Ontem, a Pacchi comentou no Twitter sobre o mangá Revolutionary α, no original, Kakumei no α (革命のα), de Kashima Kotaru. Ela elogiou a arte da série, a capa já sinaliza o que há dentro, lamentou que o mangá fosse tão curto, é um volume só, e disse que a inspiração para os protagonistas era a Rosa de Versalhes (ベルサイユのばら). Mexendo no Twitter da autora, descobri que ela é fã do Takarazuka, também. Pronto, me senti convidada a dar uma olhada e li os capítulos de manhã cedo. Nem o fato de ser Omegaverse, e explico o que é isso daqui a pouco, conseguiu me afastar. Segue o resumo do Bakaupdates e eu volto depois.
Era o auge dos alfas. Os alfas têm todas as riquezas e todo o poder, aos quais se entregam sem se importar com mais ninguém. Eles desprezam os obsequiosos ômegas e betas... o proprietário de terras Maurice, com seus cabelos loiros brilhantes e pele como porcelana, questiona essa sociedade desigual. Ele é o belo, inteligente herdeiro da nobre e prestigiosa casa de Seychelle. Ele é próximo de seu criado pessoal, Simon, mas como ele é o herdeiro da família, seu destino de se casar com um ômega e ter seus próprios herdeiros é inevitável. Gênero, status e destino se colocam contra o amor. Um lindo conto do Omegaverse.
A autora abre o mangá explicando duas coisas, a ambientação histórica e como ela se relaciona com o omegaverse. Enfim, comecemos pelo Omegaverse. Trata-se originalmente de um subgênero da ficção especulativa erótica que gira em torno de um mundo no qual os seres humanos são divididos em três grupos, os alfas, que são dominantes e estão no topo da sociedade; os beta, que são como pessoas normais; e os ômega, menores, mais frágeis, carregados de feromônios e cujo destino é procriar. Há mulheres e homens em todos os grupos, mas os alfa não podem engravidar e os ômega estão condenados a isso. Quanto aos beta, bem, eles estão condenados a se reproduzirem entre eles gerando filhos e filhas que normalmente são betas.
Quem costuma ler meus textos já deve ter suspeitado do motivo pelo qual eu não gosto de séries omegaverse. Dentro desse tipo de história são reproduzidos os papéis de gênero mais estereotipados e há, não raro, a justificativa da violência sexual por parte dos alfa, afinal, eles perdem qualquer controle quando expostos aos poderosos feromônios dos ômega. Nesta história, e em outras poucas que li, tanto os alfa quanto os ômega tomam supressores que possibilitam que eles interajam socialmente sem que isso sempre resulte em alguma forma de violência. Enfim, mesmo desgostando dessa ideia de mundo hierarquizada e machista, Revolutionary α conseguiu me prender do início ao fim.
E eis que a autora transfere essa lógica do omegaverse para as vésperas da Revolução Francesa, porque, sim, mesmo sem explicitar, sabemos que estamos em uma França alternativa do Antigo Regime, com os alfa no topo, os ômega submetidos a eles tal e qual as mulheres aos homens em uma sociedade patriarcal, e os beta como o terceiro estado, eles existem para servir os alfa e os ômega, porque eles pertencem aos indivíduos que ocupam o topo da sociedade tanto quanto suas terras, casas e animais. É neste contexto que se desenvolve o romance entre Maurice e Simon.
Maurice é nossa Oscar, brilhante, inteligente, lindo, investido de altíssimos valores morais e comprometido com o serviço a sua nação, mas indignado com o fato de seu pai querer obrigá-lo a se casar, ou melhor dizendo, formar um elo para toda vida com um ômega. Maurice tem pavor à ideia de perder a razão. Ele é um home do Iluminismo e considera que entregar-se aos instintos que carrega dentro de si por ser alfa é degradante. Ele tem um trauma do final da adolescência, quando seu pai o colocou no mesmo quarto com um ômega e ele experimentou o pânico causado pela explosão de seus hormônios e a (quase) incapacidade de se controlar. Depois disso, ele passa a fugir de qualquer intimidade com qualquer ômega. Além disso, ele despreza a subserviência dos ômegas desesperados para serem escolhidos e está irremediavelmente apaixonado por Simon. Na relação dos dois, contrariando o que deveria ser a sua natureza, é Maurice que se deixa penetrar pelo companheiro. Sim, subversão dos papéis de gênero. A gente gosta disso.
Já Simon foi irmão de leite e companheiro de infância de Maurice e é alvo aa devoção de seu senhor. Maurice usa a competência de Simon nas artes militares e nos estudos para defender sua tese de que é a educação que cria as diferenças entre alfas e betas pelo menos, porque nosso mocinho despreza os ômega e sua subserviência. Simon, no entanto, se vê obrigado por sua condição e tentar convencer Maurice a cumprir com seu dever, ele deve se casar, deve procriar e o criado se sentiria recompensado somente de continuar a seu serviço, tal e qual uma sombra. A metáfora é usada no mangá, da mesma forma que está na Rosa de Versalhes para descrever a relação entre André e Oscar.
Muito bem, o pai de Maurice decide aumentar a pressão sobre Simon, para que ele ajude Maurice a aceitar um casamento, e sobre o filho. É neste momento que é introduzido na história um ômega irresistível, Claude. Da mais alta linhagem, além de muito bonito, o jovem não parece se conformar com os papéis atribuídos aos ômega. Ele quer estudar e ser senhor de sua vida. Claude irá fascinar Maurice, mas não da forma como o pai do jovem espera, ou Simon teme, ainda que aceite a possibilidade de um casamento entre os dois. Maurice passa a debater filosofia e política com Claude e diz para o rapaz que sua liberdade só poderá acontecer se houver uma revolução. É no contato com Claude que Maurice passa a ver os ômegas com outros olhos, ele deixa de desprezá-los e os vê como prisioneiros como ele.
Não vou me alongar, mas Revolutionary α questiona papéis de gênero, convenções sociais e tem um discurso subversivo declarado. A Revolução terminou acontecendo. E, bem, temos aí o único problema do mangá, a autora pula a derrubada do regime. De um capítulo para o outro, já temos Claude na assembleia e a discussão da nova constituição, que parece muito radical para Maurice, mas que o outro diz que será emendada e sofrerá mudanças. É interessante isso aqui, porque uma constituinte depois de uma revolução já é uma espécie de breque conservador, mas se você constrói um texto muito ousado, o impacto das reformas terá um efeito menor do que se tivéssemos uma redação tímida. De qualquer forma, assim como fez Fumi Yoshinaga em Ōoku (大奥), Kotaru Kashima fugiu de desenhar cenas de confronto e luta. O mangá poderia ser mais longo, talvez mais um volume, e teríamos espaço para mostrar a queda do regime e a libertação das personagens.
Enfim, se a história deixa um tiquinho a desejar, a arte é deslumbrante. Kotaru Kashima é extremamente detalhista nas roupas e suas personagens tem muita personalidade, por assim dizer. E fiquei querendo saber se o tapa olho de Claude tinha alguma função, ou era charme, me lembrei do "function, or fashion" de Pride & Prejudice & Zombies. Exatamente por causa disso, as cenas de sexo, e há bastante, são bem satisfatórias e absolutamente #NSFW. Aviso isso, porque Revolutionary α é um mangá erótico, então, tenham em mente que é material para adultos. Se você não estiver interessado nas discussões de gênero, ou no papo revolucionário, talvez o sexo faça esta obra valer a pena.
É isso, há uma história extra em ambiente militar contemporânea e de caráter BDSM, além de . Acabei descobrindo no Twitter uma ilustração de Revolutionary α com Maurice, Simon e Claude como atrizes do Takarazuka. Bem, bem, até pela diferença de constituição física, dá para imaginar as personagens da autora divididas entre otokoyaku (que fazem os papéis masculinos) e mosumeyaku (responsáveis pelos papéis femininos). Além de um omake (extra, bônus) com as personagens da história principal.
P.S.: Alguém no Twitter comentou que eu estava ampliando meus horizontes e conhecimentos. Não sei qual o objetivo do comentário, mas senti necessidade de fazer mais um parágrafo. Primeiro, eu realmente nao costumo ler BL e, mais ainda, resenhar BL. No entanto, em vinte e cinco anos nesse mundo de mangá e anime, eu já li muita coisa da demografia. Segundo, no geral, eu leio muito mais coisa que resenho. Já li uns bara tempos atrás, mas não resenhei, nem vou, artigo explicando a demografia, OK, mas resenha desse tipo de pornografia não é coisa para o Shoujo Café. Leio Titan's Bride, por exemplo, mas nunca comentei no blog, nem vou, não acho que venha ao caso, da mesma forma que um punhado de TL e manhwa para mulheres que eu costumo pegar para olhar. Não vale a pena, ou é algo que não cairia bem aqui. Não costumo resenhar material somente para falar mal.
Segundo, eu conheço omegaverse faz um bom tempo. Para ter um painel da coisa, me obriguei a ler uma antologia omegaverse TL e, bem, não gostei de NADA que estava lá, não perdi meu tempo resenhando. Omegaverse me parece uma metáfora para a heteronormatividade mais violenta e abjeta. Você pode curtir, cada um com suas fantasias, mas eu não curto. Revolutionary α me pegou, entre outras coisas, porque os protagonistas estão querendo destruir esse sistema opressor. Fosse para reforçar, duvido que eu teria passado do primeiro capítulo, independentemente da arte, das referências à Rosa de Versalhes, ou do sexo bem desenhado. É isso.
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