Hoje, é o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Nesta data, em 1948, foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Este documento é o primeiro de caráter universal, pois foi reconhecido por todas as nações membros da ONU, de proteção aos direitos humanos e veio no impacto do horror da 2ª Guerra, em especial, dos crimes cometidos pelo regime nazista, aquele que está sendo admirado e exaltado por tantos aqui no Brasil. Esta data é, também, a culminância da campanha de 14 dias contra a violência contra as mulheres, que começa no dia 25 de novembro.
Como sempre faço, ou faço desde muito tempo neste blog que tem quase 18 anos, eu marco a data, porque a violência contra mulheres cis e trans e meninas é algo prevalente e que atravessa todas as sociedades em nossos dias. Pode ser mais visível em alguns lugares, mas ela não está ausente de nenhuma sociedade patriarcal, pois sua organização se baseia na subordinação e na apropriação das mulheres pelos homens. E fecharei este curto texto apontando para uma guerra que está em andamento contra as mulheres em vários países do mundo, mas que é muito visível no Brasil no ocaso do governo Bolsonaro. Sim, a guerra não vai acabar com a posse de Lula, mas, pelo menos, não teremos um governo comprometido em destruir nossos direitos reprodutivos, em colapsar todas as estruturas de proteção dos mais pobres e mesmo na promoção de práticas que podem conduzir à morte, como a rejeição das vacinas.
Muito bem, acima está um print de uma matéria que saiu na Folha de São Paulo sobre a negação do direito de uma mulher de interromper a gravidez de um feto inviável. O feto não tem os dois rins, tem os pulmões atrofiados, além de não apresentar líquido amniótico, PORÉM, a juíza, mesmo diante de todas os laudos médicos que afirmam que tais má formações seriam incompatíveis com a vida e que há a preocupação com a saúde mental da gestante, a juíza não considerou os dados suficientes e negou a equiparação aos casos de fetos anencefálicos. Obrigar uma mulher a carregar um feto inviável por nove meses, ou quanto durar a gestação, é uma forma de tortura e a prática é proibida pela Declaração dos Direitos Humanos e nossa constituição, mas, enfim, mulheres continuam sendo submetidas a esse tipo de situação cotidianamente no Brasil. Vejam que em nenhum momento estou falando neste texto de descriminalização do aborto em qualquer caso, não é o assunto aqui, falo de direitos reprodutivos já assentados e sob ataque, falo de respeito aos direitos humanos das mulheres.
Como eu já escrevi antes, o fato de ser uma mulher a magistrada a negar um direito, não modifica em nada, a situação. Para que esse projeto de destruição dos direitos reprodutivos das mulheres seja levado adiante, para que nossa cidadania seja rebaixada, ou negada, é preciso de mulheres que sejam aliadas dos discursos e práticas misóginas. É como escreveu Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.". Esta cumplicidade pode ser consciente, ou não, e pode se assentar no privilégio e na certeza, que mais cedo ou mais tarde será colocada abaixo, de que você não pertence ao grupo oprimido, ou que é um ser especial.
Na última quarta-feira, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, presidido pela Policial Kátia Sastre (PL-SP), que se elegeu graças a um vídeo no qual aparece matando um assaltante, se reuniu novamente para discutir novamente o chamado Estatuto do Nascituro, era o único ponto da pauta. O projeto está parado na Câmara faz anos e, segundo o próprio site da casa legislativa, o novo Estatuto pretende proibir "o aborto inclusive em casos de violência sexual", na verdade, o que o projeto propõe é a equiparação jurídica do embrião desde a concepção aos já nascidos. O embrião passaria a ter os mesmos direitos de cidadania e, portanto, à vida, que qualquer um de nós. Isso estabelecido, as mulheres e meninas cis e outras pessoas que podem gestar seriam meras incubadoras, mesmo com sua vida em risco, seria ilegal escolher entre quem já é e quem ainda não é, mesmo o feto anencefálico teria os seus direitos de cidadania reconhecidos e, claro, a mulher, ou menina, estuprada seria obrigada a levar sua gestação até o fim.
Sim, a palavra aqui é OBRIGADA, porque qualquer interrupção de gravidez seria equiparada a um assassinato. Todo profissional de saúde que se envolvesse em uma interrupção de gravidez, mesmo as previstas no artigo 128 do Código Penal de 1940, poderia ser processado. Toda mulher que tivesse uma interrupção de gravidez espontânea se tornaria suspeita de homicídio como acontece em El Salvador e em poucas outras nações do mundo. Simples assim e não tenham dúvidas de que os envolvidos na guerra contra as mulheres iriam levar essas ações de perseguição adiante. Esta última reunião foi desdobramento de uma primeira com forte presença de grupos feministas e outros pró-estatuto em no dia 30 de novembro, não fosse essa pressão e a atuação de deputadas como Sâmia Bonfim (PSol/SP), Erika Kokay (PT/DF), Talíria Petrone (PSOL/RJ), Aurea Carolina (PSOL/MG), Vivi Reis (PSOL/PA) e Fernanda Melchiona (PSOL/RS) a matéria talvez tivesse sido aprovada.
Se alguém ainda tem dúvida do que se trata o Estatuto do Nascituro, o parecer do relator Emanuel Pinheiro Neto (MDB-MT) não deixa dúvidas, "É muito claro que, desde a concepção, nasce para a Constituição Federal um titular de direitos fundamentais, sendo a vida o primeiro marco e o pressuposto para o exercício de qualquer outro direito". Curiosamente, ao longo dos últimos quatro anos, mormente durante a pandemia, o direito à vida foi colocado em segundo plano em favor da "liberdade" (*sabe-se lá o que isso significa*) e a economia, porém, quando se trata do corpo das mulheres, qualquer noção de autodeterminação é deixada de lado em prol de princípios muito abstratos e moldados dentro de um campo ideológico religioso que rebaixa a vida das mulheres e iguala embriões aos que já nasceram. Aliás, sobre isso já recomendei e recomendo novamente, o primeiro episódio do podcast Guerras Culturais da BBC. Ele é muito instrutivo.
O fato é que a aprovação do Estatuto do Nascituro seria um grande retrocesso para os direitos humanos das mulheres. O novo pedido de vistas adiou mais uma vez a votação, mas o ideal é que tal aberração não fosse mais pautada. Infelizmente, mesmo a eleição de um governo não alinhado com esse tipo de proposta não garante que ela não será analisada em comissões, ou mesmo no plenário da Câmara e do Senado. É preciso que fiquemos atentas, porque a última reunião, a do dia 7 foi à portas fechadas e sem a presença de representantes da sociedade civil. Deixe os homens e as mulheres patriarcais resolverem nosso futuro.
Felizmente, as deputadas lutaram e conseguiram o direito de fala sobre uma questão tão importante, uma das colocações de Sâmia Bonfim merece destaque aqui: "Meninas, em sua maioria, crianças que são mais de 70% das vítimas de violência sexual do País, quando estupradas, serão obrigada a levar adiante uma gravidez de seu estuprador. Um sujeito que deveria ser punido por seus crimes será chamado de pai", disse. Conforme a proposta, "o nascituro concebido em ato de violência sexual goza dos mesmos direitos de que gozam todos os nascituros". Para Sâmia, o estatuto deveria ser "do estuprador", porque, e vimos isso no caso da menina de Santa Catarina, os autointitulados defensores da vida querem chamar estuprador de pai e pensar um ato de violência como ponto de partida para a formação de um núcleo familiar.
É isso. Acredito que temos muito ainda a caminhar em termos de direitos humanos das mulheres e não basta esticar o dedo para acusar outras nações, é preciso olhar para o nosso próprio umbigo e perceber que o Brasil estava, e talvez ainda esteja, caminhando a passos largos para se tornar um evangelistão. Eu não gostaria de um futuro assim para a minha filha. Eu quero que as mulheres tenham seu direito de escolha ampliado; que educação sexual seja ministrada nas escolas para que tenhemos menos gravidezes indesejadas e estupradores sejam identificados por suas vítimas como tais; quero uma rede social ampla de amparo às gestantes e puérperas de forma que uma mulher não precisa temer em caso de gravidez por seus empregos ou onde deixarão seus pequenos enquanto estiverem trabalhando. Será que no próximo dia 10, terei um texto mais feliz a escrever? Espero que sim.
2 pessoas comentaram:
Tomara que haja protestos e até mesmo desobediência civil se essa lei abusiva for aprovada.
Ninguém pode ser forçado a acatar leis jurássicas e draconianas.
A maior parte dos "pró-vida" são homens brancos privilegiados... curioso.. não ?
Felizmente há países que são o extremo oposto de El Salvador.. e que o Brasil se espelhe nestes.
É como escreveu Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.".
Beauvoir sabia que dizia, ela viveu na França ocupada ... testemunhou o colaboracionismo.
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