Saiu ontem a pesquisa "A cara da democracia no Brasil" mapeia a cabeça do eleitor brasileiro sobre alguns temas. Como não tive acesso à pesquisa completa, estou tomando como fonte a matéria que saiu no O Globo com o seguinte (*e problemático*) título “Pesquisa aponta que o dobro dos brasileiros se diz mais de direita que esquerda. Veja os números”. Achei interessante o resultado da pesquisa, que é séria e conduzida por universidades públicas brasileiras, e a chamada que a Globo só mostra o quanto esse pessoal não entende o que é direita e esquerda. Primeiro as pessoas são complexas e contraditórias. Valéria (*EU*) posso oscilar bastante em relação a alguns temas e por motivos que nãos seriam dos mais previsíveis. A gente não precisa comprar combo de ideias como compra combo de lanche em certas redes por aí. Segundo, e ainda mais importante, não há uma pergunta sequer na matéria que se remeta ao modelo econômico, o que poderia apontar para posicionamentos concretos, materiais, sobre esquerda-direita. Vamos falar de capitalismo, por exemplo. Direitos trabalhistas e sociais, essas coisas. Estranhei não ver coisas assim em destaque. Não está na pesquisa, ou a Globo não deu destaque? Sigamos.
O foco todo são em questões comportamentais, as tais “de costumes”, e em uma ideia, muito provavelmente obscura para a maioria, sobre o que é democracia. A maioria dos respondentes, por exemplo, se posicionou a favor das pautas que atingem os LGBTQUIA+ visíveis e tolerados, desde que colocados em uma determinada caixinha do que se considera aceitável. Casamento? OK. Adoção? Mais que OK. Coloquei os gráficos. Conheço muita gente de direita que aceitaria essas duas pautas sem nenhum problema. E sei de gente que se coloca como esquerda em temas econômicos e que mal consegue disfarçar a sua homofobia. As pessoas são complexas e, não raro, esquizofrênicas. Repetindo, o que é chave para compreender esquerda-direita, os temas ECONÔMICOS, passaram à margem da pesquisa.
Legalização do aborto? Se a pergunta for exatamente assim, aposto que a maioria das pessoas, e dos homens do sexo masculino em especial, dirá “NÃO”. Estamos falando de mulheres, então, elas é que se ferrem por não terem fechado as pernas. E há gente de esquerda, sim, ESQUERDA, que é contra a descriminalização do aborto, ou quer uma mudança na lei que não a torne tão diferente assim do que é hoje. Agora, de que estamos falando mesmo aqui? Um? “Você é a favor da descriminalização do aborto até a 12ª/14ª semana?”. Seria mais específico, teríamos uma baliza. “Você é a favor da manutenção da legislação ATUAL sobre o aborto?”, isto é, estupro, risco de vida para a mulher e inviabilidade do feto (*anencefalia, por exemplo*). Será que daria aquele gritante 76% contra? E tem o de prisão para mulheres que interrompam a gravidez com 58% a favor. Isso aponta para uma radicalização em torno de pautas contra as mulheres? Sem dúvida, talvez aqui, e na matéria não se fale de orientação religiosa, caberia abrir a caixinha preta das adesões de fé.
Descriminalização das drogas? Chegue em qualquer comunidade pobre, com famílias destruídas pelo vício, com filho que rouba as coisas em casa, que bate na mãe, etc. E lance esta pergunta. Não na lata. Mas qual país legaliza “as drogas” assim dessa forma genérica? Que eu saiba, Portugal é o país com uma das legislações mais modernas, mas o que impera no mundo é o espírito de guerra às drogas, que, na verdade, atinge mais ao usuário e suas famílias, o traficante pé de chinelo, do que a quem realmente importa, o narcotráfico e seus apoiadores em lugares de poder. Gente que realmente deveria pagar caro pelos seus crimes. Agora, será que a aversão seria tão grande se a pergunta fosse “Você é a favor da legalização da maconha?” Sem nuances a maioria das pessoas responderá, não.
“Redução da maioridade penal?” Aqui, foi de lavada. A maioria, entre homens e mulheres, votou no “a favor”. Reduzir para? 17? 16? Menos. A pesquisa não cobre isso. De novo, será que quem respondeu inclui seus filhos e filhas, o/a amiguinho/a deles, o sobrinho, o afilhado, ou está somente pensando em um adolescente genérico, geralmente negro e pobre, aquele com o qual você não tem empatia alguma. Esta pauta é de fato conservadora, bem influenciada pelo que vem dos Estados Unidos. Faltou, aliás, perguntar sobre pena de morte e corrupção, duas pautas que andam no mesmo espectro desta. Se essas perguntas estão na pesquisa, não estão na matéria.
E chegamos na caixinha realmente esquisita. A maioria diz desejar a militarização das escolas públicas, e somente delas, não foi “das escolas”. Disciplina, rigor, ou o que passe na cabeça desse povo, é para o filho do pobre. Aliás, as notícias que chegam desse tipo de escola apontam para violência e discriminação do público atendido por ela (*Ex.: 1 - 2 - 3 - 4*) Além disso, há muita gente que não sabe que escola militarizada não é porta de entrada para carreira, emprego e, o que é mais importante, salário. A maioria esmagadora também quer que se reze e ensine a acreditar em Deus na escola. Maioria mesmo. De novo, nenhum nuance, sabemos que se está no espectro cristão, não tenhamos dúvidas aqui, mas disseram qual? O católico praticante vai querer que seu filho ou filha seja ensinado a crer em Deus por um neopentecostal e vice-versa? Nesses nichos, não vale qualquer versão, ou opção. A pesquisa não especifica, então, está OK, ou assim parece.
E temos os temas ambientais. Aqui, a graça é que a maioria esmagadora é contra desmatamento, contra mineração em terras indígenas. E, sim, o melhor é a democracia. Agora, será que as pessoas estão pensando a mesma coisa quando ouvem DEMOCRACIA. Duvido muito, é como a palavra liberdade. Ela é polissêmica, isto é, tem múltiplos significados possíveis a depender do contexto, e pode ser utilizada, inclusive, para justificar a derrubada de um regime democrático dentro dos padrões burgueses consagrados a partir do iluminismo. Aliás, a guerra, neste momento é contra o paradigma iluminista, vide a tal pergunta sobre Deus na escola, algo que fere princípios do Estado Laico.
Mas o fim da matéria é “positivo” e amargo ao mesmo tempo, olha só “Para pesquisadores do grupo, coordenados pelo cientista político Leonardo Avritzer, os resultados demonstram que, apesar de um recrudescimento de ameaças golpistas, brasileiros, em sua maioria, preferem viver sob os três poderes independentes e (nem sempre) harmônicos entre si. Por outro lado, a larga base extremista está viva e nada indica que desaparecerá na mesma velocidade com que surgiu.”.
Coloquei o positivo entre aspas, porque esta adesão à democracia, como pontuei no parágrafo anterior, não diz nada sobre como os respondentes enxergam o sistema democrático. Aliás, e a pergunta sobre censura? Um? E a sobre armas? E é amargo, porque pelo menos admite que, caso nos livremos de uma possível reeleição do atual governo, essa onda não irá desaparecer. Ora, algo que eu já disse e não sei se escrevi, mas devo ter, sim, há eleitores que estão em busca de um candidato ideal, o presidente que temos veio para suprir essa carência. Elas não mudaram, não se radicalizaram, elas simplesmente se sentem representadas, felizes. Será que esse tipo de gente é a maioria? Esta deveria ser a pergunta. De qualquer forma, vote e vote da melhor maneira possível em outubro.
Excelente post, Valéria!
ResponderExcluirObrigada, Nathália! Bom saber que alguém leu. ❤️
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