Já falei mais de uma vez neste blog sobre mulheres que tiveram sua vida roubada, seja por um feminicídio, seja por cárcere privado, ou em escravidão doméstica. Só que essas histórias de mulheres encarceradas (*não de feminicídios, que fique claro*) que aparecem na nossa grande mídia normalmente envolvem pessoas que pertencem às camadas populares, às classes médias, ou privadas de uma educação sólida. Não raro, esses casos estão circunscritos às periferias, ou em rincões de nosso país. Comentei um caso no interior do Ceará em 2017; houve um caso de uma mulher e seus filhos mantidos em cárcere privado em Guaratiba, Rio de Janeiro, recentemente. Coisa de gente pobre, certo? Não.
Simplesmente, e nisso estou lembrando de uma discussão sobre violência contra as mulheres feitas em um dos livros da socióloga Heleith Saffiotti (*não lembro qual*), os ricos escondem melhor essas suas mazelas. Eles têm uma imagem a zelar, podem perder dinheiro e tem amigos nos lugares certos para ajudar a encobrir as coisas, caso necessário. Pois é, hoje me deparei com uma história que parecia saída de outro século. Com o título de "'Espera cruel': internada contra a vontade pelo ex, escritora cobra Justiça.", a matéria conta a história de uma mulher muito bem de vida que foi internada contra a sua vontade em uma clínica psiquiátrica, porque queria se divorciar do marido. Vou citar o começo do drama, ou quando ele se tornou um caso de polícia:
Em 20 de outubro de 2019, um domingo à tarde, dois enfermeiros e uma médica atravessaram o longo corredor do apartamento onde a escritora Helena Lahis morava com as filhas e o marido, na Urca, região nobre do Rio de Janeiro. Sentada na escrivaninha do quarto onde passava horas escrevendo, Helena rascunhava páginas de novos contos. Eles entraram no cômodo e disseram que iriam levá-la a uma clínica de reabilitação — segundo a psiquiatra, Helena estava em uma crise de bipolaridade. "Tomaram meu celular e perguntaram se eu iria 'por bem ou por mal'", diz.
Briga de gente rica, mas uma caso exemplar de machismo que me deixou bem impactada, porque eu não acreditava (*Oh, minha ingenuidade!*) que esse tipo de coisa pudesse acontecer em nosso tempo e no Rio de Janeiro, ainda mais em um bairro tão simpático e elegante como a Urca. Mulher bem sucedida, casada com homem ainda mais bem sucedido, se o parâmetro é dinheiro, quer se separar, mas é pressionada a continuar com o casamento com sue primeiro namorado. Ele fica violento, ele quebra tudo, ela recua e vai empurrando com a barriga. Só que uma gaiola bonita, ainda assim é uma gaiola.
Anos depois, ela arranja um amante e ele descobre, invade seu e-mail e abre para a família dela, que parece ser bem conservadora, que ela é uma adúltera. Ela reforça que quer se separar, ele arranja TRÊS psiquiatras, um deles uma amiga da família, que atestam que a mulher está em surto e precisa ser internada. "Ela havia mudado de comportamento, diziam os familiares. As filhas se queixavam que ela não ligava com a frequência habitual para saber onde estavam e passou a chegar mais tarde em casa. A mãe da escritora, Maria Luiza Tavares, dizia que Helena estava "fazendo uso abusivo de remédio para emagrecer" e "escrevendo compulsivamente" [A mulher é ESCRITORA!]." Me lembrei dos estudos sobre mulheres internadas como loucas no final do século XIX e primeiras décadas do século XX: "(...) os prontuários dos médicos eram impressionantes. As justificativas para a internação parecem inverossímeis aos olhos de hoje. 'A paciente apresenta grave obsessão por livros', 'desprezo pela família', 'excitação sexual nervosa', 'recusa em ter filhos'”" Olha, como os discursos se encontram! Como as justificativas são parecidas e mesmo com a cidadania feminina assegurada por lei, ainda assim, conseguiram internar uma mulher adulta, economicamente independente, contra a sua vontade em pleno século XXI.
A vítima é colocada em uma clínica luxuosíssima no bairro de Botafogo e, pagando-se o preço certo se consegue quase tudo. A mulher fica isolada, não consegue falar com médico, até que convence a acompanhante de outra paciente a ajude. A outra mulher leva um bilhete escondido no sapato para o amante da prisioneira. Ele e amigos da vítima conseguem se mobilizar, contratar advogado, além do testemunho do terapeuta da mulher atestando sua sanidade. O marido corre o risco de pegar uma cana pesada agora, mas não deve acontecer. Estamos no Brasil e ele é homem de bem e de bens. Também são citados no processo os três psiquiatras e o diretor técnico da clínica, além da mãe da vítima. ""Minha maior mágoa é o envolvimento da minha mãe. Muito maior do que a mágoa que sinto dele""
Muito bem, o que aprendemos com essa história horrível, que só não foi pior, porque não resultou em anos de cárcere, mas somente dias? Que não é a miséria, a falta de instrução, que produzem esses casos absurdos de cárcere de mulheres, mas o machismo estrutural, aquela ideia fundamental no patriarcado de que os homens são donos de suas mulheres e podem dispor delas ai seu bel prazer. Assim, eles sempre sabem o que é melhor para a SUA mulher, inclusive se sentem no direito de impedi-la de fazer suas escolhas. Autonomia não é uma virtude feminina, nem insubmissão. É esta a lição do dia. Camille Claudel continua habitando entre nós, basta estarmos atentos ao que acontece ao nosso redor.
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