiram de um clichê, ou, talvez, seja mais uma metáfora de não conformidade da protagonista, vai saber... Fora a obviedade do estábulo, a cena é bonita. Só acho difícil Emily não engravidar depois de um romance tão intenso e foi engraçado quando o pai diz que o francês dela melhorou graças às aulas de Weightman. 😊
Enfim, o filme parece vender álcool, drogas, tatuagem e sexo como algo que referenda a genialidade de alguém. Fora isso, não existe a noção de privilégio masculino. O que um Branwell podia fazer, sendo homem, poderia destruir a reputação de uma Emily e, talvez, conduzi-la a uma instituição psiquiátrica como forma de correção e para esconder o escândalo. O filme, no entanto, é muito complacente com Branwell e Emily, eles estão certos, estão em oposição a uma sociedade hipócrita e reprimida. Curiosamente, ele paga preço maior que o dela, porque, pelo menos no filme, ele não é colocado como o filho mimado e favorecido pelo pai, mas como alguém submetido a uma rígida disciplina que o oprime e serve de motor para a sua revolta.
Graças às vivências com Branwell e Weightman, Emily consegue escrever seus poemas e criar sua obra-prima. Tudo é muito trágico, não há final feliz para ninguém. Os vícios e a angústia levam Branwell à destruição, o filme introduz na sua relação com Emily um sentimento incestuoso que o coloca em ação contra o romance dela com Weightman. Consumido pela culpa, Weightman contrai cólera e morre (*aqui, segue-se o que aconteceu de verdade*). Emily tira dessas tragédias a força para concluir sua obra máxima antes de morrer de tuberculose (*e dor*) aos trinta anos. Aqui, é história e em história não há spoiler.
Para quem gosta de histórias de amor dramáticas com gente bonita, porque o elenco é muito bonito, cenas de amor e sexo carregadas de angústia, o filme é redondinho. Há toda um a série de imagens que reforçam a ideia de que Emily seria um espírito livre e que sua morte precoce seria algo inevitável em um mundo tão sufocante.
Sem entrar na discussão da fidelidade à vida de Emily Brontë, é muito difícil, pelo menos para mim, digerir o filme como uma obra feminista, afinal, a protagonista é levada a escrever empurrada pelos homens de sua vida e permanece em antagonismo com suas irmãs até os derradeiros minutos da película. Os laços entre as irmãs, especialmente, entre Anne e Emily, não existem e as mulheres parecem movidas pela inveja. Charlotte inveja a liberdade de Emily, que se recusa (*ou é incapaz*) de se enquadrar. Já, Anne, pobrezinha, não tem personalidade própria. Ellen Nussey (Sacha Parkinson), amiga de Charlotte que vem visitar e fica como hóspede, é pintada como uma idiota. A maioria das mulheres deve ser assim mesmo parece ser a mensagem do filme.
Sabe a história do "você não é como todas as outras"? Então, Emily no centro de sua própria história parece ser a personificação dessa ideia. E um filme feminista não pode se estruturar sobre os espezinhamento das demais mulheres para que uma se eleve em toda a sua grandeza. Em Emily, sem a influência masculina não teríamos O Morro dos Ventos Uivantes, fruto direto da relação com os dois homens que são mais proeminentes na película do que Anne e Charlotte, indiretamente, também não teríamos qualquer das obras das irmãs Brontë, pois é a morte da irmã que as impulsiona a escrever. Na verdade, a primeira a tentar publicar foi Charlotte, bem antes de O Morro dos Ventos Uivantes, aliás.
Em Emily, tanto Charlotte, quanto Anne, foram apresentadas como incapazes de escapar das convenções sociais e criar qualquer coisa por si mesmas até a morte da irmã. Charlotte começa a escrever Jane Eyre no final do filme, já Anne não é mostrada escrevendo qualquer coisa, aliás, o filme parece sugerir que elas não costumavam escrever suas histórias, mas contá-las em voz alta umas as outras. Emily pode funcionar como filme tragédia romântica, mas acaba aí e fica um gosto amargo na boca.
Não vou me alongar muito pontuando os problemas, ou escolhas, feitas no filme Emily em relação aos fatos da vida das irmãs Brontë e Branwell (1817-1848), porque na resenha sobre o filme da BBC To Walk Invisible, me estendi bastante sobre isso, inclusive, fiz críticas ao excesso e importância do irmão na película. Resumindo, as irmãs lançaram seus primeiros livros (Jane Eyre, O Morro dos Ventos Uivantes, Agnes Grey) juntas e com um pseudônimo masculino (*Currer, Ellis e Acton Bell*).
Não havia facilidade ou acolhimento em relação às mulheres autoras, como é mostrado no filme, a real identidade das escritoras só veio depois da morte de Emily. Jane Eyre foi publicado em outubro de 1847, Agnes Grey e O Morro dos Ventos Uivantes saíram em dezembro do mesmo ano. A questão da publicação de O Morro dos Ventos Uivantes no filme é tratado de forma bem leviana, tendo se presta para afirmar a genialidade de Emily em relação às suas irmãs, quanto para passar para as novas gerações uma ideia distorcida sobre as possibilidades oferecidas às mulheres em meados do século XIX.
De qualquer forma, muito do que sabemos sobre Emily vem das informações dadas por Charlotte (1816-1855), que usava óculos o tempo inteiro por necessidade, diferente do que é mostrado no filme, e sempre há de se questionar se ela não embelezou sua vida, pois a autora de Jane Eyre censurou uma das obras de Anne (1820-1849), a mais ousada das irmãs em matéria de crítica social. Por isso mesmo, o que temos sobre Emily é muito baseado no que Charlotte disse sobre ela, nas cartas que sobraram, naquilo que a irmã mais velha escreveu para pessoas como Ellen Nussey, ou no que esta última escreveu sobre a amiga e suas irmãs. Quanto à William Weightman (1814–1842), ele existiu de verdade, mas, ao que se sabe, ele nunca teve nenhuma relação com Emily, mas pelas cartas de Charlotte e por um poema escrito por Anne após a morte do jovem pastor, parece que a relação dele era com a irmã caçula.
No filme, Branwell é colocado para ser tutor do filho do Sr. Linton como castigo e acaba tendo um caso com sua esposa. Na vida real, ele foi ser tutor na mesma casa onde sua irmã Anne trabalhava fazia alguns anos, porque o menino mais velho estava crescido demais para ficar sob a responsabilidade de uma governanta. Ele teve um caso com a esposa do patrão e Anne perdeu seu emprego junto com Branwell. O rapaz, aliás, foi educado pessoalmente pelo pai, que deveria saber francês, ao contrário do que é mostrado no filme, mas foi mimado e nunca conseguiu seguir uma carreira. Assim como as irmãs, ele escrevia, mas não conseguiu alcançar sucesso com seus escritos. Ele também é responsável pelo único retrato das três irmãs, que aparece no filme.
Concluindo, o filme Emily usa de um recurso para promover sua protagonista, que é a desqualificação de outras mulheres para afirmar sua grandeza. Além disso, coloca a genialidade dessa mulher como fruto da sua interação com homens que lhes deram a possibilidade, ou as experiências fundamentais para desenvolver o seu talento. O filme também é muito incorreto ao pintar o século XIX, a Inglaterra Vitoriana, como um lugar acolhedor para mulheres escritoras, quando as próprias Brontë não ousaram usar seus nomes reais durante anos e, ainda em nossos dias, vemos escritoras usando de subterfúgios para que seu sexo não seja identificado e utilizado como critério primeiro para avaliar se suas obras merecem, ou não, serem lidas.
De resto, e podem me chamar de moralista, porque não me importo, é cansativo ver a ideia de genialidade atrelada a necessidade de uma vida regada à drogas, álcool, blasfêmia e sexo fora do casamento. Sim, trata-se de um estereótipo que reduz a criatividade e capacidades intelectuais dos seres humanos a bandeiras ditas progressistas e que terminam por ser grilhões quase tão pesados quanto os impostos às pessoas em eras outros contextos históricos vistos como repressores. Resumindo, não há nada de revolucionário em pintar Emily Brontë com essas tintas ousadas.
0 pessoas comentaram:
Postar um comentário