Paper Girls, série do Amazon Prime inspirada na série de mesmo nome de Brian K. Vaughan e Cliff Chiang, e teve estreia mundial no dia 29 de julho. Começo avisando que a série se afasta um tanto do original e que em alguns aspectos, acredito que a adaptação foi muito feliz nas escolhas. O mais importante, porém, foi a transposição muito fiel das personagens principais, as paper girls do título. A história começa com um grupo de paper girls (entregadoras de jornal) Erin Tieng (Riley Lai Nelet), Tiffany Quilkin (Camryn Jones), Mac Coyle (Sofia Rosinsky) e KJ Brandman (Fina Strazza) entregando jornais no dia seguinte ao Halloween, descrito por elas como o "Dia do Inferno", porque gente mal intencionada ainda estava pelas ruas pregando peças.
Apesar de não se conhecerem e/ou serem amigas, ainda que Mac fosse uma espécie de lenda, por ter sido a primeira entregadora de jornais de Stony Stream (Cleveland), as quatro decidem ficar juntas naquela madrugada de 1988 como uma forma de proteção. O problema é que elas são pegas no meio de uma guerra entre facções de viajantes do tempo e terminam, a Old Guard e a resistência. As meninas acabam viajando no tempo contra a sua vontade e sendo caçadas por membros da Old Guard que querem exterminar quaisquer indivíduos que possam trazer instabilidade á linha temporal correta.
Nessa primeira temporada, porque teremos outra, tenho certeza, a série consegue combinar dramas típicos da faixa etária das meninas, todas tem 12 anos, discussões sobre classe, preconceitos, família, além de introduzir uma trama de ficção científica que parece consistente, porque, pelo menos até o início do capítulo 6, não temos muito claro o que cada um dos lados do conflito representam, ainda que já tenhamos evidente que a Old Guard é capaz de tudo e isso significa eliminar qualquer um em seu caminho, e a resistência pode simplesmente estar usando as meninas para levar adiante sua agenda, que não sabemos qual é até o momento.
No primeiro salto temporal, as meninas vão de 1988 para 2019, graças a um pod aparentemente preparado para levar Heck (Kai Young) e Naldo (William Bennett), dois agentes dessa resistência temporal. Os rapazes, que são muito jovens, não conseguem escapar. Na fuga, um deles dá um pequeno dispositivo para Tiff, a mais inteligente e tecnológica, para os padrões dos anos 1980, das meninas, e diz que aquilo será importante. Como a Old Guard pretende matar as quatro garotas, KJ, que sempre carrega seu taco de Hockey como forma de proteção, não pensa duas vezes e se defende. O problema é que ela acaba matando um dos agentes da Old Guard, que parece ser irmão da comandante da missão, a Prioresa (Adina Porter), que toma aquilo como algo pessoal e quer se vingar da menina daí para adiante.
Erin, que é filha de imigrantes chineses e está na posição de maior protagonismo neste primeira temporada, termina por encontrar com o seu "eu" do futuro (Ali Wong). Erin, das quatro garotas, é aquela que parece mais apegada à família, neste caso, a mãe-viúva e a irmã caçula, e se sente responsável por elas. A mãe não fala bem o inglês, a irmã ainda é uma criança pequena. Ao mesmo tempo, Erin sonha em combinar uma carreira bem sucedida (*ela quer ser senadora*) com a maternidade, algo que ela vê como fundamental, Ao encontrar o seu "eu" do futuro, uma mulher que toma remédios para a ansiedade e não realizou nenhum de seus sonhos. Mas é essa Erin do futuro que acolhe as meninas e lhes dá abrigo, enquanto tentam descobrir como voltar para casa.
Em 2019, as meninas e a Erin mais velha terminam conhecendo um agente temporal chamado Larry (Nate Corddry), que esperava por alguém capaz de entrar em sincronia com o robô gigante que ele tem escondido em um silo de cereais. Sim, temos robôs gigante e é a Erin mais velha que vai pilotar a máquina, porque ela conseguiu, sem querer, claro, entrar em sincronia com o dispositivo que Tiff recebeu. Larry é uma personagem dúbia. O primeiro contato com a Erin mais velha e as meninas não é cordial, mas ele, um solitário por questões de segurança, acaba (*aparentemente*) desenvolvendo sentimentos por elas, especialmente, por Tiff com quem cria uma espécie de vínculo intelectual, por assim dizer. Isso parece ser importante a partir do episódio #5.
Só falei da personalidade de Erin, então, vou parar um momento para comentar cada uma das garotas, porque é importante. Erin é o tipo maternal e que se sacrifica pelo bem de todos, é insegura, também, mas já no início da primeira temporada, ela cresce bastante. Tiff é negra, e isso faz diferença, porque ela é muito ciente do racismo, assim como Erin, e obcecada por tecnologia e com grandes sonhos para o futuro, ela quer ir para o MIT (Massachusetts Institute of Technology). Tiff não tem nenhum problema em dizer o que pensa e tomar decisões quando necessário. Erin decide ser uma paper girl para ajudar a mãe com as contas; Tiff para ter dinheiro para comprar os gadgets eletrônicos que seus pais não estavam dispostos a bancar.
KJ é, para os padrões das outras garotas, uma menina rica. Judia, neta de uma sobrevivente do Holocausto, ela é muito sensível ao antissemitismo. KJ é um tanto oprimida pela mãe, que tem grandes sonhos para ela. Aqui, a série escorregou no estereótipo da mãe judia, mas a Sr.ª Brandman mal apareceu. Acredito que ela se tornou uma paper girl para afrontar a mãe, que deseja que ela seja perfeita em tudo. KJ leva consigo um taco de hockey como uma forma de defesa contra possíveis agressões. Eu só li o primeiro volume de Paper Girls e nem me lembrava muito bem, mas olhando KJ, entendi logo que a menina é lésbica e, bem, é interessante ter uma série na qual a descoberta do primeiro amor não será heteronormativa, por assim dizer.
Já Mac é tomboy e o lixo branco, por assim dizer, da série. No quadrinho, sua família é se origem irlandesa, e uma das mudanças da série, ou omissões até o momento, foi não entrar na religião das personagens. Sim, sim, sabemos que KJ é judia, mas isso abrange mais do que aspectos religiosos. Nos quadrinhos, Erin, Tiff e Mac são católicas, as duas primeiras, assim como o autor de Paper Girls, frequentam escolas católicas e, não, públicas. Onde nos EUA você teria três personagens católicas de um grupo de quatro sendo que o 1/4 pertence a uma minoria específica? No caso, Mac. Na série, fica sugerido que Erin não é cristã, porque em sua casa do futuro há um altar aos ancestrais. Claro, poderiam mantê-la católica, mas não todas as garotas. Enfim, Mac vive com o pai operário, que parece ser grosseiro e alcóolatra, mas capaz de algum afeto pelos filhos, e o irmão mais velho, que ela adora e lhe serve de modelo.
Mac, no quadrinho, já entra em cena fumando. Na série, só é feita a referência aos seus hábitos pouco saudáveis. Ela carrega muita raiva dentro de si, ela entrega jornais não para ter um dinheirinho a mais, mas por questão se sobrevivência. Mac é pobre de verdade e chega a ter que reaproveitar as roupas do irmão mais velho. Sua raiva, como é típico do grupo ao qual pertence, transborda na reprodução de todos os preconceitos disponíveis à época. Fala coisas racistas e é repreendida principalmente por KJ. Além disso é muito homofóbica. Na abertura do quadrinho, ela chama o valentão que está perturbando Erin de "faggot" (bicha) e associa homossexualidade ao HIV como forma de ofensa, sendo corrigida por Erin. Isso é bem da época, mas a série remodelou toda esta sequência como uma forma de autocensura. Mais tarde, em 2019, Mac reencontra o irmão, que de rebelde sem causa conseguiu se tornar um cirurgião bem sucedido (Cliff Chamberlain). Ele a corrige quando ela usa um termo homofóbico.
Todas as cenas de Mac com o irmão são excelentes, mas acredito que seria muito mais interessante mostrar a correção sendo feita por Erin e, mais tarde, reforçada por ele. Mac se separa das amigas em 2019, ela pretende mesmo ficar, porque acaba sendo informada sobre algo muito triste que lhe aconteceu e o irmão se propõe a acolhê-la e adotá-la, inserindo-a em sua família perfeita (*e enjoativa*). Só que as meninas precisam voltar para 1988 e elas ficam sabendo que a Old Guard irá matar todas as pessoas que tiveram contato com as viajantes. Inclusive, há uma cena rápida envolvendo os pais de KJ e a Prioresa, da qual as meninas sequer ficam sabendo. KJ decide roubar a moto de Larry e trazer Mac de volta. A menina, que é durona, chora viagem inteira pela vida que não poderá ter e por saber da tragédia pessoal que se abaterá sobre ela em breve. E digo que a sequência do reencontro das meninas e das duas na moto é uma das mais bonitas da série até agora.
KJ não sabe ainda da sua orientação sexual, a descoberta está na primeira temporada e a coisa foi abordada de forma muito impactante, mas desde o início fica meio evidente que ela tem um interesse especial pela grosseira Mac. Como uma menina homofóbica reagirá ao descobrir o interesse de KJ por ela. E, que fique claro, a relação das duas veio dos quadrinhos e aos 12 anos é perfeitamente compreensível que alguém comece a compreender que não tem uma orientação sexual padrão, isto é, heteronormativa, e sofra com isso. E é preciso lembrar que as meninas são nascidas em 1975-1976, aliás, fiquei bem encantada em ver que elas nasceram na mesma época que eu. ☺️
Uma das graças da série é que são quatro garotas de 12 anos, ainda que as atrizes sejam ligeiramente mais velhas, e que elas têm plena consciência de que não podem se resolver tudo sozinhas. Mesmo conseguindo se virar, elas precisam de ajuda e proteção, comida e abrigo, além de dinheiro. Por conta disso, elas não tem nenhum pudor em procurar parentes e seus "eus" das respectivas épocas em que estão. No capítulo #6, elas estão em 1999 e Tiff foi atrás do seu "eu" mais velho (Sekai Abenì), porque acredita piamente que ela conseguiu atingir todos os seus sonhos e é capaz de ajudá-las de alguma forma. Bem, ela tem algumas surpresas...
Uma coisa que me incomodou é que a Old Guard é formada por pessoas negras e quando o seu líder, o Grandfather (Jason Mantzoukas) foi introduzido, ele também seria enquadrado como não branco. Enfim, os maus com visibilidade são negros mesmo. Já os agentes rebeldes, por assim dizer, são brancos, a exceção de Heck, mas ele e Naldo quase não aprecem. Larry e Juniper (Celeste Arias) são brancos, ou seriam identificados como tal. Claro, os motivos da guerra temporal não estão explicados ainda, há detalhes que eu não sei, mas ver todos os maus sendo negros, aciona sentidos que não são positivos e, sim, temos Tiff, que é negra do lado dos bons, mas estou falando dos agentes temporais em guerra, parece que eles foram divididos por cor, assim como os maus da última série Ana Bolena eram todos brancos.
Eu vivi boa parte da minha infância e adolescência nos anos 1980, era uma época de filmes estrelados por adolescentes muito satisfatórios, desde material bem galhofa, até produções muito densas. Tínhamos Conte Comigo (Stand by Me), Viagem ao Mundo dos Sonhos (Explorers), Os Goonies (The Goonies), Os Garotos Perdidos (The Lost Boys), havia as produções do John Hughes, mas salvo raríssimas exceções, as meninas protagonistas não estavam envolvidas em aventuras, mas em tramas de comédia e/ou romance, sendo Molly Ringwald, o ícone de uma geração. E era muito comum termos adultos fazendo adolescentes. Por exemplo, A Lenda de Billie Jean (The Legend of Billie Jean) tinha uma protagonista fora do padrão, ela era acusada de um crime que não cometeu e tinha que fugir pelas estradas e acabou se tornando uma espécie de heroína, mas Helen Slater já tinha bem mais de 20 anos em 1985.
Ver uma série com meninas protagonistas, sem ser comédia romântica, e que se comportam como gente da idade que tem é um bálsamo e as meninas estão tão bem! O tratamento do tema da menstruação e outros que afetam as mulheres e que podem ser particularmente sensíveis, foi muito bem conduzida. Infelizmente, ou não, Júlia ainda não tem idade para ver Paper Girls, mas fica para o futuro. E, sim, Paper Girls só entrou no radar de uma adaptação por causa de Stranger Things, mas não é uma série de celebração dos anos 1980, é uma série de ficção científica que dá protagonismo às mulheres. Imagino que Ali Wong, a Erin mais velha, deva voltar.
Agora, há um problema. a não ser que rompam em absoluto com o original, as meninas precisarão retornar para o dia seguinte do Halloween de 1988 e ter suas memórias de viagem no tempo apagadas. Se a série se esticar muito, não há como fazer com que jovens mulheres pareçam meninas de 12 anos. Se houver algum planejamento, e imagino que não. Eu já deixaria a sequência do retorno pré-gravada com as garotas na idade que tinham em 2021 e só colocaria no final, seja lá de qual temporada. Enfim, seria o que eu faria.
O quadrinho começou a ser publicado em 2015, em capítulos, e foram trinta no total, publicados até 2019. Esse material foi encadernado em seis volumes (2016-2019), mais tarde uma de luxo em três volumes (2017, 2019, 2020) e, depois, em um único volume (2021). A Devir começou a publicar Paper Girls no Brasil em 2017. É fácil encontrar para ler na internet. Em 2016, Paper Girls foi vencedora do Eisner Award de "Melhor Série Estreante" , no ano seguinte, foi indicada à categoria de "Melhor Série". Segue o link para o volume 1 e a edição integral em inglês e o primeiro volume nacional no Amazon.
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