Acabei de assisti ao vídeo que vou comentar graças a uma sugestão que o Lacradores Desintoxicados fez no Twitter. Enfim, o vídeo traz uma análise do comportamento do mercado francês de mangá, o segundo do mundo, pois só perde para o Japão, país de origem do material, em relação aos shoujo. O vídeo está abaixo. Depois, eu volto.
Confesso que, como a autora fala muito rápido, foi complicado manter o foco, mas como sei do que ela está falando, isso ajuda a gente não se perder. Resumindo, segundo ela há uma queda acentuada na publicação dos shoujo na França. Esse declínio, acusa a autora, se deve à misoginia. Misoginia é o desprezo, aversão, pelas mulheres e tudo o que é feminino. Não é uma questão pessoal, mas algo que está presente nas próprias estruturas das sociedades patriarcais e pode se manifestar de diversas maneiras. A autora do vídeo, vai discutir uma de suas manifestações no mercado editorial de mangás franceses.
Dito isso, a gente está em terreno conhecido, afinal, este blog já caminha para seus vinte anos e eu não comecei a falar de shoujo aqui por puro deleite, mas para dar destaque a uma demografia que era desprezada e mal compreendida. Segundo o vídeo, enquanto os mangás shounen e seinen recebem propaganda e são tratados como material diverso e interessante, os shoujo são reduzidos a sinônimo de romance e recebem logos e capas que reforçam esta sua especificidade e limitação. Veja bem, a tia aqui já bateu várias vezes na tecla de que romance é parte da vida, mas que ao se marcar que é "coisa de mulher", cria-se uma barreira para que o material seja considerado sério e ele passa a ser imediatamente inferior e indigno da atenção dos homens e, também, das mulheres que tenham um mínimo de bom senso e bom gosto.
Se, para piorar, eu coloco rosa na capa, ou na lombada, eu estou sinalizando que é para mulher, logo, se você é homem, ou uma mulher fora da caixinha, você vai preferir mangás que não são água com açúcar. Sim, estou repetindo o senso comum, porque não há problema nenhum no rosa e em materiais que efetivamente são água com açúcar. Para um homem, ser visto com um mangá assim, e lembrem das reclamações sobre Otomen (オトメン(乙男) e seu destino triste no Brasil, é algo que pode atentar contra sua masculinidade. Lembrem que "menino veste azul e menina veste rosa", logo, devem consumir mangás que sigam esta linha de raciocínio limitado e castrador. Trata-se obviamente de uma falácia, as autoras de shoujo, porque são mulheres que escrevem para essa demografia, falam de tudo e foram responsáveis por introduzir discussões que terminaram por influenciar todas as demografias de mangá.
Como exemplo, a autora do vídeo afirma que graças ao shoujo e seus homens sensíveis, os heróis de shounen mangá, podem chorar. Discordo, o choro masculino no Japão nunca teve o estigma que passou a ter no Ocidente a partir do século XIX, ainda que existam formas e motivações para o choro vistas como adequadas às mulheres e aos homens. O shoujo influencia o shounen e há estudos sobre isso, porque o mercado japonês sabe que mulheres e meninas leem shounen e seinen e autoras de shoujo migraram para demografias masculinas, e há as que sempre estiveram produzindo para essas demografias, trazendo um olhar diferente para as mesmas. O inverso, entretanto, não ocorre, o se acontece é de forma muito marginal. Enquanto as demografias masculinas são vendidas como universais, porque o homem do sexo masculino é o parâmetro, as femininas são vistas como carregadas de especificidades que, aos olhos do ocidente, carente de autoras mulheres de destaque, tendem a apequenar os mangás femininos. Na verdade, com quase trinta anos de publicação de mangá no Ocidente de forma contínua, os editores e editoras (empresas) parecem não saber lidar muito bem com o fato de metade da indústria de mangás ser feita por mulheres e para mulheres.
Voltando, a autora do vídeo aponta, e isso parece ser muito comum na França, que é comum enquadrar de forma errada um mangá por ele não entrar na caixinha que os editores desejam. Assim, shoujo que não sejam centrados no romance recebem outro rótulo, normalmente, seinen. O caso recente mais escandaloso foi Baraou no Souretsu (薔薇王の葬列), lançado no selo seinen, porque os editores o consideraram dark demais para um shoujo mangá. E se o shounen, ou seinen, é centrado em romance, um slice of life sem peso para o fanservice, vai ser chamado de shoujo, porque os sujeitos não sabem lidar com o fato de que meninos e homens também gostam desse gênero e, no Japão, ninguém parece ver isso como problema.
Alivia-se a culpa do machinho, que não vai ter que comprar o mangá de lombada rosa, infla-se a vendagem de uma outra demografia, que acaba incorporando um grande sucesso do shoujo, e perpetua-se o a desvalorização dos mangás femininos, porque tudo o que é feito por mulheres tem que ser visto como inferior. Essa fuleiragem, que parece ser lugar comum no mercado francês, é pior do que o que acontece no Brasil, porque esse tipo de palhaçada rola, mas a gente cai matando de pau e as editoras passaram a ter mais cuidado com essa coisa de "tem romance é shoujo". Ainda assim, há aqui a omissão, que ocorre na França, também, de omitir que muito do material de Junji Ito é originalmente shoujo, porque há revistas shoujo especializadas nesse gênero.
No básico, é isso que está no vídeo. A inspiração para fazê-lo, segundo a autora, veio de protestos no Tik Tok. A autora decidiu reabrir seu canal para divulgar o shoujo, sua diversidade, e autoras, começando com a fantástica Akiko Higashimura. O vídeo já está no ar. A autora diz que vai recorrer nos seus vídeos à edições japonesas, norte-americanas e italianas, pois, segundo ela, ambos os mercados tratam melhor o shoujo que o francês, ainda que, no geral, sejam mais modestos. É uma forma de resistência e de educar quem aceite ser educado, tipo a proposta inicial deste blog e que continuo levando a sério mesmo depois de tantos anos.
De resto, acredito que usar shoujo como guarda-chuva em um vídeo mais geral é válido, mas a gente não pode omitir, e é minha crítica ao vídeo, que há várias demografias femininas, o josei, o uso do termo, inclusive, está consolidado no Japão para se aplicar às revistas voltadas para vários segmentos de mulheres adultas, assim como TL, que é sigla para teen love, ainda que seja material erótico-pornográfico para mulheres adultas, e o BL, boys love, que a gente não deve mais chamar de yaoi, que são igualmente demografias femininas. O que não impede, mesmo no Japão, de continuarem premiando mangás josei na categoria shoujo para dar os prêmios da categoria geral para os seinen. Porque, de novo, se é feminino é inferior e mesmo no país dos mangás, há discriminação.
Aliás, eu nunca fui me informar sobre como funciona a publicação de BL na França e a autora nem comenta sobre a demografia, mesmo que para dizer que não será assunto do seu vídeo. Não vou procurar agora, mas duvido que não tenha saído um bom número de títulos por lá. Já TL, bem, aí é coisa mais recente e muito pouco divulgada mesmo.
5 pessoas comentaram:
Será que ocorre na Bélgica o mesmo que ocorre na França? (Lembremos que a BD e mangá são igualmente cult nos 2 países) . Que chocante esse machismo na França, um país considerado avançado
Valéria, aproveitando a recomendação desse post, queria recomendar o canal Ilha Kaijuu. Ele tem um vídeo muito interessante chamado O Mito da Origem do Manga. Não sei se você conhece, mas vou deixar o link aqui, caso tenha interesse:
https://www.youtube.com/watch?v=tcP7lwQkzeE
Que bom que a turma dos EUA e da Itália são gentis com Shoujo
Só passando para afirmar quanto amo o blog. Comento bem pouco, mas leio desde adolescente. Um dos meus aspectos favoritos do Shoujo Café é que ele não pede desculpas pelo gosto por shojo, e não vem com aquelas "defesas" da demografia que acho um tanto ofensivas. Com isso quero dizer aquelas defesas ao estilo "olha, ESSE shojo é bom (diferentes das muitas porcarias por aí...)". Sabe? O clima anti-shojo do mercado brasileiro além de, claro, nos privar de tantas obras, ainda por cima encheu muito do fandom shojo BR desse ar de "tenho que provar que meu shojo favorito, que merece publicação nacional, não é uma idiotice"... a idiotice costuma ser o shojo "besta" de romance colegial, verdadeiro bicho-papão de alguns, coitado. Ao mesmo tempo que entendo esse espírito idealista de "preciso provar", eu acho cansativo... primeiro que duvido bastante que JBC e Panini liguem para as tais provas. Depois que qual problema do tal shojo "besta", sinceramente? Por que ficar obcecado com esses estereótipos? Por que deixar gente que obviamente NÃO se interessa por shojo mande no jeito sobre qual o shojo é discutido?
Enfim... isso tudo pra dizer que gosto muito der ler esses seus textos sobre shojo! (E sobre novelas e filmes e...)
Nath, também leio o blog da Valéria desde a adolescência! Penso o mesmo, esse blog aqui é um espaço de resistência à misoginia q reina no mundo dos leitores de mangá ! Obg ao Shoujo cafe e viva a produção de mulheres para mulheres!
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